domingo, 29 de abril de 2012

Mãe

                  Domingos Pellegrini Jr.




O filho chegou estremecendo as tábuas do assoalho. Respira forte; cheiro de abobrinha cozida, fritura, sabão de coco; a camisa azul suada, os sapatos chocos; mas a mãe repara: não choveu - em que madrugadas foi o filho buscar chuva? No útero dela,, o avental úmido; na cara dele, a barba de três dias. Ele vai até o tanque no fundo do quintal, afasta os tinhorões, lava a cara, a nuca, os cabelos; a mãe desconfia: espantando sono, espantando temores. E fica vendo que fica no vento, magro e duro, fitando algum horizonte pralém dos lençóis no varal.

Quando a mãe chama - Vem almoçar, meu filho - ele não vem logo; ela engana a aflição espantando dos pratos uma poeira, tão fina que não existiria se o filho não continuasse mirando muito além dos lençóis molhados.

- Vem, meu filho, vem - e a cachorra continua estirada com as tetas nos ladrilhos. Já vou, mãe, já vou. A ninhada desmamou, as tetas da cachorra estão descansadas, a cachorra está descansada; os filhotes estão no mundo com garras e dentes.

- Vai esfriar na mesa, meu filho.
- Já vou, mãe, já disse que já vou.

Mas o que é que esse menino tanto vê nesse varal, o que é que tanto lê nesses lençóis, meu Deus do céu? Só pode ser coisa desses livros, esses livros que ele traz e esconde lá em cima do guarda-roupa, lê, devolve, traz outros, lê, devolve e nunca termina de pensar.

Abobrinha, arroz, feijão; e carne moída.

O filho mastiga os pensamentos de boca bem fechada; e a mãe não pode abrir a boca do filho e arrancar essas pedras; e sabe que ele vai cuspir de repente as palavras, retas, vão ficar encravadas na parede e sempre que ela olhar, pelo resto da vida, vai ver a decisão do filho ali do lado de São Jorge matando o dragão, eternamente repetindo entre as moscas e as lagartixas:

- Mãe, vou sumir.

Não mata sua mãe, meu filho - ela quase mas não diz; sabe que o filho não é ruim, não há de ser, não pode ser - e por que seria? É bonito, tem saúde, não desgosta de trabalho nem passou fome um dia que fosse na vida: então que motivo pode ter pra essa raiva tão contra tudo?

- Por que, meu filho, que te falta?
- Pra mim, nada, mas não sou só eu no mundo, mãe.

Ela fica só balançando a cabeça, o prato ainda vazio. Ele molha miolo de pão no caldo de carne, joga no chão e a cachorra disputa com o último filhote que nenhum vizinho pediu. O filhote avança, a cachorra rosna e ameaça, ele não recua, ela morde, ele vai se encolher num canto, ela come depressa. A mãe fica olhando e balançando a cabeça.

- Não entendo, meu filho. Por que tanta preocupação com os outros?

- A gente não é cachorro, mãe - ele passa outro pedaço de pão no prato, joga para o filhote.

Ela levanta os olhos do prato, vê a ponta de um livro lá em cima do guarda-roupa. Suspira como se tivesse comido muito, começa a tirar a mesa e leva também o prato limpo, de tão acostumada a lavar dois pratos.

Depois uma nuvem cinza acompanha o filho enquanto mexe nas gavetas, junta as calças e camisas, e a mãe sabe em cada uma onde está cada cerzido, e que botões precisam ser reforçados; e se arrasta com agulha e linha atrás do filho estremecendo a casa de gaveta em gaveta: - Minha certidão de nascimento, mãe, cadê?

- Aqui, meu filho, aqui, mas pra quê? - ela abre a boca mas a pergunta não sai, fica ecoando da garganta até as varizes. - Pra que de repente a certidão de nascimento se tem tantos outros documentos?

Mas ela sabe em que canto de fundo de gaveta está o papel, e pega com tanto cuidado como se pudesse quebrar; mas ele rasga - e pergunta também das fotos.

- Preciso sumir mesmo, mãe, sem deixar nada pra trás. Pro meu próprio bem.

Ela entrega o maço de fotos amarrado com cadarços - Do seu primeiro par de sapatos, meu filho, mas é pro seu próprio bem...

Ele revê as fotos uma por uma, rasga umas, devolve as de menino e ela fica olhando com olhos perdidos no tempo. Mesmo de costas enchendo a mala, ele sente o cheiro de aflição e de sabão de coco da mãe; e se apressa: esse cheiro cresce e pesa nas costas; e enfia a escova de dentes entre meias e cuecas. A mãe então senta com o peso das fotos no colo, e com a confirmação de todos os pressentimentos: é verdade, o filho vai sair fugido; só podem ser os livros, as companhias, essas madrugadas fora de casa, as unhas sujas de tinta e os olhos secos de sono.

Sente um cansaço de se afundar no chão, mas não consegue ficar sentada; zonzeia pela casa atrás do filho e as tábuas rangem, rangem mais ainda porque o filho nada fala, embrulha pão com queijo; e os chinelos da mãe se martirizam das tábuas para os ladrilhos, dos ladrilhos para as tábuas, procurando se achar entre a sala e a cozinha. Mas, de repente, em quatro passos o filho alcança a porta da frente, a mão na maçaneta destampa a casa para o vento. E ele pega a mala depressa, a outra mão larga a maçaneta e abraça - Até, mãe - mas ela sempre sentirá a mão do filho quando pegar na maçaneta; e enquanto ele desaparece entre os alecrins, o vento vem e vai com a voz dele, vai e vem - Eu volto, mãe.

- Deus queira, meu filho - ela fala tão baixinho que nem se escuta. O filho não olha para trás e ela não fecha a porta, fica na varanda com o vento e o cheiro dos alecrins, muito tempo na varanda com o cheiro suado e azul dos alecrins.

Agora experimenta descruzar as mãos sobre a garganta, nem se lembra quando foi que colocou as mãos ali; tinha vontade de chorar mas não chorou, apertou a garganta e assim ficou até agora. Agora consegue andar na varanda e reparar em quem passa, uns ladeira abaixo, outros ladeira acima na direção do filho. E todo dia nessa hora acostuma olhar a rua, principalmente rua acima por onde o filho partiu quando as azaléias ainda não tinham florido. Agora rega o antúrio e não mais se preocupa em cortar as folhas secas, o tempo há de fazer tudo que deve ser feito. Depois entra e, da ponta do corredor, vê o filho lá na pia do banheiro, curvado com a cara respingando e esticando a mão pra toalha. Agora ela já passa pela porta do quarto e vê o filho sentado na beira da cama, a cabeça enfiada no livro porque está anoitecendo; e dá uma tristeza de ver o filho lendo assim porque estraga a vista.


Depois ela ouve um estalo como se fosse mas não é a maçaneta; continua tirando os chinelos e calçando os sapatos, foi só uma tábua que estalou com o calor. Agora já está entregando na pensão os lençóis lavados e passados, uma pilha tão alta nos braços que mal consegue ver por onde anda; deixa tudo junto com um suspiro e fica esfregando a dor nas costas e amolecendo os braços endurecidos; e  respondendo que não, ainda não tem notícia nenhuma do filho, a arrumadeira sempre pergunta, ela sempre responde do mesmo jeito, e assim, nessa hora parece sempre um dia repetido. Mas não: o filho pode até ter voltado, pode estar em casa esperando a janta, então ela diz que tem de voltar logo.


Vai costurar com o rádio ligado e quase não ouve quando batem na porta os dois que, agora, já estão revistando a casa e perguntando. A senhora não tem mesmo notícia nenhuma dele? Nem uma fotografia?


E agora ela acompanha os dois homens na noite, as mãos cruzadas sobre o útero.


Agora sentada, o olhar perdido num cinzeiro duma escrivaninha, escuta mais perguntas, repete respostas,  trançando e apertando os dedos. Repete que o filho é bom, podem acreditar, nunca foi farrista, nunca foi briguento, um primor de moço, só vendo. Os homens riem, dizem que ela não conhece o próprio filho, que ele é um perigo pra todas as famílias. Ela balança a cabeça como se uma mola disparasse no pescoço, não, não, não, não é possível, devem estar confundindo com algum outro, outra mãe, outro filho; pois o dela até o dinheiro que ganhava com tanto sacrifício, coitado, queria dar todo em casa; de modo que só pode ser confusão, ela conhece bem o filho. Mas dizem que não, que conhecem melhor; e não querem falatório, querem respostas, disparam as perguntas uma atrás da outra. Quem ia em casa. Com quem ele andava. Nomes. Fotografias. Conhece este? E este, já viu alguma vez?


Ela olha através das fotos, só repete que não, não e não. Mas ele saía à noite? Viajava? Trazia livros? Embrulhos? Falou de algum endereço alguma vez? Tinha arma?


Não, não. Não, de jeito nenhum, não conhecem o filho dela, só podem estar confundindo com outro.


Os homens dão murros na mesa, ela não se assusta. Essa dona é escolada, dizem, essa velha esconde leite; mas ela diz que não, não sabe de nada do que estão perguntando, só sabe que o filho era e decerto continua sendo bom. Vê fotos dos amigos dele e repete que não, nunca viu nenhum, só podem  mesmo estar confundindo com outro, e isso vai enervando tanto os homens que acendem um cigarro no outro, ela tosse na sala enfumaçada.


Quando vê, tem um amigo do filho ali na frente dela, a cara inchada de apanhar; mas nem precisa apanhar mais pra dizer que sim, que reconhece essa mulher como mãe do - e diz um outro nome; ela levanta da cadeira: - Não falei? Estão confundindo meu filho com outro - mas recebe um safanão e cai sentada de novo.


- Senta aí, sua cadela, e só responde o que for perguntado.


E ela continua respondendo não, não e não e, quando perguntam se nunca tinha ouvido o nome de guerra do filho, responde que só podem estar confundindo com outro, o filho dela não é de guerra, é um moço bom. Então perguntam de novo se ela não conhece mesmo o amigo dele, ali de cara inchada e olhar no chão. - Hem, conhece ou não conhece, sua cadela? - e ela responde mais uma vez  que não; pode até ter conhecido mas é muito esquecida, e aproveita pra dizer baixinho que estão mesmo confundindo, não é uma cadela, não é uma cadela não, senhor.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Um guarda-chuva no parque

                                  Sylvia Orthof

Lá estava a velha: muito magrinha, com o seu guarda-chuva vermelho, num vestido de bolinhas brancas sobre fundo azul-marinho. Magrinha e velha. Será que eu já disse que ela era velha? Devo ter dito, tenho mania de repetir as coisas, como aquele animador de programas de tevê: Engraçado, coloquei dois pontos pra dizer como o animador falava, aí me deu um branco, esqueci. As bolinhas eram brancas, sobre fundo azul-marinho, mas quem olhasse ia jurar que o vestido era preto. Todas as velhinhas magras geralmente usam preto, sobretudo quando desenhadas em livros. É o óbvio.

Mas havia o guarda-chuva vermelho. Será que guarda-chuva tem hífen? Vou olhar no Aurélio.

Deu preguiça. Abri na palavra " gorduroso ". Ora, isso nada tem a ver com a velha magra! Ela rodava o guarda-chuva, vermelho, insolitamente rubro, como os lábios de Marilyn.

Não chovia, mas o guarda-chuva girava sobre a cabeça da velha magra, de vestido de bolinhas, fundo azul da noite. O azul da noite era um tecido, fulgurante de falsas estrelas, sabia? Local: um parque de diversões. Onde? Qualquer lugar, contanto que...

A velha girava o guarda-chuva e sorria a sua dentadura branca sobre o fundo azul da noite e tudo piscava, inclusive a roda-gigante. Aliás, o guarda-chuva girava no mesmo ritmo, só agora que me dou conta de que a velha estava ali, e que a velha sou eu.

Comprei o guarda-chuva vermelho por causa de uma professora (isso foi há mais de meio século) - que teve um ousado guarda-chuva grená. Naquele tempo, os guarda-chuvas todos eram negros e bem compotados. Escrevi compotados, de compota, mas você entendeu. Os erros, adoro os erros... eros... era uma vez...

Era uma vez uma velha magrinha, de guarda-chuva escarlate, como os lábios rubros de um beijo. Era eu, ali, no parque, e a roda girava. Se eu parar de girar o meu guarda-chuva, tenho certeza absoluta de que enguiço a roda-gigante. É preciso tomar tento, girar, rodar, tal qual uma ciranda de moto-perpétuo. Meu nome é Perpétua, sabia? Acho que foi por causa deste nome que continuo viva, enquanto os outros vão morrendo, morrendo. Eu me chamo perpetuamente assim e sou eu que comando a roda-gigante, luzes brancas que piscam sobre a noite azul-marinha... ou azul-marinho?

A menina está ali: cabelos louros, rindo, sentada na roda-gigante. Eu a olho, tomo conta, é minha neta, sabia? Linda. Eu sou avó de Linda. Ela é eternamente, perpetuamente linda, com seus cachos enroladinhos, que parecem molas. Linda gira, por causa do meu guarda-chuva que rege a roda. Preciso girar em ritmo certo, que é para não assustar a minha netinha Linda, que está num grupo de crianças, mas só ela é que se destaca, nem vejo as outras, todas cinzentas, comuns. Minha neta parece uma estrela e sorri. Linda.

Já é tarde para crianças ficarem no parque de diversões. No meu tempo, os guarda-chuvas eram negros, as crianças na cama logo depois da janta.

A gente brincava na calçada, brincava, brincava. As mães vinham e chamavam:

- Hora do banho!

O banho com sabonete cheiroso, depois o talco, o vestido engomado para jantar com a família. Tinha reza antes do jantar, minha avó era muito religiosa.

Tomávamos sopa. Eu odiava sopa de macarrão, que era pra engrossar as pernas. Gordura é formosura, dizia o pai, olhando para a minha magreza, apreensivo. Magra não casava, ficava para tia.

Mas eu, mesmo magra, casei. Era lindo o meu marido, naquele uniforme de major do exército!

Agora estou viúva... há quanto tempo? O tempo é um ponteiro que gira, preciso ficar atenta, perpetuamente comandando a roda-gigante.

Meu Deus! Fiquei rememorando, esqueci de girar o guarda-chuva e a roda parou!

Onde está minha neta? Onde? Onde?

Novas pessoas estão embarcando... Fecho o guarda-chuva e corro, procurando sua cabecinha de cachos.

É noite. É tão difícil achar uma criança, santo Deus, é noite e vejo, ali no fundo, o trem-fantasma, com seus anúncios de caveiras requebrantes.

Sou velha e magra, mas ainda não sou caveira, se não encontrar minha neta, vou ter um ataque do coração, sinto as palpitações me impedindo de respirar direito e grito:

- Linda! Linda!

Tropeço sobre o guarda-chuva e caio. A senhora está bem? Estou mal, perdi minha neta, seu guarda, minha neta neste parque, ela é loura, veja o retrato dela, procure-a, pelo amor de Deus!

Alto-falantes chamam por Linda. Perpétua, eu, quase desfalecida de horror e medo. Pegaram meu endereço, uma criança sumiu, vão telefonar para a minha filha... onde está o meu guarda-chuva? Perdi minha sombrinha vermelha, seu guarda... chuva... lindamente perpétua é a imagem da fotografia da menina, de cachos louros.

Minha filha chega, apressada, chamada pelo telefonema.

- Filha, perdi... perdi...

- Ela perdeu a netinha loura, a menina desta foto, ela estava na roda-gigante.

Minha filha olha o retrato, abana a cabeça e diz:

- Ela não tem neta. O retrato é dela, da minha velha, quando menina.

Silêncio. Todos me olham.

- Mas eu era linda, gente! Eu me perdi, eu me procuro, entendem? Esta velha magra não sou eu: eu tenho cachos louros, estava na roda do tempo... mas me distraí. Vocês viram meu guarda-chuva?

conto do livro Papos de Anjo.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Aqueles Dois

                           Caio Fernando Abreu 

I

    A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a  repartição era como " um deserto de almas ". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra - talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.

Não chegaram a usar palavras como " especial ", " diferente " ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um  curso frustrado de Arquitetura. Talvez, por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.

Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um.
Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom final de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa - fados, astros, sinas, quem saberá? - conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.

Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de " um deserto de almas ", para  não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los - ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.

II

Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste - e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade - de certa forma, também em nenhuma outra -, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.

Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.

Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficavam nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia.

Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mas frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse, entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.

III

Cruzavam-se silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.


Até um dia em que Saul chegou atrasado e,  respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntou: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLaine, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.


Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperanças e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva de meia-noite e  novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.


Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabavam cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tu Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.


Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tu Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.


IV


Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta no sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto , nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tu Me Acostumbraste.  Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul de foi.


Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente e reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.


Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinham. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava - vezenquando El Dia Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda -, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram  com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.


V


Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer  aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele e reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.


No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora.


Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. À noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho:  caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto.


Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menina. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe - eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio, era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.


Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes - ninguém, mundo, sempre - e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à  repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa, acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.


VI


Depois, chegou o Natal, o Ano Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos  parecem beijos de quem nunca amou.


Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um em uma cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.


Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias - e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro - ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como " relação anormal e ostensiva ", " desavergonhada aberração ", " comportamento doentio ", " psicologia deformada ", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre outras coisas como a-reputação-de-nossa-firma,  declarasse frio: os senhores estão despedidos.


Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tempo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tu Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.


Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina.


Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.




conto do livro " Morangos Mofados ".

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A Gleba Me Transfigura

                  Cora Coralina


Sinto que sou abelha no seu artesanato.
Meus versos têm cheiro dos matos, dos bois e dos currais.
Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas.
Amo a terra de um místico amor consagrado, num esponsal sublimado,
procriador e fecundo.
Sinto seus trabalhadores rudes e obscuros,
suas aspirações inalcançadas, apreensões e desenganos.
Plantei e colhi pelas suas mãos calosas
e tão mal remuneradas.
Participamos receosos do sol e da chuva em desencontro,
nas lavouras carecidas.
Acompanhamos atentos, trovões longínquos e o riscar
de relâmpagos no escuro da noite, irmanados no regozijo
das formações escuras e pejadas no espaço
e o refrigério da chuva nas roças plantadas, nos pastos maduros
e nas cabeceiras das aguadas.
Minha identificação profunda e amorosa
com a terra e com os que nela trabalham.


A gleba me transfigura. Dentro da gleba,
ouvindo o mugido da vacada, o mééé dos bezerros,
o roncar e focinhar dos porcos, o cantar dos galos,
o cacarejar das poedeiras, o latir dos cães,
eu me identifico.
Sou árvore, sou tronco, sou raiz, sou folha,
sou graveto, sou mato, sou paiol
e sou a velha tulha de barro.
Pela minha voz cantam todos os pássaros, piam as cobras
e coaxam as rãs, mugem todas as boiadas que vão pelas estradas.
Sou a espiga e o grão que retornam à terra.
Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando,
é o arado milenário que sulca.
Meus versos têm relances de enxada, gume de foice e peso de machado.
Cheiro de currais e gosto de terra.


Eu me procuro no passado.
Procuro a mulher sitiante, neta de sesmeiros.
Procuro Aninha, a inzoneira que conversava com as formigas,
e seu comadrio com o ninho das rolinhas.
Onde está Aninha, a inzoneira,
menina do banco das mais atrasadas da escola de Mestra Silvina...
Onde ficaram os bancos e as velhas cartilhas da minha escola primária?
Minha mestra... Minha mestra... beijo-lhe as mãos,
tão pobre!...
Meus velhos colegas, um a um foram partindo, raleando a fileira...
Aninha, a sobrevivente, sua escrita pesada, assentada
nas pedras da nossa cidade...


Amo a terra de um velho amor consagrado
através de gerações de avós rústicos, encartados
nas minas e na terra latifundiária, sesmeiros.
A gleba está dentro de mim. Eu sou a terra.
Identificada com seus homens rudes e obscuros,
enxadeiros, machadeiros e boiadeiros, peões e moradores.
Seus trabalhos rotineiros, suas limitadas aspirações.
Partilhei com eles de esperança e desenganos.


Juntos, rezamos pela chuva e pelo sol.
Assuntamos de um trovão longínquo, de um fuzilar
de relâmpagos, de um sol fulgurante e desesperador,
abatendo as lavouras carecidas.
Festejamos a formação no espaço de grandes nuvens escuras
e pejadas para a salvação das lavouras a se perderem.
Plantei pelas suas enxadas e suas mãos calosas.
Colhi pelo seu esforço e constância.


Minha identificação com a gleba e com a sua gente.
Mulher da roça eu o sou. Mulher operária, doceira,
abelha no seu artesanato, boa cozinheira, boa lavadeira.
A gleba me transfigura, sou semente, sou pedra.
Pela minha voz cantam todos os pássaros do mundo.
Sou a cigarra cantadeira de um longo estio que se chama Vida.
Sou formiga incansável, diligente, compondo seus abastos.
Em mim a planta renasce e floresce, sementeia e sobrevive.
Sou a espiga e o grão fecundo que retornam à terra.
Minha pena é a enxada do plantador, é o arado que vai sulcando
para a colheita das gerações.
Eu sou o velho paiol e a velha tulha roceira.
Eu sou a terra milenária, eu venho de milênios.
Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada
no ventre escuro da terra.


poema retirado do livro Vintém de Cobre - meias confissões de Aninha. Cora Coralina é o pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, poetisa goiana nascida em 1889 e falecida em 1985.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Blowing in the wind

                      Bob Dylan/versão: Diana Pequeno


Quantos caminhos
Um homem deve andar
Pra que seja aceito como um homem

Quantos mares
Uma gaivota irá cruzar
Pra poder descansar na areia

Quanto tempo
As balas de canhões explodirão
Antes de serem proibidas

The answer my friend
Is blowing in the wind
The answer is blowing the wind

Quantas vezes
Deve um homem olhar pra cima
Para poder ver o céu

Quantos ouvidos
Um homem deve ter
Para ouvir os lamentos do povo

Quantas mortes
Ainda serão necessárias
Para que se saiba que já se matou demais

  The answer my friend
Is blowing in the wind
The answer is blowing the wind


Quanto tempo
Pode uma montanha existir
Antes que o mar a desfaça

Quantos anos
Pode um povo viver
Sem conhecer a liberdade

Quanto tempo
Um homem deve virar a cabeça
Fingindo não ver o que está vendo

The answer my friend
Is blowing in the wind
The answer is blowing the wind


Bob Dylan lançou esta música em 1963. Ouvindo uma entrevista de Diana Pequeno, ela diz ter feito uma letra em português quando ainda era estudante universitária e cantava pelo campus; quando foi gravar seu então primeiro LP em 1978, resolveu incluí-la no repertório do álbum... É outra daquelas canções que nunca envelhecem!!

Para Você Me Educar

                           Vital Didonet

Você precisa me conhecer, precisa saber a minha vida,
meu modo de viver e sobreviver,
conhecer a fundo as coisas nas quais eu creio
e às quais me agarro nos momentos de solidão,
desespero e sofrimento.

Você precisa saber e entender as verdades,
pessoas e fatos aos quais eu atribuo forças superiores às minhas
e às quais me entrego quando preciso ir além de mim mesmo.

Para você me educar, precisa me encontrar lá onde eu existo:
no coração das coisas, nos mitos e nas lendas,
nas cores e movimentos, nas formas originais e fantásticas,
na terra, nas estrelas, nas forças dos astros, do sol e da chuva.

Para me educar, você precisa estar comigo onde estou,
mesmo que você venha de longe e que esteja muito adiante.
Só há um adiante para mim: aquele que eu construo e conquisto.
Só há uma forma de construí-lo:
a partir de mim mesmo e do meio em que vivo.

Para você me educar,
precisa compreender a cultura do contexto
em que se dá meu crescimento.
Suas linhas de força são as minhas energias.

Suas crenças e expectativas são as que passam a construir
o meu credo e as minhas esperanças.

Mas eu também estou aberto para as outras culturas.
" Identidade cultural " não significa prisão que ocupo
mas abertura ao que é autenticamente nosso e ao que, vindo de fora,
nos pode fazer mais nós mesmos.
A cultura universal é produto de todos os homens.
Mas não posso contribuir com essa fraternidade
se não tenho minha expressão cultural própria?

A educação que eu necessito é aquela que me faz mais eu, que
desperta, do mistério do meu ser, as potencialidades adormecidas.
É uma educação que promove minha identidade pessoal.

Eu me educo fazendo cultura,
e nesse ato de geração cultural, eu construo minha educação,
conquisto o meu ser, na relação de diálogo do homem e da
natureza.

História de um Rio


Certa vez, havia um rio. Um rio muito bonito. Ele começava de um pontinho, dançando e cantando descia da montanha. Quando chegava ao lado da cidade, tornava-se um rio muito largo. Ele era jovem, bonito e cheio de energia. E sua preocupação, todo dia, era correr atrás das nuvens. Nuvens são, frequentemente, de diferentes tipos e formas. Algumas vezes as nuvens são rosas, algumas vezes violetas, algumas vezes brancas. E o rio passava todo o seu dia correndo atrás das nuvens. Mas como vocês sabem, as nuvens são impermanentes. Suas formas mudam a cada minuto e elas não querem ficar paradas em um só lugar. O rio não podia aprisionar nenhuma nuvem. E por isso sofria muito. Algumas vezes ele se sentia muito cansado. Outras, desapontado. Um dia, o rio percebeu que o sofrimento causado pelas nuvens era enorme. E nesse dia houve uma grande tormenta, o vento soprou muito forte e levou todas as nuvens do céu. O rio, então, pensou que a vida dessa forma não valia mais a pena ser vivida. Não havia mais nuvens para ele correr atrás. A vida não tinha mais nenhum significado e ele quis cometer suicídio. Mas como poderia um rio cometer suicídio?

Já aprendemos que nada surge do nada e que algo que já existe não pode se tornar nada. O que podemos dizer é que o rio perdeu toda a esperança de viver, todo o gosto pela vida. Certa noite, voltou-se para si mesmo e escutou o seu próprio choro, pela primeira vez. Vocês sabem que é durante a noite que nós melhor escutamos o som das águas correndo. O rio estava sempre ocupado perseguindo as nuvens, e por isso nunca havia escutado o seu próprio som. Então, nesta noite, em que estava apto para voltar para si mesmo, ele escutou sua própria voz! E por causa deste tipo de serenidade, descobriu uma coisa muito importante: a água que nele corria eram as nuvens. Eram uma coisa só. Ele não precisava correr atrás de nada.

Este é um tipo de iluminação súbita. Ele sentiu que não precisava correr atrás de coisa alguma. Na manhã seguinte, o céu ainda estava vazio, mas ele descobriu uma coisa muito, muito nova, que era a cor azul do céu. Aquele azul estava refletido nele, durante todo esse tempo, por anos e anos. Que estranho ele nunca haver percebido o azul do céu! Ele via muitas nuvens flutuando no céu mas nunca havia percebido que o céu era tão azul, grande e sem limites! E o céu azul era a casa de todas as nuvens. Então, quando percebeu o céu refletido dentro dele, experimentou um sentimento de realização. Ficou muito calmo e tranquilo.

A tempestade passou naquela manhã. E de tarde, as nuvens voltaram. Todas as nuvens. Ele deu boas-vindas às nuvens, mas agora, não mais as perseguia. O rio havia se modificado bastante. Podia ainda perceber a beleza das nuvens sem, por isso, estar apegado à elas. Então, mesmo que as nuvens venham e vão embora, ele não fica mais infeliz. Ele agora não é mais capaz de desfrutar de uma só nuvem, mas pode desfrutar de todas as nuvens no céu. Ele perdeu a sua discriminação e todas as nuvens agora são ele.

Nessa noite, algo de maravilhoso aconteceu. Quando ele abriu o seu coração para o céu, recebeu um lindo luar. Assim, o rio, a lua e as nuvens deram-se as mãos e foram fazer meditação andando no oceano.

Cada um de nós é um rio, e devemos ser capazes de aprender com o nosso sofrimento, com as nossas frustrações. Nós já somos aquilo que queremos ser. Não precisamos correr atrás de nada mais. Abrimos o nosso coração e temos tudo. Nós somos tudo. Este é o tipo de despertar que temos que realizar e não é um trabalho muito longo. O rio ganhou isto com um dia e uma noite.

trecho do livro Respirando e Sorrindo de Thich Nhat Hanh

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Cometas e Estrelas

Há pessoas estrelas.
Há pessoas cometas.
Os cometas passam.
Apenas são lembrados pelas datas que
passam e retornam.
As estrelas permanecem. Há muita
gente cometa. Passam pela vida da
gente apenas por instantes; não prende
ninguém e a ninguém se prende.
Gente sem amigos. Que passa pela vida
sem iluminar, sem aquecer, sem marcar
presença.


Assim são muitos artistas.
Brilham apenas por instantes nos
palcos da vida.
E com a mesma rapidez com que
aparecem, desaparecem.
Assim são muitos reis e rainhas: de 
nações, clubes ou concursos de beleza.
Assim são rapazes e moças que se enamoram
e se deixam com a maior facilidade.
Assim são as pessoas que vivem numa
mesma família e passam pelo outro sem
serem presença.


Importante é ser estrela. Marcar
presença. Ser luz. Calor. Vida.
Amigos são estrelas. Podem passar os
anos, surgir distâncias, mas a marca
fica no coração.


Ser cometa não é ser amigo. É ser
companheiro por instantes. Explorar
sentimentos.
Aproveitar das pessoas e das situações.
É fazer acreditar e desacreditar ao
mesmo tempo.


A solidão é o resultado de uma
vida cometa.
Ninguém fica. Todos passam. E a gente
também passa pelos outros.
Há necessidade de criar um mundo
de estrelas.
Todos os dias poder vê-las e senti-las.
Todos os dias poder contar com elas.
Todos os dias ver sua luz e seu calor.


Assim são os amigos. Estrelas na vida
da gente. Pode-se contar com eles.
Eles são aragem nos momentos de
tensão. Luz nos momentos de fraqueza.
Segurança nos momentos de desânimo.


Olhando os cometas, é bom não se
sentir como eles. Nem desejar prender-se
em sua cauda.


Olhando os cometas, é bom sentir-se 
estrela. Marcar presença. Ter vivido e
construído uma história pessoal.
Ter sido luz para muitos amigos.
Ter sido calor para muitos corações.


Ser estrela neste mundo passageiro,
neste mundo cheio de pessoas cometas,
é um desafio, mas acima de tudo uma
recompensa.
É nascer e ter vivido, e não apenas existido.




autoria desconhecida

Ser Amigo


Se um dia lhe der uma louca vontade de chorar...
Me chama.
Não lhe prometo fazer sorrir,
Mas posso chorar com você...

Se um dia resolver fugir,
Não se esqueça de me chamar.
Não lhe prometo pedir pra ficar,
Mas posso fugir com você.

Se um dia lhe der uma louca vontade
De não falar com ninguém,
Me chame assim mesmo.
Prometo ficar bem quietinho.

Mas...

Se um dia você me chamar e eu não responder...
Venha correndo ao meu encontro,
Talvez eu esteja precisando de você...


autoria desconhecida

terça-feira, 17 de abril de 2012

O Guardador de Rebanhos (trecho 8)

                      Alberto Caeiro




Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.


Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego de cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas - 
Um velho chamado José, que era carpinteiro.
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.


E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
" Se é que ele as criou, do que duvido " -
" Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres. "
E depois, cansado de dizer mal de Deus, 
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.


Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.


E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me sempre
A direção de meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.


Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.


Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.


Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.


Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser mais verdadeira
Que tudo quando os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


Alberto Caeiro é um dos heterônimos de Fernando Pessoa.