segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Laura

                        Lluis Llach/Diana Pequeno


Hoje lhe escrevo uma canção
Recordo ver você chegar
Com o mistério dos teus olhos
O vulto inquieto, o corpo amigo
Com o sorriso em tuas mãos
Levaste ao longe minha canção
Em cada nota do teu nome, Laura
É tão difícil recordar
Os tantos mundos que vivemos
Nossa amargura por viver
Nossa esperança no amanhã
Em casa com nossos irmãos
Ou em triste exílio além do mar
Nunca faltou o teu alento, Laura
E se acaso longe vás
Que os deuses guardem teu caminho
Que te acompanhem passarinhos
Que te afaguem as estrelas
E num acorde desta voz
Embora nem possas ouvir
Sempre estará tua canção, Laura.


A Laura, a quem aqui presto a homenagem, está hoje no plano espiritual. Só soube da sua partida recentemente e acho até que tenha sido melhor assim! Vou ter sempre a imagem dela sorrindo ao me receber...
Laura não era mais uma mocinha, muito pelo contrário, talvez já tivesse ultrapassado um pouquinho os 80 anos... não sei dizer! Foi ela quem me ensinou muitas coisas que certamente usei depois que eu cresci.
Ela não era a minha avó, mas me considerava seu neto. Não me lembro exatamente quando foi a última vez que nos encontramos. Devo admitir que fiquei muito triste com a notícia... Talvez eu quisesse me despedir dela ainda viva, não sei. Apesar da distância nos últimos anos, senti um grande vazio, pois assim como eu gostava muito dela, ela nutria um grande sentimento por mim. Você vai ficar na saudade, minha senhora... mas vou torcer para você estar em um lugar bem melhor, o Nosso Lar, por exemplo. Sei que onde estiver, estará velando por mim e por aqueles que convivem comigo. Um grande beijo...

Morte e Vida Severina (trecho)

                                      João Cabral de Melo Neto


O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda é pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da Serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
como nome Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Como é Grande e Bonita a Natureza

                          Sivuca/Glorinha Gadelha

Andorinha é a presa do picanço
Beija-flor todo dia a flor beija
E a pequena floresta onde eu descanso
É um mundo de fera e de presa
Quero muito zelar pela pureza
Pelo rei, pela fada e pelo santo
Escondendo na mata o meu espanto
Como é grande e bonita a natureza

Eu me chamo João, Joana chama
Pra mostrar verdes olhos. verde queixa
Pra plantar minha crença galopando
Quero sol, quero chuva que despeja
Minha força taí nessa peleja
No rastejo arrastado do meu chão
Vou fazendo do mote o meu refrão
Como é grande e bonita a natureza

O cometa que passa vai passando
E a estrela do norte pestaneja
Zelação pelo céu alumiando
No clarão da manhã a noite fecha
Minha sorte no meio dessa riqueza
Meu desejo, meu sonho, meu sertão
Meu inverno é a promessa de um verão
Como é grande e bonita a natureza

Eu sou feita da força do remanso
A paulada no couro me desfecha
No momento da fome eu me avanço
Pra comer, como tudo que me deixa
A coragem embarcou nessa afoiteza
Minha sede abre a boca num rasgão
Que não sofra por mim o meu irmão
Como é grande e bonita a natureza.

Outra canção de Clara Nunes falando sobre a natureza que foi gravada em seu disco de 1981 intitulado Clara.

Salve o Verde

                            Jorge Ben

Toca a viola, toca a viola, violeiro
Segura o ritmo, segura o ritmo, batuqueiro
Entra na roda, entra na roda, milongueiro
Pois estão chegando
Estão chegando os partideiros
Cantando assim
Salve o verde! Salve o verde!
Deus salve o verde
Que o homem está acabando
E construindo o cinza
Salve o verde! Salve o verde!
Tá faltando grama nesse jardim
Tá faltando árvore nessa cidade
Tá faltando oxigênio nessa atmosfera
O que será, o que será, o que será
O que será da biosfera?
Salve o verde! Salve o verde!

Esta música de Jorge Ben foi gravada pelo Quarteto em Cy do disco Querelas do Brasil de 1978 com uma grande preocupação com o meio ambiente. Ela foi tema de abertura da novela Sinal de Alerta da TV Globo (quando esta fazia algo que prestava...).

As Forças da Natureza

                                 João Nogueira/Paulo César Pinheiro

Quando o sol
Se derramar em toda sua essência
Desafiando o poder da ciência
Pra combater o mal
E o mar com suas águas bravias
Levar consigo o pó dos nossos dias
Vai ser um bom sinal
Os palácios vão desabar
Sob a força de um temporal
E os ventos vão sufocar
O barulho infernal
Os homens vão se rebelar
Dessa farsa descomunal
Vai voltar tudo ao seu lugar
Afinal
Vai resplandecer
Uma chuva de prata do céu vai descer
E o esplendor da mata vai renascer
E o ar de novo vai ser natural
Vai florir
Cada grande cidade o mato vai cobrir
Das ruínas um novo povo vai surgir
E vai cantar, afinal
As pragas e as ervas daninhas
As armas e os homens de mal
Vão desaparecer
Nas cinzas de um carnaval

Música-título do então LP de Clara Nunes gravado em 1977. Já havia uma grande preocupação ambiental...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O Menino Sonhador

                                Enio Brito

Era uma vez um menino
Que gostava de voar!
Anunciando a liberdade
Para quem soubesse amar!

Ele cantava pelas ruas,
Por becos e povoados,
Um sentimento inquietante,
Que estava sempre do seu lado,

Ele cantava ao mundo inteiro,
num coração desesperado,
Preparando o homem novo,
Para amar e ser amado,

Mas enquanto ele cantava,
Seu coração se entristecia,
Pela ausência de espaços,
Para dizer o que sentia...

E o país era tão grande
Mas a surdez era maior
Até que um dia de repente
Este menino ficou só

Então resolveram calar a sua voz
Então resolveram tombar o seu corpo
Então resolveram tirar-lhe da história
Então resolveram tirar-lhe da glória...
E o menino calou-se no tempo
O sol se entristeceu
A verdade perdeu-se de tudo
Ficou só você e eu...

Menino que anda distante!
Aonde está o seu coração?
Menino eu sou navegante!
Das águas de suas mãos...

Brinquedos Incendiados

                                     Cecília Meireles


                  Uma noite, houve um incêndio num bazar. E no fogo total desapareceram consumidos os seus brinquedos. Nós, crianças, conhecíamos aqueles brinquedos um por um, de  tanto mirá-los nos mostruários - uns, pendentes de longos barbantes; outros, apenas entrevistos em suas caixas. Ah! maravilhosas bonecas louras, de chapéus de seda! pianos cujos sons cheiravam e metal e verniz! carneirinhos lanudos, de guizo ao pescoço! piões zunidores! - e uns bondes com algumas letras escritas ao contrário, coisa que muito nos seduzia - filhotes que éramos, então. de Mr. Jourdain, fazendo a nossa poesia concreta antes do tempo.
                  Às vezes, num aniversário, ou pelo Natal, conseguíamos receber de presente algum bonequinho de celulóide, modestos cavalinhos de lata, bolas de gude, barquinhos sem possibilidades de navegação... - pois aquelas admiráveis bonecas de filó, aqueles batalhões completos de soldados de chumbo, aquelas casas de madeira com portas e janelas, isso não chegávamos a imaginar sequer para onde iria. Amávamos os brinquedos sem esperança nem inveja, sabendo que jamais chegariam às nossas mãos, possuindo-os apenas em sonho, como se para isso, apenas, tivessem sido feitos.
                 Assim, o bando que passava, de casa para a escola e da escola para casa, parava longo tempo a contemplar aqueles brinquedos e lia aqueles nítidos preços, com seus cifrões e zeros, sem muita noção de valor - porque nós, crianças, de bolsos vazios, como os namorados antigos, éramos só renúncia e amor. Bastava-nos levar na memória aquelas imagens, e deixar cravados nelas, como setas, os nossos olhos.
                 Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d'água. A elas não interessavam nada peças de pano, cetins cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas. Brinquedos que jamais teriam possuído, sonho apenas da infância, amor platônico.
                 O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um fumoso galpão de cinzas.
                  Felizmente, ninguém tinha morrido - diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém? pensavam as crianças. Tinha morrido um mundo e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados.
                 E começavamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos sem socorro, nós, brinquedos que somos, talvez, de anjos distantes!

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Mulheres de Atenas

                        Augusto Boal/Chico Buarque

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas.

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados,
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar, violentos,
Carícias plenas,
Obcenas.

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pors seus maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas.

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidades
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas.

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas.

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas.

Gravação feita pelo autor em seu disco " Meus Caros Amigos " lançado em 1976. No ano seguinte, as meninas do Quarteto em Cy registraram em seu álbum ao vivo intitulado " Resistindo ".

Mulher Nova, Bonita e Carinhosa Faz o Homem Gemer Sem Sentir Dor

                                 Zé Ramalho/Otacílio Batista

Numa luta de gregos e troianos
Por Helena, a mulher de Menelau
Conta a história que um cavalo de pau
Terminava uma guerra de dez anos
Menelau, o maior dos espartanos
Venceu Páris, o grande sedutor
Humilhando a família de Heitor
Em defesa da honra caprichosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

Alexandre, figura desumana,
Fundador da famosa Alexandria,
Conquistava na Grécia e destruía
Quase toda a população tebana
A beleza atrativa de Roxana
Dominava o maior conquistador
E depois de vencê-la, o vencedor
Entregou-se à pagã mais que formosa.
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

A mulher tem na face dois brilhantes
Condutores fiéis do seu destino
Quem não ama o sorriso feminino
Desconhece a poesia de Cervantes.
A bravura dos grandes navegantes
Enfrentando a procela em seu furor
Se não fosse a mulher, mimosa flor
A história seria mentirosa.
Mulher nova bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

Virgulino Ferreira, o lampião
Bandoleiro das selvas nordestinas,
Sem temer a perigo nem ruínas
Foi o rei do cangaço no sertão,
Mas um dia sentiu no coração
O feitiço atrativo do amor
A mulata da terra do condor
Dominava uma fera perigosa.
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

Faixa-título do disco lançado por Amelinha em 1982. É a primeira gravação feita.

A guerra de Tróia e sua origem

                          Certo dia, no meio de uma festa de núpcias a que compareceram os deuses do Olimpo, Éris, a deusa da Discórdia, despeitada de não ter sido convidada, surgiu inesperadamente e atirou ao chão um fascinante pomo de ouro, dizendo que deveria pertencer à mais bela das deusas. Três delas - Atena, Hera e Afrodite - precipitaram-se para apanhá-lo.
                          Zeus,o pai dos deuses, pressentindo uma tragédia, interveio, mas, não querendo tomar partido em assunto tão delicado, tentou esquivar-se, nomeando outro deus para dirimir a questão. Como nenhum dos escolhidos aceitasse a incumbência por temer o rancor das perdedoras, Zeus, em sua sabedoria, chamou Hermes, o mensageiro do Olimpo, e disse-lhe que submetesse o caso a um mortal.
                          A escolha recaiu em Páris, um príncipe troiano, que foi imediatamente convocado. Cada deusa exibiu os seus predicados e tentou comprar a simpatia do juiz com ofertas irrecusáveis. Hera prometeu torná-lo rei de toda a vasta Ásia. Atena assegurou-lhe o dom da sabedoria e a vitória nos combates. Afrodite garantiu-lhe o amor da mulher mais bela da Terra.
                         Depois de muito refletir, o troiano proferiu a sentença: o pomo cobiçado coube a Afrodite, a deusa do amor.
                         A mais bela mulher, porém, era Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta. Páris, mesmo informado disso, não desistiu de seu propósito. Viajou para o sul da Grécia e foi muito bem recebido por Menelau, que de nada suspeitava. Ajudado por Afrodite, conseguiu seduzir a belíssima Helena e levou-a para Tróia, com muitas jóias e objetos de valor.
                         Indignado, Menelau convocou os chefes gregos para a assembleia, onde ficou decidido que a Grécia vingaria o ultraje e marcharia unida contra a poderosa Tróia.
                         Começou, assim, uma guerra sanguinária, que se estendeu por dez longos anos, até que, recorrendo a um hábil estratagema - o célebre cavalo de madeira -, os gregos acabaram por tomar a cidade.
                         Depois de arrasarem todas as casas, não deixando pedra sobre pedra, e de matarem os seus habitantes, os invasores transportaram para as naus o rico saque que haviam recolhido. Agora, só lhes faltava voltar para a pátria distante, onde os aguardavam, ansiosos, os braços das esposas amorosas.

Retirado da adaptação em português para literatura infanto-juvenil do livro " Odisséia " feita por Roberto Lacerda.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Sobre Política e Jardinagem

                                      Rubem Alves

                    De todas as vocações, a política é a mais nobre. " Vocação ", do latim vocare, quer dizer "chamado". Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um "fazer". No lugar desse "fazer" o vocacionado quer "fazer amor" com o mundo. Psicologia de amante: faria, mesmo que não ganhasse nada.
                    "Política" vem de polis,"cidade". A cidade era, para os gregos, um espaço seguro, ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade. O político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação política, assim, estaria a serviço da felicidade dos moradores da cidade.
                     Talvez por terem sido nômades no deserto, os hebreus não sonhavam com cidades: sonhavam com jardins. Quem mora no deserto sonha com oásis. Deus não criou uma cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemo a um profeta hebreu: "O que é política?", ele nos responderia: "A arte da jardinagem aplicada às coisas públicas."
                     O político por vocação é um apaixonado pelo grande jardim para todos. Seu amor é tão grande que ele abre mão do pequeno jardim que ele poderia plantar para si mesmo. De que vale um pequeno jardim se à sua volta está um deserto? É preciso que o deserto inteiro se transforme em jardim.
                     Amo a minha vocação, que é escrever. Literatura é uma vocação bela e fraca. O escritor tem amor, mas não tem poder. Mas o político tem. Um político por vocação é um poeta forte: ele tem o poder de transformar poemas sobre jardins em jardins de verdade. A vocação política é transformar sonhos em realidade. É uma vocação tão feliz que Platão sugeriu que os políticos não precisam possuir nada: bastar-lhes-ia o grande jardim para todos. Seria indigno que o jardineiro tivesse um espaço privilegiado, melhor e diferente do espaço ocupado por todos. Conheci e conheço muitos políticos por vocação. Sua vida foi e continua a ser um motivo de esperança.
                     Vocação é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria ação. Na profissão o prazer se encontra não na ação. O prazer está no ganho que dela se deriva. O homem movido pela vocação é um amante. Faz amor com a amada pela alegria de fazer amor. O profissional não ama a mulher. Ele ama o dinheiro que recebe dela. É um gigolô.
                      Todas as vocações podem ser transformadas em profissões. O jardineiro por vocação ama o jardim de todos. O jardineiro por profissão usa o jardim de todos para construir seu jardim privado, ainda que, para que isso aconteça, ao seu redor aumente o deserto e o sofrimento.
                      Assim é a política. São muitos os políticos profissionais. Posso, então, enunciar minha segunda tese: de todas as profissões política é a mais vil. O que explica o desencanto total do povo, em relação à política. Guimarães Rosa, perguntado por Günter Lorenz se ele se considerava político, respondeu:
                     Eu jamais poderia ser político com toda essa charlatanice da realidade... Ao contrário dos "legítimos" políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. O político pensa apenas em minutos. Sou escritor e penso em eternidades. Eu penso na ressurreição do homem.
                     Quem pensa em minutos não tem paciência para plantar árvores. Uma árvore leva muitos anos para crescer. É mais lucrativo cortá-las.
                     Nosso futuro depende dessa luta entre políticos por vocação e políticos por profissão. O triste é que muitos que sentem o chamado da política não têm coragem de atendê-lo, por medo da vergonha de serem confundidos com gigolôs e de terem de conviver com gigolôs.
                     Escrevo para vocês, jovens, para seduzí-los à vocação política. Talvez haja jardineiros adormecidos dentro de vocês. A escuta da vocação é difícil, porque ela é perturbada pela gritaria das escolhas esperadas, normais: medicina, engenharia, computação, direito, ciência. Todas elas, legítimas, se forem vocação. Mas todas elas afunilantes: vão colocá-los num pequeno canto do jardim, muito distante do lugar onde o destino do jardim é decidido. Não seria muito mais fascinante participar dos destinos do jardim?
                    Celebramos os quinhentos anos do descobrimento do Brasil. Os descobridores, ao chegarem, não encontraram um jardim. Encontraram uma selva. Selva não é jardim. Selvas são cruéis e insensíveis, indiferentes ao sofrimento e à morte. Uma selva é uma parte da natureza ainda não tocada pela mão do homem. Aquela selva poderia ter sido transformada num jardim. Não foi. Os que sobre ela agiram não eram jardineiros. Eram lenhadores e madeireiros. E foi assim que a selva, que poderia ter se tornado jardim para a felicidade de todos, foi sendo transformada em desertos salpicados de luxuriantes jardins privados onde uns poucos encontram vida e prazer.
                     Há descobrimentos de origens. Mais belos são os descobrimentos de destinos. Talvez, então, se os políticos por vocação se apossarem do jardim, poderemos começar a traçar um novo destino. Então, ao invés de desertos e jardins privados, teremos um grande jardim para todos, obra de homens que tiveram o amor e a paciência de plantar árvores à cuja sombra nunca se assentariam.

Os Trabalhos da Mão

                              Alfredo Bosi


                  Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. A mão sirva-se de exemplo.
                  A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão apanha o objeto, remove-o, achega-o ao corpo, lança-o de si. A mão puxa e empurra, junta e espalha, arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola; roça, toca, apalpa, acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra; depois massageia o músculo dorido.
                 A mão tateia com as pontas dos dedos, apalpa e calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate.
                 A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pelo e o alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorciza.
                 Acusa com o índex, aplaude com as palvas, protege com a concha. Faz viver alçando o polegar; baixando-o, manda matar.
                 Mede com o palmo, sopesa com a palma.
                 Aponta com gestos o eu, o tu, o ele; o aqui, o alí, o aí; o hoje, o ontem, o amanhã; o pouco, o muito, o mais ou menos; o um, o dois, o três, os números até dez e os seus múltiplos e quebrados. O não, o nunca, o nada.
                 É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura do cego.
                 Faz levantar a voz, amaina o vozerio, impõe o silêncio. Saúda o amigo balançando, leve ao lado da cabeça e, no mesmo aceno, estira o braço e diz adeus. Urge e manda parar. Traz ao mundo a criança, esgana o inimigo.
                 Ensaboa a roupa, esfrega, torce, enxágua, estende-a ao sol, recolhe-as dos varais, desfaz-lhe as pregas, dobra, guarda-a.
                 A mão prepara o alimento. Debulha o grão, depela o legume, desfolha a verdura, descama o peixe, depena a ave e a desossa. Limpa. Espreme até extrai o suco. Piloa de punho fechado, corta a quina, mistura, amassa, sova, espalma, enrola, amacia, unta, recobre, enfarinha, entrouxa, enforma, desenforma, polvilha, guarnece, afeita, serve.
                A mão joga a bola e apanha, apara e rebate. Soergue-a e deixa-a cair.
                A mão faz som; bate na perna e no peito, marca o compasso, percute o tambor e o pandeiro, batuca, estala as asas das castanholas, dedilha as cordas da harpa e do violão, dedilha as teclas do cravo e do piano, empunha o arco do violino eo violoncelo, empunha o tubo das madeiras e dos metais. Os dedos cerram e abrem o caminho do sopro que sai pelos furos da flauta, do clarim e do oboé. A mão rege a orquestra.
                A mão, portadora do segredo. As mãos postas oram, palma contra palma ou entrelaçados os dedos. Com a mão o fiel se persigna. A mão mistura o sal e a água do batismo e asperge o novo cristão; a mão unge de óleo no crisma, enquanto com a destra o padrinho toca no ombro do afilhado; os noivos estendem as mãos para celebrarem o sacramento do amor e dão-se mutuamente os anulares para receberem o anel da aliança; a mão absolve do pecado o penitente; as mãos servem o pão da eucaristia ao comungante; as mãos consagram o novo sacerdote; as mãos levam a extrema-unção ao que vai morrer; e ao morto, a benção e o voto de paz.
               Para perfazer tantíssimas ações basta-lhe uma breve mas dútil anatomia: oito ossinhos no pulso, cinco no metacarpo e os dedos com as suas falanges, falanginhas e falangetas.
               Mas seria nunca acabar dizer tudo quanto a mão consegue fazer quando prolongam e potenciam os instrumentos que o engenho humano foi inventando na sua contradança de precisões e desejos.
               A mão lavra a terra há pelo menos oito mil anos, quando começou o Neolítico em várias partes do Globo. Com as mãos, desde que criou a agricultura, o homem semeia, poda e colhe. Empunhando o machado e a foice, desbasta a floresta; com a enxada revolve a terra, limpa o mato, abre covas. Com a picareta, escava e desenterroa. Com a pá, estruma. Com o rastelo e o forcado, gradeia, sulca e limpa. Com o regador, água. Desgalha com a faca e o tesourão.
              Manejando o cabo dos utensílios de cozinha, o homem pode talhar a carne, trinchar as aves, espetar os alimentos sólidos e conter os líquidos que escoariam pelas juntas das mãos em concha.
              Morar é possível porque mãos firmes de pele dura amassam o barro, empilham pedras, atam bambus, assentam tijolos, aprumam o fio, trançam ripas, diluem a cal virgem, moldam o concreto, argamassam juntas, desempenam reboco, armam o madeirame, cobrem com telha, goivo ou sapé, pregam ripas no forro, pregam tábuas no assoalho, rejuntam azulejos, abrem portas, recortam janelas, chumbam batentes, dão pintura a última demão.
              A mão do oleiro leva o barro ao fogo: tijolo. A mão do vidreiro faz a bolha de areia, e do sopro nasce o cristal.
              A mão da mulher tem olheiros nas pontas dedos: risca o pano, enfia a agulha, costura, alinhava, pesponta, chuleia, cerze, caseia. Prende o tecido nos aros do bastidor: tece e urde e borda.
              A mão do lenhador brande o machado e racha o tronco. Vem o carpinteiro e da lenha faz o lenho: raspa e desbasta com a plaina, apara com o formão, alisa e desempena com a lixa, penetra com cunha, corta com a serra, entalha com a talhadeira, boleia com o torno, crava pregos com o martelo, marcheta com as tachas, encera e lustra com o feltro.
              O ferreiro malha o ferro na bigorna, com o fogo funde, com o cobre o solda, com a broca o fura, com a lima rói, com a tenaz o verga, torce e arrebita.
              O gravador entalha e chanfra com o cinzel, pule com o buril. O ourives lapida com o diamante, corta com o cinzel, afina com o buril, engasta com a pinça, apura com o esmeril.
              O escultor corta e lavra com o escopro e o formão.
              O pintor, lápis ou pincel na mão, risca, rabisca, alinha, enquadra, traça, esboça, debuxa, mancha, pincela, pontilha, empastela, retoca, remata.
              O escritor garatuja, rascunha, escreve, reescreve, rasura, emenda, cancela, apaga...

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Meu Pai Oxalá

                         Toquinho/Vinícius de Moraes


Atotô Abaluayê
Atotô Babá
Atotô Abaluayê
Atotô Babá

Vem das águas de Oxalá
Essa mágoa que me dá
Ela parecia o dia
A romper da escuridão
Linda no seu manto todo branco
Em meio à procissão
E eu, que ela nem via
Ao Deus pedia amor e proteção

Meu pai Oxalá é o rei
Venha me valer
O velho Omulu
Atotô Abaluayê

Que vontade de chorar
No terreiro de Oxalá
Quando eu dei com a minha ingrata
Que era filha de Iansã
Com a sua espada cor de prata
Em meio à multidão
Cercando Xangô num balanceio
Cheio de paixão

Meu pai Oxalá é o rei
Venha me valer
O velho Omulu
Atotô Abaluayê

Música antiga de Vinícius e Toquinho regravada por Daniela Mercury em seu CD Balé Mulato de 2005

É D'Oxum

                    Gerônimo/Vevé Calazans

Nessa cidade todo mundo é d'Oxum
Homem, menino, menina, mulher
Toda essa gente irradia magia

Presente na água doce
Presente na água salgada
E toda cidade brilha

Seja tenente ou filho de pescador
Ou importante desembargador
Se dar presente é tudo uma coisa só

A moça que mora na água
Não faz distinção de cor
E toda cidade é d'Oxum

Nessa cidade...

É d'Oxum, é d'Oxum, é d'Oxum

Nessa cidade todo mundo é d'Oxum
Homem, menino, menina, mulher
Toda essa gente irradia magia

Presente na água doce
Presente na água salgada
E toda cidade brilha

É d'Oxum, é d'Oxum, é d'Oxum

Eu vou navegar
Eu vou navegar nas ondas do mar
Eu vou navegar

música do primeiro CD da cantora baiana Cátia Guimma gravado em 1998; é a gravação mais bonita...

Iansã

                              Caetano Veloso/Gilberto Gil

e dambure
e dambure mavanjú
e dambure bela oiá

Senhora das nuvens de chumbo
Senhora do mundo dentro de mim
Rainha dos raios, rainha dos raios,

Rainha dos raios, tempo bom, tempo ruim
Senhora das chuvas de junho
Senhora de tudo dentro de mim
Rainha dos raios, rainha dos raios...
Eu sou o céu para as tuas tempestades
Um céu partido ao meio no meio da tarde
Eu sou um céu para as tuas tempestades
Deusa pagã dos relâmpagos
Das chuvas de todo ano
Dentro de mim

aê dindin aê dindá
na matamba de aruê
na matamba de aruá

música do CD Tecnomacumba gravado em 2006 por Rita Ribeiro

A Deusa dos Orixás

                    Toninho/Romildo

o vento bateu na saia de Iansã
o vento bateu pra Iansã rodar

Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar
Mas Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar
Iansã penteia os seus cabelos macios
Quando a luz da lua cheia
Clareia as águas dos rios
Ogum sonhava com a filha de Nanã
E pensava que as estrelas
Eram os olhos de Iansã
Mas Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar
Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar
Na terra dos orixás, o amor se dividia
Entre um deus que era de paz
E outro deus que combatia
Como a luta só termina
Quando existe um vencedor
Iansã virou rainha da coroa de Xangô

oiá oiá oiá me
óia matamba me cacurucajo zinguê

a gravação original desta música foi feita por Clara Nunes em 1976 no então LP Claridade e regravada por Rita Ribeiro em seu CD Tecnomacumba de 2006.

São João Xangô Menino

                             Caetano Veloso/Gilberto Gil


Ah, Xangô Xangô menino
Da fogueira de São João
Quero ser sempre o menino Xangô
Da fogueira de São João

Céu de estrela sem destino
De beleza sem razão
Tome conta do destino Xangô
Da beleza e da razão

Viva São João
Viva o milho verde
Viva São João
Viva o brilho verde
Viva São João das matas de Oxossi
Viva São João

Olha pro céu meu amor
Veja como ele está lindo
Noite tão fria de junho Xangô
Canto tanto canto lindo

Fogo fogo de artifício
Quero ser sempre o menino
As estrelas deste mundo Xangô
Ah, São João Xangô menino

Viva São João
Viva o milho verde
Viva São João
Viva o brilho verde
Viva São João
Das matas de Oxossi
Viva São João


meu pai são joão batista é xangô
é dono do meu destino até o fim
se um dia me faltar
a fé em meu senhor
derrube essa pedreira sobre mim
meu pai são joão batista é xangô

(Ponto de Macumba recolhido e adaptado por Eli Camargo)

música do CD Brasileirinho gravado em 2004 por Maria Bethânia

Xangô

                            Chico César/ Suzana Salles


É Xangô que vai chegar
Por Alá canta o corão
Coro Atlântico verão
Acalanto uma canção

Xangô baixou em Shangai
Na pele de um samurai
Em nome da mãe e do pai
Xangô quando entra não sai
Xangô chamou um xamã
Nas terras de Aldebarã
Em nome do irmão, da irmã
Xangô é a luz da manhã

É Xangô que vai chegar
Por Alá canta o corão
Coro Atlântico verão
Acalanto uma canção

Xangô pluma da cultura
O bico da bic futura
Seu nome é a água que fura
Dureza da pedra que dura
Xangô agogô da planície
Xango versos que Xangô disse
O chão, a chã superfície
Me viu antes que eu lhe visse

É Xangô que vai chegar
Por Alá canta o corão
Coro Atlântico verão
Acalanto uma canção

Música do CD As Sílabas da cantora paulistana Suzana Salles gravado em 2001.