domingo, 27 de maio de 2012

Canção para os fonemas da alegria

                Thiago de Mello


Peço licença para algumas coisas.
Primeiramente para desfraldar
este canto de amor publicamente.

Sucede que só sei dizer amor
quando reparto o ramo azul de estrelas
que em meu peito floresce de menino.

Peço licença para soletrar,
no alfabeto do sol pernambucano,
a palavra ti-jo-lo, por exemplo,

e poder ver que dentro dela vivem
paredes, aconchegos e janelas,
e descobrir que todos os fonemas

são mágicos sinais que vão se abrindo,
constelação de girassóis gerando
em círculos de amor que de repente
estalam como flor no chão da casa.

Às vezes nem há casa: é só o chão.
Mas sobre o chão quem reina agora é
um homem diferente
que acaba de nascer:

porque unindo pedaços de palavras
aos poucos vai unindo argila e orvalho,
tristeza e pão, cambão e beija-flor,

e acaba por unir a própria vida
no seu peito partida e repartida
quando afinal descobre num clarão

que o mundo é seu também, que o seu trabalho
não é a pena que paga por ser homem,
mas um modo de amar - e de ajudar
o mundo a ser melhor.

Peço licença
para avisar que, ao gosto de Jesus,
este homem renascido é um homem novo:

ele atravessa os campos espalhando
a boa-nova e chama os companheiros
a pelejar no limpo, fronte a fronte,

contra o bicho de quatrocentos anos,
mas cujo fel espesso não resiste
a quarenta horas de total ternura.

Peço licença para terminar
soletrando a canção da rebeldia
que existe nos fonemas da alegria:

canção de amor geral que eu vi crescer
nos olhos do homem que aprendeu a ler.

Virgínia

           Anna Toledo


Eu passava por ali várias vezes
Nunca reparei no seu olhar
Nunca percebi o seu perfume
Nem como era doce o seu jeito de falar
Mesmo assim ela insistia em forjar
candidamente um devaneio
Pois supunha que ficava irresistível
E que todos só fingiam não notar

Quem tocou ou beijou Virgínia
Nunca disse nada demais
Uns achavam que ela era bonita
Uns achavam que ela era estranha
Uns achavam que ela era gozada
E uns não achavam nada

Ela estudou comigo no cursinho
Encontrei ela alguma vez num bar
Ela passava e não dizia nada
E eu nunca achei que devesse falar
Às vezes ela sorria
Como se tomada por algum delírio
Concedendo a nós, mortais,
o tal segredo
Que só ela parecia dominar

A sua foto no jornal de ontem
Olhando bem nada me fez pensar
Eu podia dizer que ela tá linda
Ou que ela é muito nova pra casar
Mas minha alma vazia
Não preenche seu deserto com sorrisos
E o jornal além da foto não diz nada
E o sorriso nada tem a acrescentar

Música do CD Viva da cantora Anna Toledo gravado em 1999.

No Mundo das Letras

                  Moacyr Scliar


Vem à livraria nas horas de maior movimento, mas isso, já se sabe, é de propósito: facilita-lhe o trabalho.

Rouba livros. Faz isso há muitos anos, desde a infância, praticamente. Começou roubando um texto escolar que precisava para o colégio; foi tão fácil que gostou; e passou a roubar romances de aventura, livros de ficção científica, textos sobre arte, política, ciência, economia. Aperfeiçoou tanto a técnica que chegava a furtar quatro, cinco livros de uma vez. Roubou livros em todas as cidades por onde passou. Em Londres, uma vez, quase o pegaram; um incidente que recorda com divertida emoção.

No início, lia os livros que roubava. Depois, a leitura deixou de lhe interessar. A coisa era roubar por roubar, por amor à arte; dava os livros de presente ou simplesmente os jogava fora. Mas cada vez tinha menos tempo para ir às livrarias; os negócios o absorviam demais. Além disso, não podia, como empresário correr o risco de um flagrante. Um problema - que ele resolveu como resolve todos os problemas, com argúcia, com arrojo, com imaginação.

Zás! Acabou de surrupiar um. Nada de espetacular nessa operação: simplesmente pegou um pequeno livro e o enfiou no bolso. Olha para os lados; aparentemente ninguém notou nada. Cumprimenta-me e se vai.

Um minuto depois retorna. Como é que me saí, pergunta, não sem ansiedade. Perfeito, respondo, e ele sorri, agradecido. O que me deixa satisfeito; elogiá-lo é não apenas um ato de compaixão, é também uma medida de prudência. Afinal, ele é o dono da livraria.

Meus Livros

                Ana Miranda


Existe em minha cabeça uma estranha geografia que se refere ao mundo em torno de mim, um mundo físico mas de significados infinitos, essa geografia surgiu do meu hábito de viver trancado com meus livros, esses livros dispostos numa serena ordem um ao lado do outro representam a minha mente como um mapa a um país, se fecho os olhos as prateleiras de livros se acendem dentro de minha cabeça como se minha cabeça fosse também um aposento forrado de estantes de livros em que cada um deles é uma porta para um mundo, todos são posicionados de acordo com um sistema lógico, se me recordo de um desses livros meu olhar vai diretamente ao lugar em que se encontra, raras vezes algum se perde mas quando acontece caio numa espécie de desespero, basta olhar à distância um deles para receber sua influência, uma secreta ligação, feito as ondas do mar em relação à lua, às vezes sinto um apelo irresistível como se um deles me chamasse e, seja quando for, levanto da cadeira, retiro o livro da estante e folheio para ouvir o que tem a dizer, esses livros determinam meus sentimentos, meu entendimento do mundo, são o mapa de minha alma, cada um representa uma região, um lugar onde estive e onde ainda estou, há entre eles os meus preferidos, ficam separados numa das prateleiras, rabiscados desde a primeira página, onde se encontram palavras manuscritas, lembranças, ideias, pétalas secas, madeixas, preces, são meus livros, mas tenho sempre a sensação de que não me pertencem, sou dono deles mas apenas uma pequena e frágil conexão entre um e outro, vivo trancado numa sala onde livros vivos sorriem, choram, zombam, ensinam, atraiçoam, respiram, livros que passam de papel para papel, às vezes sou tomado de uma tristeza por não saber o que lhes acontecerá depois da minha morte, mas sei que eles, como as pessoas, têm seu destino, alguns meu filho levará, outros, um neto, outros ainda serão vendidos num sebo, com meu nome, bilhetes, segredos, receitas, folhas de outono, gotas de café, que tornarão triste um leitor sensível, os demais deixarei de lembrança para amigos, mas todos existirão mais do que eu, uns existirão eternamente.

Filho

               Ana Miranda


Meu filho diz que vai embora, isso me perturba, vejo minhas mãos ainda sujas de leite, nem sei que conselhos dar, Não peça nada a ninguém, ou, Engraxe os sapatos, por que temos de perder tudo o que criamos? pobre filho, teve uma mãe destrambelhada, ficou só no mundo para fazer de si um homem, nem mesmo tive paciência para o ajudar no dever de casa, nem tentei explicar-lhe como desfazer um nó, quantas vezes adormeci antes dele ou lhe dei mingau queimado, ele teve de suportar a minha instabilidade, as mudanças de estado de espírito, as mudanças de trabalho, de casa, quando nos mudamos pela primeira vez ele disse chorando enquanto arrumava suas malas que nunca mais faria amigos que viveria solitário e casmurro e nunca mais iria sorrir, o burro-sem-rabo levou nossas poucas coisas amarradas, uma caixa de livros, uma cesta de panelas, pratos e talheres, alguns lençóis, um espelho que foi de minha avó, uma poltrona rasgada, um baú de brinquedos, um fogão enferrujado, num dia de domingo, enquanto eu puxava meu filho pela mão, mas um ano depois, ou melhor, após um ano amuado a trancado em casa ele encontrou um menino na portaria do edifício, o filho do porteiro, um menino de olhos verdes, e travaram amizade, voltou à vida normal de criança, jogava bola no pátio, fez outros amigos, mas precisei mudar novamente, arrastando-o pela mão atrás do burro-sem-rabo, um quadro de paisagem marinha, um abajur de renda, uma coleção de bolas de gude, os nossos bens amarrados com corda, suas lágrimas queimando meu peito, mas eu nada podia fazer, era irresistível, tudo já havia mudado dentro de mim e a casa não me servia mais, numa das vezes ele ficou um ano sem desfazer as malas, sem abrir o baú de brinquedos, seu prazo de ressentimento era de um ano, um ano depois ele desfez as malas e retirou as roupas amarfanhadas, pendurou nos cabides  vazios, encheu as gavetas empoeiradas e foi para a sala com seus olhos redondos e um olhar inquiridor, prometi que não mudaria nunca mais, mas eu não podia suportar mais as casas acabadas, Não gaste sua coleção de moedas, digo quando ele abre a porta e um vento frio se precipita sobre mim.

domingo, 20 de maio de 2012

Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor

                     Lô Borges/Márcio Borges


Cheguei a tempo de te ver acordar
Eu vim correndo à frente do sol
Abri a porta e, antes de entrar,
Revi a vida inteira.
Pensei em tudo que é possível falar
Que sirva apenas para nós dois,
Sinais de bem, desejos de cais
Pequenos fragmentos de luz
Falar da cor dos temporais
de céu azul, das flores de abril
Pensar além do bem, do mal
Lembrar de coisas que ninguém viu
O mundo lá, sempre a rodar
Em cima dele, tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer
Pensei no tempo, e era tempo demais
Você olhou sorrindo pra mim
Me acenou um beijo de paz
Virou minha cabeça
Eu simplesmente não consigo parar
Lá fora, o dia já clareou...
Mas se você quiser transformar
O ribeirão em braço de mar
Vai ter que encontrar
Aonde nasce a fonte do ser
E perceber meu coração
Bater mais forte só por você
O mundo lá, sempre a rodar.

Música que abre o segundo CD da cantora Bruna Caran intitulado Feriado Pessoal lançado em 2009.

Calma Aí

             Monique Kessous


Calma aí, peraí
Não espere tanto desse amor
Outra vez, sem sentir
Corro para os braços que me largam
Na tristeza de sentir tanta solidão
Acompanhada por aí de tanto amor pra dar
Não vou mais chorar
Não quero dizer mais nada de mal
Olha aqui, meu amor
Não se esqueça nunca que eu tentei
Sem rancor, sem mentir
Sempre fiz aquilo tudo que te prometi

Meu amor, foi tanto amor
Que eu quis que fosse eterno até morrer
Mas sei que foi enquanto em mim durou
Talvez nós dois sejamos um
É fato que se consolidará
Um novo amor, o nosso amor, amor

Música do segundo CD da cantora Monique Kessous lançado em 2010.

Frio

              Monique Kessous


Cada vez que eu penso em te ver
Vejo que não dá pra esquecer
Todo o tempo que já passou
Tanta coisa ainda ficou

Como pode ser triste assim
Se eu te amo e sei que não tem razão?
Eu ainda quero ser seu
Não me importa se eu sentir frio

Se eu sentir frio
Eu fico acordado
Fico ao seu lado
Até não ter vento
Folhas jogadas
Minhas pegadas
Vão caminhando até você

Música do segundo CD da cantora Monique Kessous, lançado em 2010.

Pareço Um Menino

                Piska/César Augusto


Apenas você tem o dom
De mudar meu destino
É só me tocar com seus olhos
Pareço um menino...

Deitado em seu colo
O mundo não me surpreende
Sou homem maduro
Mas na sua frente
Não sou mais que um menino...

Você tem a luz
Que ilumina
O nosso caminho
Depois de você
Descobri
Que não sou mais sozinho...

Você é o amor
Que a vida me deu de presente
Sou homem maduro
Mas na sua frente
Pareço um menino...

Você me abraça
E a tristeza vai embora
A dor que existe
Fica da porta pra fora
A gente briga
Mas é coisa que acontece
Logo o coração esquece
Porque a gente se adora...

canção do repertório do cantor Fábio Jr.

Volta Pra Mim

               Cleberson Horsth/Ricardo Feghali


Amanheci sozinho
Na cama um vazio
Meu coração que se foi
Sem dizer se voltava depois
Sofrimento meu
Não vou aguentar
Se a mulher
Que eu nasci pra viver
Não me quer mais...

Sempre depois das brigas
Nós nos amamos muito
Dia e noite a sós
O universo era pouco pra nós
O que aconteceu
Pra você partir assim
Se te fiz algo errado
Perdão
Volta pra mim...

Essa paixão é meu mundo
Um sentimento profundo
Sonho acordado um segundo
Que você vai ligar
O telefone que toca
Eu digo alô sem resposta
Mas não desliga
Escuta o que eu vou te falar...
Eu te amo e vou gritar
Pra todo mundo ouvir
Ter você é meu
Desejo de viver
Sou menino e teu amor
É que me faz crescer
E me entrego corpo e alma
Pra você...

Sempre depois das brigas
Nós nos amamos muito...

canção do repertório do grupo Roupa Nova.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

As Pedras

                    Arnaldo Antunes


As pedras são muito mais lentas do que os animais. As plantas exalam mais cheiro quando a chuva cai. As andorinhas quando chega o inverno voam até o verão. Os pombos gostam de milho e de migalhas de pão. As chuvas vêm da água que o sol evapora. Os homens quando vêm de longe trazem malas. Os peixes quando nadam juntos formam um cardume. As larvas viram borboletas dentro dos casulos. Os dedos dos pés evitam que se caia. Os sábios ficam em silêncio quando os outros falam. As máquinas de fazer nada não estão quebradas. Os rabos dos macacos servem como braços. Os rabos dos cachorros servem como risos. As vacas comem duas vezes a mesma comida. As páginas foram escritas para serem lidas. As árvores podem viver mais tempo que as pessoas. Os elefantes e golfinhos têm boa memória. Palavras podem ser usadas de muitas maneiras. Os fósforos só podem ser usados uma vez. Os vidros quando estão bem limpos quase não se vê. Chicletes são pra mastigar mas não para engolir. Os dromedários têm uma corcova e os camelos duas. As meia-noites duram menos do que os meio-dias. As tartarugas nascem em ovos mas não são aves. As baleias vivem na água mas não são peixes. Os dentes quando a gente escova ficam brancos. Cabelos quando ficam velhos ficam brancos. As músicas dos índios fazem cair chuva. Os corpos dos mortos enterrados adubam a terra. Os carros fazem muitas curvas pra subir a serra. Crianças gostam de fazer perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto.

Texto do livro " As Coisas ".

Onze E Meia

                 Antônio Cícero    

Quando a noite vem
um verão assim
abrem-se cortinas varandas
janelas prazeres jardins

Onze e meia alguém
concentrado em mim
no espelho castanho dos olhos
vê finalidades sem fim

Não lhe mostro todos os bichos que tenho de uma vez
Armo o circo com não mais do que uns cinco ou seis
leão camelo garoto acrobata
e não há luar
e os deuses gostam de se disfarçar




extraído do livro Guardar.

sábado, 12 de maio de 2012

Adormecer o Fado

               Tiago Torres da Silva/Pedro Jóia 


Você entra nos meus sonhos
Pedindo pra eu te sonhar
Mas sempre que eu abro os olhos
Você foi noutro lugar
Assim que eu desapareço
Você quer sonhar comigo
Então eu não adormeço
Só pra não lhe dar abrigo

Vim te buscar
Adormeci
Ao acordar já não te vi

Na insônia que me invade
Com cigarros e café
É o medo da saudade
Que vai me mantendo em pé
Mas o sono acaba vindo
Quando o ciúme adormece
E meu coração é tão lindo
Porque o sonho não te esquece

Vim te buscar
Adormeci
Ao acordar já não te vi

Se a minha paixão encontra
Os teus olhos de menino
Só o meu sonho é que conta
Pra fazer o meu destino
Por isso, não adormeço
Se eu não estiver ao seu lado
Porque um sonho que se esqueça
Pode adormecer o fado

Vim te buscar
Adormeci
Ao acordar já não te vi

Vim te buscar
Adormeci
Mas vou sonhar que estás aqui

música do CD Joanna Todo Acústico lançado em 2003.

A Voz do Anjo


Era uma vez uma criança que estava pronta para nascer.

Ela perguntou a Deus: " Fiquei sabendo que você está me mandando para a Terra, mas como eu vou viver lá sendo tão pequena e indefesa? "

Deus respondeu: " Dentre os muitos anjos, eu escolhi um para você. Seu anjo estará esperando por você e vai cuidar de você ".

A criança indagou: " Mas, diga-me, aqui no céu eu não tenho que fazer nada, apenas cantar, sorrir e ser feliz ".

Deus disse: " Seu anjo cantará e sorrirá para você todos os dias. Você vai sentir o  amor do seu anjo e ser muito feliz ".

Novamente, a criança perguntou: " E como eu serei capaz de entender quando as pessoas falarem comigo se eu não sei seu idioma? "

Deus disse: " Seu anjo dirá para você as palavras mais doces e bonitas que você jamais ouviu e com muita paciência e carinho, vai ensinar-lhe como falar ".

Criança: " E como vou fazer quando eu quiser falar com você? "

Deus disse: " Seu anjo colocará suas mãos juntas e vai ensinar-lhe como rezar ".

Criança: " Eu ouvi que na Terra existem homens maus. Quem irá me proteger? "

Deus disse: " Seu anjo defenderá você, mesmo que isso signifique arriscar sua própria vida ".

Criança: " Mas eu ficarei muito triste porque não vou vê-lo mais. "

Deus disse: " Seu anjo falará sempre com você sobre mim e vai ensinar-lhe um jeito de voltar para mim, apesar de que eu estarei sempre perto de você ".

Nesse instante, havia muita paz no céu, mas vozes vindas da Terra podiam ser ouvidas e a criança precipitadamente perguntou: " Deus, se eu tenho que partir agora, por favor, diga-me o nome do meu anjo ".

Deus falou: " Seu nome não é importante. Você vai chamá-lo simplesmente de MÃE ".

Que a Luz e a Paz envolvam seu coração!

autoria desconhecida

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Arte de Ser Feliz

             Cecília Meireles


Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? quem as comprava? em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? e que mãos as tinham criado? e que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu que participava do auditório imaginava os assuntos e suas peripécias - e me sentia completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era um rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos: que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem diante de minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Os Gatos da Tinturaria

                 Cecília Meireles


Os gatos brancos, descoloridos,
passeiam pela tinturaria,
miram polícromos vestidos.

Com soberana melancolia,
brota nos seus olhos erguidos
o arco-íris, resumo do dia,

ressuscitando dos seus olvidos,
onde apagado cada um jazia, 
abstratos lumes sucumbidos.

No vasto chão da tinturaria,
xadrez sem fim, por onde os ruídos
atropelam a geometria,

os grandes gatos abrem compridos
bocejos, na dispersão vazia
da voz feita para gemidos.

E assim proclamam a monarquia
da renúncia, e, tranquilos vencidos,
dormem seu tempo de agonia.

Olham ainda para os vestidos, 
mas baixam a pálpebra fria.

Dias de Luta

                Scandurra


Só depois de muito tempo fui entender aquele homem
Eu queria ouvir muito mas ele me disse pouco
Quando se sabe ouvir não precisam muitas palavras
Muito tempo eu levei pra entender que nada sei
... que nada sei

Só depois de muito tempo comecei a entender
Como será meu futuro, como será o seu?
Se meu filho nem nasceu, eu ainda sou o filho
Se hoje canto essa canção, o que cantarei depois
Cantar depois... o quê??

Se sou ainda jovem passando por cima de tudo
Se hoje canto essa canção o que cantarei depois

 Só depois de muito tempo comecei a refletir
Nos meus dias de paz
Nos meus dias de luta
Se sou ainda jovem passando por cima de tudo
Se hoje canto essa canção, o que cantarei depois
Cantar depois... o quê?

Música do então LP do Ira! intitulado Vivendo e não aprendendo, lançado originalmente em 1986 e relançado em CD em 2000.

Tô Fazendo Falta

            Álvaro Socci/Cláudio Matta/Lucca Ferreira


Ontem te encontrei
Você estava tão bonito
Demais
Parecia até que nada
Aconteceu

Jeito de quem está feliz
De quem está de bem com a vida
Sei lá
Mas alguma coisa não me convenceu

E ainda faz de conta
Que não está nem aí pra mim
Mas você não me engana
Sei que você ainda tá a fim
Me diz pra que fazer assim

Você pode ter um tempo pra pensar
E uma eternidade pra se arrepender
Tá na cara
Dá pra ver no seu olhar
Tô fazendo muita falta pra você

É loucura não ouvir o coração
Desse jeito a gente pede pra sofrer
Eu não quero te ver na solidão
Tô fazendo muita falta pra você

Música do CD Joanna 20 anos ao vivo, lançado em 1999.

domingo, 6 de maio de 2012

A Primeira Só

                    Marina Colasanti

Era linda, era filha, era única. Filha de rei. Mas de que adiantava ser princesa se não tinha com quem brincar?

Sozinha no palácio chorava e chorava. Não queria saber de bonecas, não queria saber de brinquedos. Queria uma amiga para gostar.

De noite o rei ouvia os soluços da filha. De que adianta a coroa se a filha da gente chora à noite? Decidiu acabar com tanta tristeza. Chamou o vidraceiro, chamou o moldureiro. E em segredo mandou fazer o maior espelho do reino. E em silêncio mandou colocar o espelho ao pé da cama da filha que dormia.

Quando a princesa acordou, já não estava sozinha. Uma menina linda e única olhava surpresa para ela, os cabelos ainda desfeitos do sono. Rápido saltaram as duas da cama. Rápido chegaram perto e ficaram se encontrando. Uma sorriu e deu bom-dia. A outra deu bom-dia sorrindo.

- Engraçado, - pensou uma - a outra é canhota.

E riram as duas.

Riram muito depois. Felizes juntas, felizes iguais. A brincadeira de uma era a graça da outra. O salto de uma era o pulo da outra. E quando uma estava cansada, a outra dormia.

O rei, encantado com tanta alegria, mandou fazer brinquedos novos, que entregou à filha numa cesta. Bichos, bonecas, casinhas, e uma bola de ouro. A bola no fundo da cesta. Porém tão brilhante, que foi o primeiro brinquedo que escolheram.

Rolaram com ela no tapete, lançaram na cama, atiraram para o alto. Mas quando a princesa resolveu jogá-la nas mãos da amiga, a bola estilhaçou jogo e amizade.

Uma moldura vazia, cacos de espelho no chão.

A tristeza pesou nos olhos da única filha do rei. Abaixou a cabeça para chorar. A lágrima inchou, já ia cair, quando a princesa viu o rosto que amava. Não um só rosto de amiga, mas tantos rostos de tantas amigas. Não na lágrima que logo caiu, mas nos cacos todos que cobriam o chão.

- Engraçado, são canhotas - pensou.

E riram.

Riram por algum tempo depois. Era diferente brincar com tantas amigas. Agora podia escolher. Um dia escolheu uma, e logo se cansou. No dia seguinte preferiu outra, e esqueceu dela em seguida. Depois outra e mais outra, até achar que todas eram poucas. Então pegou uma, jogou contra a parede e fez duas. Cansou das duas, pisou com o sapato e fez quatro. Não achou mais graça nas quatro, quebrou com martelo e fez oito. Irritou-se com as oito, partiu com a pedra e fez doze.

Mas se duas eram menores do que uma, quatro eram menores que duas, oito menores do que quatro, doze menores do que oito.

Menores, cada vez menores.

Tão menores que não cabiam mais em si, pedaços de amigas com as quais não se podia brincar. Um olho, um sorriso, um lado de nariz. Depois, nem isso, pó brilhante de amigas espalhado pelo chão.

Sozinha outra vez a filha do rei.

Chorava? Nem sei.

Não queria saber das bonecas, não queria saber dos brinquedos.

Saiu do palácio e foi correr no jardim para cansar a tristeza.

Correu, correu, e a tristeza continuava com ela. Correu pelo bosque, correu pelo prado. Parou à beira do lago.

No reflexo da água a amiga esperava por ela.

Mas a princesa não queria mais uma única amiga, queria tantas, queria todas, aquelas que tinha tido e as novas que encontraria. Soprou na água. A amiga encrespou-se mas continuou sendo uma. Atirou-lhe uma pedra. A amiga abriu-se em círculos, mas continuou sendo uma.

Então a linda filha do rei atirou-se na água de braços abertos, estilhaçando o espelho em tantos cacos, tantas amigas que foram afundando com ela, sumindo nas pequenas ondas com que o lago arrumava sua superfície.

conto do livro Uma Ideia Toda Azul. 

sábado, 5 de maio de 2012

Preciso de Você

                Márcio Greyck


Cansado, vejo a vida passar
Meu lugar ao sol já cansei de esperar
O tempo faz promessas e eu vou
Ando à toa, eu sei
Pois me falta você
Porque todo mundo precisa de alguém
E eu preciso é de você
Pra comigo andar
E para me entender
Eu preciso é de você
Pra continuar
E pra não me perder
Entenda, é preciso saber
Sem motivação é difícil viver
A vida me ensinou a querer
Um motivo só 
E eu vou lhe dizer
Porque todo mundo precisa de alguém
E eu preciso de você
Pra comigo andar
E para me entender
Eu preciso é de você
Pra continuar
E pra não me perder
Porque todo mundo precisa de alguém
E eu preciso é de você
Pra comigo andar
E para me entender
Eu preciso é de você
Pra continuar
E pra não me perder.

Canção do CD Agora, de Verônica Sabino, gravado em 2002.

Minha Herança: Uma Flor

                            Vanessa da Mata


Achei você no meu jardim entristecido
Coração partido
Bichinho arredio
Peguei você pra mim
Como a um bandido
Cheio de vícios
E fiz assim, fiz assim:

Reguei com tanta paciência
Podei as dores, as mágoas, doenças
Que nem as folhas secas vão embora
Eu trabalhei

Fiz tudo, todo o meu destino
Eu dividi, ensinei de pouquinho
Gostar de si,
Ter esperança e persistência sempre

A minha herança pra você é uma flor
Um sino, uma canção, um sonho
Nenhuma arma ou uma pedra eu deixarei
A minha herança pra você é o amor
Capaz de fazê-lo tranquilo, pleno
Reconhecendo no mundo o que há em si

E hoje nos lembramos sem nenhuma tristeza
Dos foras que a vida nos deu
Ela com certeza
Estava juntando você e eu

Achei você no meu jardim

Música do CD Sim, gravado em 2007 por Vanessa Da Mata.

Preciso do seu sorriso

               João Silva/Enok Virgulino




Preciso desse teu amor
Ai, amor, mas como preciso
Não posso mais viver
Sem teus beijos
Teu sorriso

Não posso ficar sem você
Pois viver sem você
É viver pra chorar

Fala, meu amor
Diga, meu amor
Que não vai judiar comigo

Espera, meu amor
Fica, meu amor
Então me leva pra morar contigo

E onde quer que você vá
Seja onde for
Me leva
Me leva

Diz, amor, que eu vou
Me leva, me leva
Seja como for seu mundo, se você
Me levam eu vou

Gravação novíssima da cantora Mariana Aydar com participação especial de Dominguinhos. Faz parte do repertório de seu mais recente CD, o terceiro, intitulado Cavaleiro Selvagem Aqui Te Sigo, de 2011.

Amor da minha vida

                  Raul Sampaio/Benil Santos


Amor da minha vida
Tão longe estás de mim
Meus olhos te procuram
Ânsias me torturam
Sofro tanto assim
Meus dias são tão tristes
As noites muito mais
E desde que partiste
A amargura existe 
Me roubando a minha paz

Ó luz dos olhos meus,
Metade do meu ser
Que amarga diferença
Sem tua presença
Nesse meu viver

Amor da minha vida
Estou na solidão
Trocaste por saudade
A felicidade do meu coração.

Música antiga do repertório de Luiz Gonzaga e regravada em 2008 por Zizi Possi com um arranjo muito bonito e diferente...

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Cantoria

                  Ivan Lins/Vitor Martins


Nossa cantoria
Nosso coração
Nosso bloco 
Nossa folia
Contra a solidão

Nossa teimosia
Nossa louvação
Nosso fogo
Nossa magia
Contra a escuridão

Somos aroeira
Madeira dura de se cortar
Mesmo depois de morta ela brota
Só pra desafiar

Somos a correnteza
Que começa num gotejar
Mesmo que se represe ela segue
E vai transbordar o mar

Música antiga da dupla Ivan Lins/Vitor Martins e resgatada pelo trio feminino Folia de 3 em um CD intitulado Pessoa Rara, dedicado à obra do músico.

Retrato da Vida

                Dominguinhos/Djavan

Esse matagal sem fim
Essa estrada, esse rio seco
Essa dor que mora em mim
Não descansa e nem dorme cedo
O retrato da minha vida
É amar em segredo

Não quer saber de mim
E eu vivendo da sua vida
Deus no céu e você aqui
A esperança é quem me abriga

Esses campos não tardam em florir
Já se espera uma boa colheita
E tudo parece seguir
Fazendo a vida tão direita

Mas e você o que faz
Que não repara no chão
Por onde tem que passar
E pisa em meu coração

O seu beijo em meu destino
Era tudo o que eu queria
Ser seu homem, seu menino
O ser amado de todo dia

Composição do CD de estreia do trio feminino Amaranto, intitulado Retrato de Vida, apenas com composições de Djavan. Foi lançado em 2000.

Non, je ne regrette rien

                  Michel Vaucaire/Charles Dumont


Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Ni le bien quön m'a fait
Ni le mal, tout ça m'este bien égal

Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
C'est payer, balayer, oublier
Je m'ai fous du passé

Avec mes souvenirs
J'ai allumé le feu
Mes chagrins, mes plaisirs
Je n'ai plus besoin d'eux

Balayés mes amours
Avec leurs trémolos
Je repars a zéro...

Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Car ma vie, car me joies
Pour aujourd'hui
Ça commence avec toi

Não! Nada de nada
Não! Eu não lamento nada
Nem o bem que me fizeram,
Nem o mal, isso tudo me é igual!

Não! Nada de nada
Não! Eu não lamento nada
Está pago, varrido, esquecido
Não me importa o passado.

Com minhas lembranças,
Acendi o fogo,
Minhas mágoas, meus prazeres,
Não preciso mais deles.

Varridos os amores,
E todos os seus tremores
Varridos para sempre
Recomeço do zero

Não! Nada de nada
Não! Não lamento nada
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, isso tudo me é igual

Não! Nada de nada
Não! Não lamento nada
Pois minha vida,
Pois minhas alegrias
Hoje, começam com você!


Gravação original feita por Edith Piaf. Segundo consta, a música foi composta em 1956 e gravada por ela em 10 de novembro de 1960.
Cássia Eller fez uma emocionante releitura em seu CD Acústico MTV de 2001.