sábado, 28 de julho de 2012

O Aleph

              Jorge Luis Borges

        Na ardente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois duma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da Plaza Constituición tinham renovado não sei que anúncio de cigarros vermelhos; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudara o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que, alguma vez, minha vã devoção a exasperara; morta, eu podia consagrar-me à sua memória, sem esperança, mas também sem humilhação. Lembrei-me de que em trinta de abril era seu aniversário; visitar, nesse dia, a casa da Rua Garay para saudar seu pai e Carlos Argentino Daneri, seu primo-irmão, era um ato cortês, irrepreensível, talvez iniludível. De novo eu ficaria aguardando no crepúsculo da abarrotada salinha, de novo iria estudar as circunstâncias de seus muitos retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, em cores; Beatriz, com máscara, no carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz no dia de seu casamento com Roberto Alessandri; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos Argentino; Beatriz, com o pequinês dado por  Villegas Haedo; Beatriz, de frente e em três quartos, sorrindo, com a mão no queixo... Não estaria obrigado, como outras vezes, a justificar minha presença com módicas oferendas de livros - livros cujas páginas, finalmente, aprendi a  cortar, para não comprovar, meses depois, que se mantinham intatos.
         Beatriz Viterbo morreu em 1929; desde então não deixei passar um trinta de abril sem voltar à sua casa. Eu costumava chegar às sete e quinze e ficar uns vinte e cinco minutos; cada ano, aparecia um pouco mais tarde e ficava um pouco mais; em 1933, uma chuva torrencial me favoreceu: tiveram de me convidar para comer. Não desperdicei, como é natural, esse bom precedente; em 1934, apareci, já passando das oito, com um alfajor santafecino (espécie de bolo de mel procedente de Santa Fé); com toda a naturalidade, fiquei para comer. Assim, em aniversários melancólicos e inutilmente eróticos, recebi as graduais confidências de Carlos Argentino Daneri.
         Beatriz era alta, frágil, ligeiramente inclinada; havia em seu andar (se for tolerável o oxímoro) uma graciosa lentidão, um princípio de êxtase; Carlos Argentino é rosado, grande, encanecido, de traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca sem leitores dos arrabaldes do Sul; é autoritário, mas também ineficiente; aproveitava, até bem pouco, as noites e as festas para não sair de casa. A duas gerações de distância, o esse italiano e a copiosa gesticulação italiana sobrevivem nele. Sua atividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante. É abundante em imprestáveis analogias e em ociosos escrúpulos. Tem (como Beatriz) grandes e afiladas mãos formosas. Durante alguns meses, sofreu a obsessão de Paul Fort, menos por suas baladas que pela ideia de uma glória irrepreensível. " É o Príncipe dos poetas da França ", repetia com fatuidade. " É inútil te voltares contra ele; não o alcançará, nunca, a mais envenenada de tuas setas. "
         No dia trinta de abril de 1941, permiti-me juntar ao alfajor uma garrafa de conhaque nacional. Carlos Argentino provou-o, julgou-o interessante e pôs-se, depois de alguns copos, a fazer uma defesa do homem moderno.
         - Eu o evoco - disse com uma animação um tanto inexplicável - em seu gabinete de estudo, como se dispuséssemos na torre albarrã duma cidade, provido de telefones, de telégrafo, de fonógrafos, de aparelhos de radiotelefonia, de cinematógrafos, de lanternas mágicas, de glossários, de horários, de prontuários, de boletins...
         Observou que, para um homem assim dotado, o ato de viajar era inútil; nosso século XX tinha transformado a fábula de Maomé e da montanha; as montanhas agora convergiam sobre o moderno Maomé.
         Tão tolas me pareceram essas ideias, tão pomposa e tão extensa sua exposição, que logo as relacionei com a literatura; perguntei-lhe porque não as escrevia. Como era de prever, respondeu que já o fizera: esses conceitos, e outros não menos novos, figuravam no Canto Augusto, Canto Prologal ou simplesmente Canto Prólogo de um poema em que trabalhava há muitos anos, sem réclame, sem tumulto ensurdecedor, sempre apoiado nesses dois báculos que se chamam trabalho e solidão. Primeiro, abria as comportas à imaginação; depois, fazia uso da lima. O poema se intitulava A Terra; tratava-se duma descrição do planeta, em que não faltavam, por certo, a pitoresca digressão e a galharda apóstrofe.
         Pedi que me lesse uma passagem, mesmo que fosse breve. Abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou um maço volumoso de folhas de bloco com o timbre da Biblioteca Juan Crisóstomo Lafinur e leu com sonora satisfação:
                
                He visto, como el griego, las urbes de los hombres,
                Los trabajos, los días de varia luz, el hambre;
                No corrijo los hechos, no falso los nombres,
                Pero el voyage que narro, es ... autor de la chambre

         - Estrofe, sob qualquer ângulo, interessante - opinou. - O primeiro verso granjeia o aplauso do catedrático, do acadêmico, do helenista, quando não dos falsos eruditos, setor considerável da opinião; o segundo passa de Homero para Hesíodo (toda uma implícita homenagem, na fachada do flamante edifício, ao pai da poesia didática), não sem remoçar um processo cujo ancestral está na Escritura, a enumeração, congérie ou conglobação; o terceiro - barroquismo, decadentismo, culto depurado e fanático da forma? - consta de dois hemistíquios gêmeos; o quarto, francamente bilíngue, me assegura o apoio incondicional de todo espírito sensível aos desenfadados convites da facécia. Nada direi da rima rara nem da ilustração que me permite, sem pedantismo, acumular em quatro versos três alusões eruditas que abarcam trinta séculos de densa literatura: a primeira à " Odisséia ", a segunda aos " Trabalhos e Dias ", a terceira à bagatela imortal que nos proporcionaram os ócios da pena do saboiano... Compreendo uma vez mais que a arte moderna exige o bálsamo do riso, o scherzo. Decididamente, tem a palavra Goldoni!
          Leu-me muitas outras estrofes, que também obtiveram sua aprovação e seu profuso comentário. Nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior. Em sua redação haviam colaboradores a aplicação, a resignação e o acaso; as virtudes que Daneri lhes atribuía eram posteriores. Compreendi que o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na invenção de razões para que a poesia fosse admirável; naturalmente, esse ulterior trabalho modificava a obra para ele, mas não para os outros. A dicção de Daneri era extravagante; sua lentidão métrica, salvo contadas vezes, impediu-o de transmitir essa extravagância ao poema.
     Uma só vez na vida tive a ocasião de examinar os quinze mil dodecassílabos do " Polyolbion ", essa epopéia topográfica na qual Michael Drayton registrou a fauna, a flora, a hidrografia, o orografia, a história militar e monástica da Inglaterra; estou certo de que esse produto considerável, mas limitado, é menos tedioso que a vasta empresa congênere de Carlos Argentino. Este se propunha versificar toda a redondez do planeta; em 1941, já tinha consumido alguns hectares do Estado de Queensland, mais de uma quilômetro do curso do Ob, um gasômetro ao norte de Veracruz, as principais casas de comércio da paróquia de Concepción, a quinta de Mariana Cambaceres de Alvear na Rua Onde de Setiembre, em Belgrano, e um estabelecimento de banhos turcos não longe do renomado aquário de Brighton. Leu-me certas laboriosas passagens da zona australiana de seu poema; esses longos e informes alexandrinos careciam da  relativa agitação do prefácio. Copio uma estrofe:

            Sepan. A manderecha del poste rutinario
            (Viniendo, claro está, desde el Nornoroeste)
            Se aburre una osamenta - ?Color? Blanquiceleste -
            Que da al corral de ovejas catadura de osario.

          - Duas audácias! - gritou com exultação - libertadas, te ouço resmungar, para o sucesso! Admito, admito. Uma, o epíteto rutinario, que certeiramente denuncia, en passant, o inevitável tédio inerente às fainas pastoris e agrícolas, tédio que nem as " Geórgicas " nem nosso já laureado " Don Segundo ! se atreveram jamais a denunciar assim, ao vivo. Outra, o enérgico prosaísmo se aburre una osamenta, que o melindroso quererá excomungar com horror mas que o crítico de gosto viril apreciará mais que a própria vida. Todo o verso, de resto, é de muito alto quilate. O segundo hemistíquio trava animadíssima conversação com o leitor; se antecipa à sua viva curiosidade, coloca-lhe uma pergunta na boca e a satisfaz... na hora. E que me dizes desse achado, blanquiceleste? O pitoresco neologismo sugere o céu, que é elemento importantíssimo da paisagem australiana. Sem essa evocação resultariam demasiado sombrias as tintas do esboço e o leitor se veria compelido a fechar o volume, com a alma profundamente ferida de incurável e negra melancolia.
         Por volta da meia-noite me despedi.
       Dois domingos depois, Daneri me chamou por telefone, penso que pela primeira vez na vida. Propôs que nos reuníssemos às quatro, " para tomar leite juntos, no salão-bar conjugado que o progressismo de Zunino e de Zungri - os proprietários de minha casa, estarás lembrado - inaugura na esquina e que te importará conhecer ". Aceitei, mais com resignação que com entusiasmo. Foi-nos difícil encontrar mesa; o " salão-bar ", inexorávelmente moderno, era apenas um pouco menos vasto que minhas previsões; nas mesas vizinhas, o excitado público mencionava as quantias gastas sem regatear com Zunino ou com Zungri. Carlos Argentino fingiu assombrar-se com não sei que primores da instalação da luz (que já conhecia, sem dúvida) e me disse com certa severidade:
         - Mesmo que não queiras, tens de reconhecer que este local se compara aos mais sofisticados de Flores.
         Releu, depois, quatro ou cinco páginas do poema. Corrigira-as de acordo com um depravado princípio de ostentação verbal: onde antes escrevera azulado, agora abundava azulino, azulenco e até mesmo azulillo. A palavra lechoso não era bastante feio para ele; na impetuosa descrição de um lavadouro de lã, preferia lactario, lacticinoso, lactescente, lecha... Insinuou os críticos com amargura; depois, mais benigno, comparou-os a essas pessoas " que não dispõem de metais preciosos nem tampouco de prensas a vapor, laminadores e ácidos sulfúricos para a cunhagem de tesouros, mas que podem indicar aos outros o lugar de um tesouro ". Em seguida, censurou a prologomania, " da qual já se fez mofa, no donairoso prefácio do Quixote, o Príncipe do Engenhos ". Admitiu, porém, que no frontispício da nova obra convinha o prólogo vistoso, a ajuda firmada pelo plumífero de forte prestígio. Acrescentou que pensava publicar os cantos iniciais de seu poema. Compreendi então o  singular convite telefônico: o homem ia pedir-me que prefaciasse o seu aranzel. Meu temor era infundado: Carlos Argentino observou, com admiração rancorosa, que não acreditava errar de epíteto ao qualificar de sólido o prestígio logrado em todos os círculos por Álvaro Melián Lafinur, homem de letras, e que, se eu me empenhasse, iria prefaciar com embelezamento o poema. Para evitar o mais imperdoável dos fracassos, eu tinha de me fazer porta-voz de dois méritos incontestáveis: e perfeição formal e o rigor científico, " porque esse extenso jardim de tropos, de figuras, de elegâncias, não tolera um só detalhe que não confirme a severa verdade ". Acrescentou que Beatriz sempre se havia divertido com Álvaro.
           Assenti, assenti profusamente. Esclareci, para maior verossimilhança, que não falaria com Álvaro na segunda-feira, mas na quinta: na pequena ceia que costuma coroar toda reunião do Clube de Escritores. (Não existem tais ceias, mas é irrefutável que as reuniões ocorrem nas quintas-feiras, fato que Carlos Argentino Daneri podia comprovar nos jornais e que dotava a frase de certa realidade.) Disse, entre adivinhatório e sagaz, que antes de abordar o tema do prólogo, descreveria o curioso plano da obra. Despedimo-nos; ao passar pela Rua Bernardo de Irigoyen, encarei com toda imparcialidade o futuro que me restava: a. a falar com Álvaro e dizer-lhe que o primo-irmão aquele de Beatriz (esse eufemismo explicativo me permitiria mencioná-la) elaborara um poema que parecia estender até o infinito as possibilidades de cacofonia e dos caos; b. não falar com Álvaro. Previ, com lucidez, que minha desídia optaria por b.
            A partir de sexta-feira, à primeira hora, começou a importunar-me pelo telefone. Indignava-me que esse instrumento, que noutros dias reproduziu a voz irrecuperável de Beatriz, pudesse rebaixar-se a receptáculo das inúteis e talvez coléricas queixas desse enganado Carlos Argentino Daneri. Felizmente, nada aconteceu - salvo o rancor inevitável que me inspirou aquele homem que me havia imposto uma delicada missão e depois me esquecia.
        O telefone perdeu seus terrores, mas em fins de outubro Carlos Argentino falou comigo. Estava agitadíssimo; não identifiquei sua voz, a princípio. Com tristeza e com raiva, murmurou que aqueles já ilimitados Zunino e Zungri, a pretexto de ampliar sua desmedida confeitaria, iam demolir a casa.
           - A casa de meus pais, minha casa, a velha casa enraizada da Rua Garay! - repetiu, talvez esquecendo seu pesar na melodia da voz.
         Não me foi muito difícil compartilhar da aflição. Já completos os quarenta anos, qualquer mudança é um símbolo detestável da passagem do tempo; além disso, tratava-se duma casa que, para mim, aludia infinitamente a Beatriz. Quis esclarecer esse delicadíssimo aspecto; meu interlocutor não me ouviu. Disse que se Zunino e Zungri persistissem naquele propósito absurdo, o Dr. Zunni, seu advogado, os processaria ipso facto por danos e prejuízos e os obrigaria ao pagamento de cem mil nacionales.
             O nome de Zunni me impressionou; sua banca, em Caseros y Tacuarí, é de uma seriedade proverbial. Perguntei se ele já se havia encarregado do assunto. Daneri disse que iria falar-lhe naquela mesma tarde. Vacilou e com voz plana, impessoal, à qual costumamos recorrer para confiar algo muito íntimo, disse que para terminar o poema a casa lhe era indispensável, pois num ângulo do porão havia um Aleph. Esclareceu que um Aleph é um dos pontos do espaço que contém todos os pontos.
            - Está no porão da sala de jantar - explicou, com a voz aligeirada pela angústia. - É meu, é meu; eu o descobri na infância, antes da idade escolar. A escada do porão é empinada, meus tios me tinham proibido descer, mas alguém me falou que havia um undo no porão. Referia-se, soube-o depois, a um baú, mas eu compreendi que havia um mundo. Desci secretamente, rolei pela escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph.
            - O Aleph? - perguntei.
          - Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos. A ninguém revelei minha descoberta, mas voltei. O menino não podia compreender que lhe fosse concedido esse privilégio para que o homem burilasse o poema! Zunino e Zungri não me despojarão, não e mil vezes não. De código em punho, o Dr. Zunni provará que é inalienável o meu Aleph.
          Procurei raciocinar.
         - Mas não é muito escuro o porão?
         - A verdade não penetra num entendimento rebelde. Se todos os lugares da terra estão no Aleph, ali  estarão todas as luminárias, todas as lâmpadas, todas as fontes de luz.
            - Irei vê-lo imediatamente.
       - Desliguei, antes que ele pudesse fazer uma proibição. Basta o conhecimento de um fato para se perceber no ato uma série de traços confirmatórios, antes insuspeitados; espantou-se não ter compreendido até esse momento que Carlos Argentino era um louco. De resto, todos esses Viterbo... Beatriz (eu mesmo costumo repetir isso) era uma mulher, uma menina de uma clarividência quase implacável, mas havia nela negligências, distrações, desdéns, verdadeiras crueldades, que talvez reclamassem uma explicação patológica. A loucura de Carlos Argentino encheu-me de maligna felicidade; no fundo, sempre nos havíamos detestado.
         Na Rua Garay, a criada me disse que tivesse a bondade de esperar. O menino estava no porão, revelando fotografias. Junto ao vaso de flor, no piano inútil, sorria (mais intemporal que anacrônico) o grande retrato de Beatriz, em pesadas cores. Ninguém nos podia ver; num desespero de ternura, aproximei-me do retrato e disse:
       - Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo, Beatriz querida, Beatriz perdida para sempre, sou eu, sou Borges. 
        Carlos entrou pouco depois. Falou com secura; compreendi que não podia pensar em mais nada senão na perda do Aleph.
       Um copinho de falso conhaque - ordenou - e mergulharás no porão. Já sabes, é indispensável o decúbito dorsal. Também o são a escuridão, a imobilidade, certa acomodação ocular. Tu te encostas no piso de tijolos e fixas o olhar no décimo nono degrau de tal escada. Saio, baixo o alçapão e ficas sozinho. Algum rato te mete medo - não tem importância! Em poucos minutos vês o Aleph. O microcosmo de alquimistas e cabalistas, nosso concreto amigo proverbial, o multum in parvo! 
             Já na sala de jantar, acrescentou 
       - É claro que, se não o vês, tua incapacidade não invalida meu testemunho... Desce; muito em breve poderás estabelecer um diálogo com todas as imagens de Beatriz. 
         Desci com rapidez, farto de suas palavras insubstanciais. No porão, pouca coisa mais largo que a escada, havia muito de poço. Com uma olhada, busquei o baú de que me falara Carlos Argentino. Alguns caixões com garrafas e algumas bolsas de lona escureciam um ângulo. Carlos pegou uma bolsa, dobrou-a e a acomodou num lugar preciso.
         - A almofada é humilde - explicou - mas, se a levanto um só centímetro, não verás nada e ficas confundido e envergonhado. Refestela esse corpanzil no chão e conta dezenove degraus.
           Cumpri suas ridículas exigências; por fim, saiu. Fechou cautelosamente o alçapão; embora houvesse uma fresta que depois distingui, a escuridão pareceu-me total. Subitamente, compreendi meu perigo: deixara-me soterrado por um louco, depois de tomar veneno. As bravatas de Carlos evidenciavam seu íntimo terror de que eu não visse o prodígio; Carlos, para defender seu delírio, para não saber que estava louco, tinha de matar-me. Senti um vago mal-estar, que tratei de atribuir à rigidez, e não ao efeito do narcótico. Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph.
          Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha tímida memória mal e mal abarca? Os místicos, em transe semelhante, gastam os símbolos: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alanus de Insulis fala de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel fala de um anjo de quatro asas que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não é em vão que rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação elas têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este informe ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.
           Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de brilho quase intolerável. Primeiro, supus que fosse giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico ali estava, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um roto labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da Rua Soler os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão duma casa de Frey Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listras de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa vereda onde antes existira uma árvores, vi numa quinta de Androgué um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o fato de as letras de um livro fechado não se misturarem e se perderem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas, numa praia do Mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha, enviando bilhetes postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de alguns fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisontes, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, claras, incríveis, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento na Chacarita, vi a relíquia cruel do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural cujo nome os homens usurpam, mas nenhum homem tem olhado: o inconcebível universo.
           Senti infinita veneração, infinita lástima.
           - Ficarás tonto por bisbilhotar assim onde não és chamado - disse uma voz enfadonha e alegre. - Mesmo que queimes o juízo, não me pagarás num século esta revelação. Que observatório formidável, hein, Borges!
         Os pés de Carlos Argentino ocupavam o degrau mais alto. Na brusca penumbra, consegui levantar-me e balbuciar:
            - Formidável. Sim, formidável.
        A indiferença de minha voz causou-me estranheza. Ansioso, Carlos Argentino insistia:
            - Viste tudo bem, em cores?
        Nesse instante, concebi minha vingança. Benévolo, manifestamente apiedado, nervoso, evasivo, agradeci a Carlos Argentino a hospitalidade de seu porão e instei com ele para aproveitar a demolição da casa e afastar-se da perniciosa metrópole, que a ninguém - creia-me, a ninguém! - perdoa. Neguei-me, com suave energia, a discutir o Aleph; abracei-o, ao despedir-me, e repeti que o campo e a serenidade são dois grandes médicos.
         Na rua, nas escadarias de Constituición, no metrô, pareceram-me familiares todas as faces. Tive medo de que não restasse uma só coisa capaz de surpreender-me, tive medo de que jamais me abandonasse a impressão de voltar. Felizmente, depois de algumas noites de  insônia, agiu outra vez sobre mim o esquecimento.
         Pós-escrito de primeiro de março de 1943 - Seis meses após a demolição do imóvel da Rua Garay, a Editora Procusto não se deixou amedrontar pela extensão do descomunal poema e lançou ao mercado uma seleção de " trechos argentinos ". Vale a pena repetir o ocorrido;  Carlos Argentino Daneri recebeu o Segundo Prêmio Nacional de Literatura. O primeiro foi dado ao Dr. Aita; o terceiro, ao Dr. Mario Bonfanti; incrivelmente, minha obra " Os Naipes do Trapaceiro " não conseguiu um único voto. Mais uma vez, triunfaram a  incompreensão e a inveja! Já faz muito tempo que não consigo ver Daneri; os  jornais dizem que em breve nos vai dar outro volume. Sua pena afortunada (não mais perturbada pelo Aleph) consagrou-se a versificar os epítomes do Dr. Acevedo Díaz.
            Quero acrescentar duas observações: uma, sobre a natureza do Aleph; outra, sobre seu nome. Este, como se sabe, é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada. Sua aplicação ao círculo da minha história não parece casual. Para a Cabala, essa letra significa o En Soph, a ilimitada e pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que assinala o céu e a terra, para indicar que o mundo inferior é o espelho e o mapa do superior; para a Mengenlehre, é o símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes. Eu queria saber: Carlos Argentino escolheu esse nome, ou o leu, aplicado a outro ponto para onde convergem todos os pontos, em algum dos inumeráveis textos que lhe revelou o Aleph de sua casa? Por incrível que pareça, eu acredito que exista (ou que tenha existido) outro Aleph, eu acredito que o Aleph da Rua Garay era um Falso Aleph.
            Dou minhas razões. Por 1867, o Cap. Burton exerceu o cargo de cônsul britânico no Brasil; em julho de 1942, Pedro Henríquez Ureña descobriu numa biblioteca de Santos um manuscrito seu que versava sobre o espelho que atribui o Oriente a Iskandar Zu al-Karnayn, ou Alexandre Bicorne da Macedônia. Em seu cristal refletia-se o universo inteiro. Burton mencionava outros artifícios semelhantes - o sétuplo cálice de Kai Jorsu, o espelho que Tarik Benzeyad encontrou numa torre (" Mil e Uma Noites ", 272), o espelho que Luciano de Samosata pôde examinar na lua (" História Verdadeira ", I, 26), a lança especular que o primeiro livro do " Satiricon " de Capella atribui a Júpiter, o espelho universal de Merlin, " redondo e oco e semelhante a um mundo de vidro " (" The Faerie Queene ", III, 2, 19) - e acrescenta estas curiosas palavras: " Mas os anteriores (além do defeito de não existirem) são meros instrumentos de ótica. Os fiéis que acorrem á mesquita de Amr, no Cairo, sabem muito bem que o universo está no interior de uma das colunas de pedra que rodeiam o pátio central... Ninguém, é claro, pode vê-lo, mas os que aproximam o ouvido da superfície declaram perceber, em pouco tempo, seu atarefado rumor... A mesquita data do século VII; as colunas procedem de outros templos de religiões anteislâmicas, pois como escreveu Abenjaldun: Nas repúblicas fundadas por nômades, é indispensável o concurso de forasteiros para que tudo o que seja alvenaria. "
            Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Vi-o quando vi todas as coisas e o esqueci? Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.

o autor dedicou o texto à Estela Canto; eu dedico à professora Suzana Machado. 
              

Antoninha

                     Bartyra Soares

      No final da rua, num terreno da prefeitura, destoando da paisagem suntuosa da Boa Viagem, lá estava o quarto de Antoninha. Era um exíguo espaço, uma única porta circundada por uma trepadeira de flores miúdas - nada mais.
      Todas as manhãs, com saias de baiana superpostas uma sobre as outras, o branco contrastando com a pele acobreada, os pés nus, de turbante e colares coloridos, Antoninha dançava quase flutuante pela rua, entoando canções que afirmavam ter ter suas raízes na voz das pretas escravas - suas antepassadas. Por vezes executava estranhos passos que ninguém jamais soube se acompanhavam o ritmo do vento ou das ondas espraiando-se ali perto.
      Todo aquele bamboleio enlevava os moradores da rua que saíam para a caminhada ou espreitavam-na das janelas dos edifícios e casas. Era um bailado de pássaro, ondulante, suave, os pés mal tocando o chão, como se fossem deslizar no horizonte que delimitava o verde-azul da distância.
       Não se sabia se Antoninha chegara a Boa Viagem com suas ruas asfaltadas, de mansões e edifícios luxuosos. Invadira o terreno e instalara-se sob velhas caixas de papelão, pedaços de madeira e lona.
       Na verdade, havia sido ela uma das primeiras moradoras daquela rua. Quando edifícios e casas foram construídos, os primeiros moradores olhavam-na constrangidos, intranquilos, cheios de restrições.
       Mas logo acostumaram-se à sua presença discreta. Enfim, ela era uma espécie de patrimônio da rua. Não raro sua dança se estendia até as avenidas adjacentes. Ninguém se atrevia a enxotá-la. Havia aquele cantar de palavras enigmáticas, o bailado de insuspeitada beleza.
        Alimentava-se do que lhe ofereciam às portas, a todos chamando de preto ou preta. De poucas palavras, raramente saía de seu mutismo para exibir aos passantes, amarelados papéis catados nos monturos assegurando que eram cartas de políticos influentes a ela endereçadas. Um dia, alguém providenciara a contrução daquele minúsculo quarto e a partir de então, à noite, viam-na sentada à soleira, balbuciando preces, ou quem sabe? Talvez dialogando com seres só por ela reconhecidos, os olhos cheios de tristeza acompanhando a trajetória da lua.
       Entretanto, ficava profundamente inquieta quando à guisa de brincadeira perguntavam-lhe pelo prédio. Comentava-se ser o manicômio de onde ainda muito jovem evadira-se para escapar do estrangulamento de uma louca.
       Naquelas ocasiões, recolhia-se ao seu quarto com uma dor inalcançável dentro de si, diluindo-se em lágrimas e não aparecia sequer para apanhar algum prato de comida deixado à sua porta.
        Outro fato que desnorteava era quando alguns meninos assediavam-na perguntando-lhe, maliciosos, se já havia pago o condomínio do quarto.
         - Condomínio? - Os olhos escancaravam-se aflitos.
         - Sim, Antoninha. Todo mundo paga. E retiravam-se às gargalhadas.
         Ela postava-se ainda mais silenciosa. a palavra girando dentro do seu corpo como uma ferida semovente, dilacerando-lhe as entranhas:
          - Condomínio?! Condomínio?!
          Porém, mal amanhecia, esquecida de tudo, seguia outra vez pela rua cantarolando suas toadas, bailando ao ritmo das ondas (ou do vento?). As saias esvoaçantes, um meio-sorriso abrindo clareira entre as canções, o sol naufragando-lhe nos olhos muito abertos.
          Uma noite, aproximou-se dela um homem maltrapilho e não foram necessárias palavras. Antoninha retirou o olhar da lua fitando os dele e logo estavam abraçados.
          Certa manhã, foram vistos um defronte ao outro, ela tentando ensinar-lhe alguns passos de dança. O homem, desajeitado, sem ritmo, a barriga desdobrando-se sobre a bermuda rota arrastava os pés, os braços abertos, a cabeça inclinada. A cena sacudiu alguns dos espectadores para risadas incontroláveis e a outros deixou imersos num silêncio imposto pela compaixão. Só a voz de Antoninha enchia de suavidade a rua. Fora um canto tão triste que mais pareceu uma súplica fluindo de uma flauta doce.
          Aquela foi a última vez que o viram. Quando indagada sobre ele, era lacônica:
          - Quem não tem coração de passarinho não aprende a voar.
          - Voar, Antoninha?
          Mas o silêncio era um felino de passos mansos esgueirando-se de seu olhar deixando os curiosos sem mais perguntas.
          E assim, à noite, voltou a sentar-se à porta do quartinho, seguindo, os olhos fiando água, o itinerário da lua.
          Numa manhã, o sol já escalara alguns patamares no caminho das horas e Antoninha não apareceu. O vento redemoinhava nas árvores, arrancando-lhes folhas e o mar jogava-se afoito por sobre o calçadão como que, ambos a reclamarem daquela ausência.
          Alguns moradores aproximaram-se do seu quarto e empurraram a porta semicerrada: estava vazio. No chão algumas saias, os colares e o turbante soltos em desalinho.
          De imediato a rua inteira soube e começaram a surgir as conjeturas. O que acontecera? Teria sido a polícia que, numa ronda, a encontrara com seus passos de bailarina vagando pela noite? Falava-se que possuía alguns parentes. Tinham sido eles que a vieram buscar abrasados pelo remorso? Ou ela teria sido vítima da sanha desvairada de algum marginal? daquele maltrapilho que com ela dividira algumas noites de amor?
          - Quem não tem coração de passarinho... - Relembraram alguns.
          Um meninozinho explicava a todo momento, nervoso, as mãos agitadas atritando-se uma de encontro à outra, como se a ausência de Antoninha fosse uma tragédia para a humanidade:
           - Juro! Nunca mais perguntei a ela pelo prédio!
           Sem respostas, com o passar do tempo, os habitantes da rua, imersos nas suas atividades foram-na esquecendo. A rua passou a dormitar indiferente aos movimentos da Lua, do Sol, do vento.
             Numa madrugada, contudo, Antoninha surgiu como que saída do mar. Seus passos ritmados com o balanço das ondas (ou do vento?), flutuantes como nunca, ágeis, determinados, ao mesmo tempo suaves e sinuosos percorreram toda a rua, a voz clara enchendo o espaço de encantamento, trazendo consigo o anúncio de que breve o sol nasceria das águas. E como se nada estivesse acontecendo dirigiu-se para o seu quartinho.
              Alguns madrugadores saindo para a caminhada, surpresos seguiram-na, dela aproximando-se cheios de indagações. Onde estivera? O que fizera? Com quem andara?
               Antoninha sorridente retirou de um bolso da saia um papel amarrotado, exibindo-lhes uma cédula de R$ 1,00 em tamanho gigante, reproduzida num jornal de intensa circulação na cidade e esclareceu com um gesto gracioso de bailarina:
               - Agora posso pagar o condomínio.
               Naquela noite, sequer apareceu para acompanhar o trajeto da lua cheia.
        

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Saudade

                   Chrystian

Você sempre fez os meus sonhos
Sempre soube do meu segredo
Isso já faz muito tempo
Eu nem me lembro quanto tempo faz

O meu coração não sabe contar os dias
E a minha cabeça já está tão vazia
Mas a primeira vez, ainda me lembro bem
Talvez eu seja no seu passado
Mais uma página, que foi, do seu diário arrancada

Sonho, choro e sinto
Que resta alguma esperança
Saudade
Quero arrancar esta página
Da minha vida

Música do já citado disco de 1988 de Chrystian & Ralf intitulado apenas " Volume VI ".

Desculpa

        Martinha/Iranfe

Desculpa esse meu jeito indelicado
É sem querer que te magoo o coração
Sei que nem sempre faço tudo o que sinto
Coisas de amor
Que não tem explicação

Desculpa
Pelas vezes que eu disfarço
Na tentativa de esconder meus sentimentos
Quando estou triste eu procuro seu abraço
Então descubro onde estão meus bons  sentimentos

Eu te quero mais do que quero querer
Eu sou seu mais do que sou mesmo de mim
Eu às vezes me confundo com você
E me desespero ao me ver tão seu assim

Desculpa
Por deixar esta saudade
Que muitas vezes sei que faz você sofrer
Eu me arrependo quando sinto na verdade
Que a minha vida vale a pena por você

Desculpa
Pelas coisas que eu não faço
Querendo sempre não fazer tanta bobagem
Covardemente corro sempre pros seus braços
Desculpe agora
Esta falta de coragem

Música do então LP de " Chrystian & Ralf " intitulado apenas " Volume VI " lançado em 1988.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A terceira margem do rio

                       Guimarães Rosa

    Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que  testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não  figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente - minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
     Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
      Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva e pálida, mascou o beiço e bramou: - " Cê vai, ocê fique, você nunca volte! " Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: " Pai, o senhor me leva junto, nessa canoa? " Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a benção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo - a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
       Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram junto conselho.
       Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas - passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda - descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
       No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a ideia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz,  e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
      Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazendo e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se  chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar um retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, e escuridão daquele.
       A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia, de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as  semanas, e meses, e os anos - sem fazer conta de se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração na canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo - de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não,  de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
      Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado na noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão na cabeça e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficando preto de sol e dos pelos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu,mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
      Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas,  por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: - " Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim... "; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi um dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
       Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com  minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei - na vagação, no rio no ermo - sem dar razão de seu feitio. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
       Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio - pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice - esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse - se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia.
       Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: - " Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!... " E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
       Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por favor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte do além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
        Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.
        

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Impossível Acreditar Que Perdi Você

                          Cobel/Márcio Greyck

Não
Eu não consigo acreditar
No que aconteceu
É um sonho meu
Nada se acabou
Não
Eu não consigo viver sem você
Volte e venha ver
Tudo em mim mudou

Eu já não consigo mais
Viver dentro de mim
E viver assim
É quase morrer
Venha me dizer sorrindo
Que você brincou
E que ainda é meu
Só meu o seu amor

Hoje
Mais um dia de tristeza
Para mim passou
Nem no meu olhar
Nada se alegrou
Sinto-me perdido
No vazio que você deixou
Nada quero ser
Já nem sei quem eu sou

Esta canção recebeu duas regravações distintas e muito bonitas: uma versão mais suave feita por Rita Ribeiro e outra mais dramática feita pela Rosana. Ambas são de arrepiar...

A Distância

              Roberto/Erasmo


Nunca mais você ouviu falar de mim
Mas eu continuei a ter você
Em toda esta saudade que ficou
Tanto tempo já passou
E eu não te esqueci


Quantas vezes eu pensei voltar
E dizer que o meu amor nada mudou
Mas o meu silêncio foi maior
E na distância morro todo dia 
Sem você saber


O que restou do nosso amor ficou
No tempo esquecido por você
Vivendo do que fomos ainda estou
Tanta coisa já mudou
Só eu não te esqueci


Quantas vezes eu pensei voltar
E dizer que o meu amor nada mudou
Mas o meu silêncio foi maior
E na distância morro todo dia
Sem você saber


Eu só queria lhe dizer que eu
Tentei deixar de amar não consegui
Se alguma vez você pensar em mim
Não se esqueça de lembrar
Que eu nunca te esqueci


Quantas vezes eu pensei voltar
E dizer que o meu amor nada mudou
Mas o meu silêncio foi maior
E na distância morro todo dia
Sem você saber


gravação visceral feita por Simone em seu CD " Sou Eu ", de 1993.

Sem Saída

                Mutinho/Toquinho


Agora que você já me acostumou
A andar com os pés no chão, levitando
Me surpreender sorrindo sem ter por quê

Agora que você já me iluminou
Chegou feito a manhã clareando
Entrando pelas frestas do meu viver

Agora que você mesmo sem querer
Me envenena o sangue nas veias
E deixa à flor da pele os desejos meus

Agora que eu já sou e é bom de ser
Uma presa feliz na tua teia
Você vem me dizer simplesmente adeus

Me diz como se faz quando se sente 
A vida de repente sem saída, sem razão
Me diz como se vive nessa hora
E o que é que eu digo agora pro meu coração

Agora que esse amor é tão grande assim
E envolve a noite em doces gemidos
Enchendo de energia os dias meus

Agora que a alegria transborda em mim
Vazando pelos cinco sentidos
Você vem me dizer simplesmente adeus.

Música do então LP de Toquinho intitulado " Coisas do Coração " gravado em 1986.

Estranho

               Chico César


Eu bem que avisei
Sou estranho
Não chegue tão perto assim
Vai por mim
Você fez que não ouviu
Tomou de conta
Fez de conta que era charme alfenim
Ai de mim
Agora quero ir embora
Embora não deseje o fim
Vai por mim


Jeito de Amar

               Mauro Kwitko/Pisca


Quando você me chega
Com os olhos de quem me quer
Eu abro meu corpo
Desço do trono
Eu quero beijar seus pés
São seus os meus segredos
Que eu tenho guardado em mim
Mas eu me ofereço
Pago seu preço
Se você for mesmo assim

Mesmo sendo um sonhador
Da vida aventureiro
Aprendi que o amor
É mais que um simples sonho
É real

Esse é meu jeito de amar você
Já não dá mais pra mudar
A vida, eu sei, me fez perceber
Que esse é meu jeito de amar.

Música gravada em 1982 por Ney Matogrosso.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Circuito Fechado 5

                  Ricardo Ramos


Não. Não foi o belo, quase nunca, nem ao menos o bonito, porque tudo se veio esgarçando em rotina, sombra com vazio. Não foi o plano, o projeto, a lucidez conduzindo, já que o mistério se fez magia e baralhou os búzios da vontade. Não foi o imaginado, o sonhado, mas a verdade miúda e comovida sem ter de quê. Não foi o tempo que abarca vastamente, não, deve ser o que se conta aos pedaços, reconta, em mesquinha soma, e medrosa. Não foi o prometido, o esperado, antes foram os enganos, os engodos, os adiamentos sempre roubos, pequenos e de importância. Não foi nada útil, ou de se repartir, apenas o de guardar para comer sozinho. Não foi o brilhante, de anel e de relâmpago, simplesmente a luz no vidro. Não foi o bom, foi o barato, não foi o alegre, foi o pouco a pouco, não foi o claro, foi o difuso, pois os encargos chegam logo, e se aprendem, e ficam. Não foi o momento certo, a maior parte aconteceu de repente, ou cedo, ou tarde, afinal se repetiu. Não foi a viagem, a longa, larga viagem, de recordar, rever, que as paradas e os horários dividiram muito o roteiro, partiram, nublaram, não devolveram. Não foi o encontro nem a sua memória, não foi a paisagem nem o esquecimento, foi esse passar de pessoas e o seu reverso de imóvel, que se isola e não fala, porque não adianta. Não foi a cidade mas a rua, não foi a figura mas a boca, não foi a chuva mas a calha. Não foi o campo, nem a mata, o morro, nem o rio, a relva, nem a árvore, foi a janela de trem, de carro, de longe. Não foi o livro aberto, a oração disfarçada, a primeira lição. Não foi a lâmpada, o linho, a lenda. Não foi a casa, o quintal, o corredor com portas e pé-direito. Não foi o que vem de dentro, e sim o que bate, não se anuncia, e força, abre, e entra. Não foi o pacífico, o sem tumulto, foi até mesmo a guerra, ou melhor o combate, a escaramuça, perdidos de mãos nuas, limpas, as armas brancas. Não foi o amor, a certeza, o amanhã, foram as palavras que representam, a ideia de, o conceito, enfim a sua redução. Não foi pouco nem muito, foi igual. Não foi sempre, nem faltou, foi mais às vezes. Não foi o que, foi como e onde, e quando. Não, não foi.

Circuito Fechado 4

                  Ricardo Ramos


Ter, haver. Uma sombra no chão, um seguro que se desvalorizou, uma gaiola de passarinho. Uma cicatriz de operação na barriga e mais cinco invisíveis, que doem quando chove. Uma lâmpada de cabeceira, um cachorro vermelho, uma colcha e os seus retalhos. Um envelope com fotografias, não aquele álbum. Um canto de sala e o livro marcado. Um talento para as coisas avulsas, que não duram nem rendem. Uma janela sobre o quintal, depois a rua e os telhados, tudo sem horizonte. Um silêncio por dentro, que olha e lembra, quando se engarrafam o trânsito, os dias, as pessoas. Uma curva de estrada e uma árvore, um filho, uma filha, um choro no ouvido, um recorte que permanece, e todavia muda. Um armário com roupa e sapatos, que somente veste, e calçam, e nada mais. Uma dor de dente, uma gargalhada, felizmente breves. Um copo de ágate, sem dúvida amassado. Uma cidade encantada, mas seca. Um papel de embrulho e cordão, para todos os pacotes, a cada instante. Uma preocupação, um recuo, uma certeza, que se diluem e confundem, se gastam, e continuam. Um gosto de fruta com travo, um tostão guardado, azinhavrado, foi sempre a menor moeda. Uma régua de cálculo, nunca aprendida. Um quiosque onde se vendia garapa, os copos e as garrafas com o seu brilho. Uma gaveta, uma gravura, os guardados de chave e de parede. Um caminhar de cabeça baixa, atento aos buracos da calçada. Um diabo solto, uma prisão que o segura, um garfo e uma porta. Um rol de gente, de sonho com figuras, que passa, que volta, ou se some sem anotação. Uma folhinha, um relógio, muito adiantados. Uma hipermetropia que não deixa ver de perto, é necessário recuar as imagens até o foco. Um realejo que não soube aos sete anos, uma primeira alegria aos quatorze, uma unha encravada e um arrepio depois. Uma fábrica de vista, um descaroçador de algodão, uma usina com a tropa de burros, são os trechos de paisagem com e sem raiz. Um morto, uma dívida, um conto com história. Um  cartão de identidade cinzento floreada, só ela. Um lugar à mesa. Uma tristeza, um espanto, as cartas do baralho, passado, presente e futuro, onde estão? Uma resposta adiada. Uma vida em rascunho, sem tempo de passar a limpo.

Circuito Fechado 3

                   Ricardo Ramos


Muito prazer. Por favor, quer ver meu saldo? Acho que sim. Que bom telefonar, foi ótimo, agora mesmo estava pensando em você. Puro, com gelo. Passe mais tarde, ainda não fiz, não está pronto. Amanhã eu ligo, e digo alguma coisa. Guarde o troco. Penso que sim. Este mês, não, fica para o outro. Desculpe, não me lembrei. Veja logo a  conta, sim? É pena, mas hoje não posso, tenho um jantar. Vinte litros, da comum. Acho que não. Nas próximas férias, vou até lá, de carro. Gosto mais assim, com azul. Bem,  obrigado, e você? Feitas as contas, estava errado. Creio que não. Já, pode levar. Ontem aquele calor, hoje chovendo. Não, filha, não é assim que se faz. Onde está minha camisa amarela? Às vezes, só quando faz frio. Penso que não. Vamos indo, naquela base. Que é que você tem? Se for preciso, dou um pulo aí. Amanhã eu telefono e marco, mas fica logo combinado, quase certo. Sim, é um pessoal muito simpático. Foi por acaso, uma coincidência. Não deixe de ver. Quanto mais quente melhor. Não, não é bem assim. Morreu, coitado, faz dois meses. Você não reparou que é outra? Salve, lindos pendões. Mas que esperança. Nem sim nem não, muito pelo contrário. Como é que eu vou saber? Antes corto o cabelo, depois passo por lá. Certo. Pra mim, chega. Espere, mais tarde nós vamos. Aí foi que ele disse, não foi no princípio, quem ia adivinhar? Deixe, vejo depois. Sim, durmo de lado, com uma perna encolhida. O quê? É, quem diria. Acredito que sim. Boa tarde, como está o senhor? Pague duas, a outra fica para o mês que vem. Oh, há quanto tempo! De lata e bem gelada. Perdoe, não tenho miúdo. Estou com pressa. Como é que pode, se eles não estudam? Só peço que não seja nada. Estou com fome. Não vejo a hora de acabar com isto, de sair. Já que você perdeu o fim de semana, por que não veio pescar? É um chato, um perigo público. Foi há muito tempo. Tudo bem, tudo legal? Gostei de ver. Acho que não, penso que não, creio que não. Acredito que sim. Claro, fechei a porta e botei o carro pra dentro. Vamos dormir? É leia que é bom. Ainda agosto e esse calor. Me acorde cedo amanhã, viu?

Circuito Fechado 2

                     Ricardo Ramos


Dentes, cabelos, um pouco de ouvido esquerdo e visão. A memória intermediária, não a de muito longe nem a de ontem. Parentes, amigos, por morte, distância, desvio. Livros, de empréstimo, esquecimento e mudança. Mulheres também, com os seus temas. Móveis, imóveis, roupas, terrenos, relógios, paisagens, os bens da infância, do caminho, do entendimento. Flores e frutos, a cada ano, chegando e se despedindo, quem sabe não virão mais, como o jasmim no muro, as romãs encarnadas, os pés-de-pau. Luzes, do candeeiro ou vaga-lume. Várias vozes, conversando, contando, chamando, e seus ecos, sua música, seu registro. O alfinete das primeiras gravatas e o sentimento delas. A letra de canções que foram importantes. Um par de alpercatas, uns sapatos pretos de verniz, outros marrons de sola dupla. Todas as descobertas, no feitio de crescerem e se reduzirem depois, acomodadas em convívio, costume, a personagem, o fato, a amiga. As ideias, as atitudes, as posições, com a sua revisada, apagada consciência. O distintivo sem cor nem formato. Qualquer experiência, de profissão, de gosto, de vida, que se nivela incorporada, nunca depois, quando é preciso tomá-la entre os dedos como um fio e atá-la. Os bondes, os trilhos. As caixas-d'água, os cataventos. Os porta-chapéus, as cantoneiras. Palavras, que foram saindo, riscadas, esquecidas. Vaga praia, procissão, sabor de milho, manhã, o calor passado não adormecia. Um cheiro urbano, depois da chuva no asfalto, com o  namoro que arredondava as árvores. Ansiedade, ou timidez, mais antes e após, sons que subiam pela janela entrando muito agudos, ou muito mornos. Sino, apito de trem. Os rostos, as páginas. Lugares, lacunas. Por que não instantes? As sensações, todas as de não guardar. O retrato mudando na parede, no espelho. Desbotando. Os dias, não as noites, são o que mais ficou perdido.

Circuito Fechado 1

                          Ricardo Ramos


Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço, relógio, maço de cigarros, caixa de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícaras e pires, prato, bule, talheres, guardanapo. Quadros. Pasta, carro. Cigarro, fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda, copo com lápis, canetas, blocos de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de saída, vaso com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo. Bandeja, xícara pequena. Cigarro e fósforo. Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes, telefone, papéis. Relógio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboços de anúncios, fotos, cigarro, fósforo, bloco de papel, caneta, projetor de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro, fósforo, quadro-negro, giz, papel. Mictório, pia, água. Táxi. Mesa, toalha, cadeiras, copos, pratos, talheres, garrafa, guardanapo, xícara. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Escova de dentes, pasta, água. Mesa e poltrona, papéis, telefone, revista, copo de papel, cigarro, fósforo, telefone interno, externo, papéis, prova de anúncio, caneta e papel, relógio, papel, pasta, cigarro, fósforo, papel e caneta, telefone, caneta e papel, telefone, papéis, folheto, xícara, jornal, cigarro, fósforo, papel e caneta. Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Paletó, gravata. Poltrona, copo, revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres, copos, guardanapos. Xícaras. Cigarro e fósforo. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. Abotoaduras, camisa, sapatos, meias, calça, cueca, pijama, chinelos. Vaso, descarga; pia, água, escova, creme dental, espuma, água. Chinelos. Coberta, cama, travesseiro.

A melhor mãe do mundo

                   Marta Medeiros


Você é. Sua vizinha também. A Maitê. A Malu. A Cláudia. Eu, naturalmente. Somos as melhores mães do mundo. Aliás, essa é a única categoria em que não há segundo lugar, todas as mães são campeãs, somos bilhões de " as melhores " espalhadas pelo planeta. Ao menos, as melhores para nossos filhos, que nunca tiveram outra.

Não é uma sorte ser considerada a melhor, mesmo se atrapalhando tanto? Mãe erra, crianças. E improvisa. Mãe não vem com manual de instruções: reage apenas aos mandamentos do coração, o que tem um inestimável valor, mas não substitui um bom planejamento estratégico. E planejamento é tudo o que uma mãe não consegue seguir, por mais que livros, revistas e psicólogos tentem orientar.

Um dia um exame confirma que você está grávida e a felicidade é imensa e o pânico também. Uau, vou ser responsável pela criação de um ser humano! (Papai também vai, mas em agosto a gente fala dele.) A partir daí, nunca mais a vida como era antes. Nunca mais a liberdade de sair pelo mundo sem dar explicações a ninguém. Nunca mais pensar em si mesma em primeiro lugar. Só depois que eles fizerem dezoito anos, e isso demora. E às vezes nem adianta.

O primeiro passo é se acostumar a ser uma pessoa que já não pode se guiar apenas pelos próprios desejos. Você continuará sendo uma mulher ativa, autêntica, batalhadora, independente, estupenda, mas cem por cento livre, esqueça. De maridos você escapa, dos próprios pais você  escapa, mas da responsabilidade de ser mãe, jamais. E nem você quer. Ou será que gostaria?

De vez em quando, sim, gostaríamos de não ter esse compromisso com vidas alheias, de não precisar monitorar os passos dos filhotes, de não ter que se preocupar com a violência que eles terão que enfrentar, de não sofrer pelas dores-de-cotovelo deles, de não temer por suas fragilidades, de não ficar acordadas enquanto eles não chegam e de não perder a paciência quando eles fazem tudo ao contrário do que sonhamos.

Gostaríamos que eles não falassem mal de nós nos consultórios dos psiquiatras, que eles não nos culpassem por suas inseguranças, que não fôssemos  razão de seus traumas, que esquecessem os momentos em que fomos severas demais e que nos perdoassem nas vezes em que fomos severas de menos. Há sempre um " demais " e um " de menos " nos perseguindo. Poucas vezes acertamos na intensidade dos nossos conselhos e críticas.

Mas é assim que somos: às vezes exageradamente enérgicas em momentos bobos, às vezes um tantinho condescendentes na hora de impor limites. A gente implica com alguns amigos deles e adora outros e não consegue explicar por quê, mas nossa intuição diz que estamos certas. Mas de que  adianta estarmos certas se eles só se darão conta disso quando tiverem os próprios filhos?

Erramos em forçá-los a gostar de aipo, erramos em agasalhá-los tanto para as excursões do colégio, erramos em deixar que passem a tarde no computador em véspera de prova, erramos em não confiar quando eles dizem que sabem a matéria, erramos em nos escabelar porque eles estão com os olhos vermelhos (pode ser resfriado!), erramos quando não os olhamos nos olhos, erramos quando fazemos drama por nada, erramos um pouquinho todo dia por amor e por cansaço.

O que nos torna as melhores mães do mundo é que nossos erros serão sempre acertos, desde que estejamos por perto.

Obrigado por tudo, mãe. Feliz aniversário hoje e sempre... Beijão

crônica do livro " Doidas e Santas ".

terça-feira, 3 de julho de 2012

Lenda do Pequi

                 Marietta Telles Machado


Tainá-racan tinha os  olhos cor de noite estrelada. Seus cabelos desciam pelas espáduas como um tufo de seda negra e luzidia. O andar era elegante, cadenciado, macio como o de uma deusa passeando, flor entre flores, no seio da mata. Maluá botou os olhos em Tainá-racan e o coração saltou, louco e fogoso, no peito do jovem e formoso guerreiro. " Ela é mesmo linda como a estrela da manhã. Quero-a para minha esposa. Hei de amá-la enquanto durar a minha vida! "

Doce foi o encontro e, juntos e casados, a vida dos dois era bela e alegre como o ipê florido. De madrugada, Maluá saía para a caça e para a pesca, enquanto a esposa tecia os colares, as esteiras, moqueava o peixe, preparando o calugi para ofertar ao amado, quando ele chegasse com o cesto às costas, carregado de peixe e frutas, as mais viçosas, para oferecer-lhe.

O tempo foi passando, passando. No enlevo do amor, eles não perceberam quantas vezes a lua viajou pela arcada azul do céu, quantas vezes o sol veio e se escondeu na sua casa do horizonte. Floriram os ipês. Caíram as flores. Amareleceram as folhas, que o vento levava em loucas revoadas pelos campos. Os vermelhos cajus arcavam de fartura e beleza os galhos dos cajueiros. As castanhas escondiam-se no seio da terra boa. Rebentavam-se em brotos, e novos cajueiros despontavam. As cigarras enchiam as matas com sua forte sinfonia e sua vida evolava-se, aos poucos, em cada nota de seu canto. Nascimentos, mortes, transformações e os dias andando, andando.

Após três anos de casamento, numa noite bonita, em que o rio era um calmo dorso de prata à luz do luar e os bichos noturnos cantavam fundas tristezas e medos, Maluá encostou a cabeça no peito de Tainá-racan e apertou-a com ternura. No olhar de ambos, há muito, havia uma sombra. Nenhum deles tinha a coragem de falar. Uma palavra de mágoa, temiam, poderia quebrar o encanto de seu amor. A beleza da noite estremecia o coração sensível de Tainá-racan. Ela ajuntou a alma dos lábios e perguntou com a voz trêmula em sussurro:

- Estás triste, amado meu? Nem é preciso que respondas. Há tempo vejo uma sombra nos teus olhos.

- Sim, respondeu o valente guerreiro. Tu sabes que eu estou triste e tu também estás. A dor é a mesma.

- Onde está nosso filho que Cananxiué não quer mandar?

- Sim, onde está nosso filho?...

Maluá alisou com carinho o ventre da formosa esposa. " E o nosso filho não vem ", murmurou. Dois pequeninos rios de lágrimas deslizaram pelas faces coradas de Tainá-racan. Um vento forte perpassou pela floresta. Uma nuvem escura cobriu a lua, que não mais tornava de prata as águas mansas do rio. trovões reboaram ao longe. Maluá envolveu Tainá-racan nos braços e amou-a. " Nosso filho virá sim. Cananxiué no-lo mandará. "

Quando os ipês voltaram a florir, no ano seguinte, numa madrugada alegre, nasceu Uadi - o arco-íris. Era lindo, gordinho, tinha os olhos cor da noite estrelada como os da mãe e era forte como o pai. Mas, havia algo diferente, algo que espantou o pai, a mãe, a tribo inteira: Uadi tinha os cabelos dourados como as flores do ipê. Maluá recebeu o nascimento do filho como um presente de Cananxuié. Seu coração, contudo, estremeceu com a singularidade dele. Começou a espalhar pela tribo a lenda de que o menino era filho de Cananxiué. O menino crescia cheio de encanto, alegria e de uma inteligência incomum. Fascinava a mãe, o pai, a aldeia, a tribo toda. Com rapidez incrível aprendeu o nome das coisas e dos bichos. Sabia cantar as baladas tristes e alegres que a mãe ensinava. Era a alegria e a festa da mãe, do pai, da tribo.

Um dia, Maluá, com outros guerreiros, foi chamado para a luta. Os olhos pretos de Tainá-racan encheram-se de lágrimas. O rostinho vivo de Uadi se ensombreceu. À despedida, seus bracinhos agarraram-se ao pescoço do pai e ele falou: " Papai, vou-me embora para a noite, depois, chegarei à casa de Tainá-racan, a mãe, lá no céu. " E seu dedinho róseo apontou o horizonte. O corpo de bronze do guerreiro se estremeceu. Seus lábios moveram-se, mas as palavras teimavam em não sair. Ele apertou, com força, o menino nos braços e, por fim, falou: " Que é isso, filhinho, tu não vais para lugar nenhum, nenhum deus te arrancará de mim. A tua casa é a casa de tua mãe, Tainá-racan, aqui na terra, e a de teu pai. Se for preciso, não partirei para a guerra. Ficarei contigo. "

Nesse momento, Cananxiué, o senhor de todas as matas, de todos os animais, de todos os montes, de todos os vales, de todas as águas e de  todas as flores, desceu do céu sob a forma de Anderurá, a arara vermelha, e gritou forte: " Vim buscar meu filho! " Agarrou-o e levou-o pelos ares. Tainá-racan e Maluá caíram de joelhos. O guerreiro abriu os braços gritando: " O filho é nosso, sua casa é a casa de sua mãe, Tainá-racan, aqui na terra! Devolve meu filho, Cananxiué! " O grito de Maluá ecoou pela mata, ferindo de dor o silêncio. O peito do guerreiro palpitava de sofrimento como uma montanha ferida pelo terremoto. O velho chefe guerreiro aproximou-se dele, bateu-lhe no ombro e bradou: " Teus companheiros já partem. Maior que tua dor é tua honra de guerreiro e a glória de nossa tribo! Vai, meu filho. Cananxiué buscou o que é dele. Muitos outros filhos ele te dará. Tainá-racan é jovem. Vai, guerreiro, não deixa a dor matar tua coragem! "


Maluá partiu. Tainá-racan encostou a fronte na terra, onde pouco antes pisavam os pezinhos encantados de Uadi. Chorou. Chorou. Chorou três dias e três noites. Então, Cananxiué se apiedou dela. Baixou à terra e disse: " Das tuas lágrimas nascerá uma planta, que se transformará numa árvore copada. Ela dará flores cheirosas que os veados, capivaras e lobos virão comer nas noites de luar. Depois, nascerão os frutos. Dentro da casca verde, os frutos serão dourados como os cabelos de Uadi. Mas a semente será cheia de espinhos, como os espinhos da dor de teu coração de mãe. Seu aroma será tão tentador e inesquecível que aquele que provar do fruto e gostar, amá-lo-á para jamais o esquecer. Como também amará a terra que o produziu. Todos os anos, encherei, generosamente, sua copa de frutos, e os galhos se curvarão com a fartura. Ele se espalhará pelos campos, irá para a mesa dos pobres e  dos ricos. Quem estiver longe e não puder comê-lo, sentirá uma saudade doida de seu aroma. Nenhum sabor o substituirá. Ele há de dourar todos os alimentos com que se misturar e, na mesa em que estiver, seu odor predominará sobre todos. Ele há de dourar também os licores, para a alegria da alma. "


Tainá-racan ergueu o olhar, aquele olhar onde brilhou a primeira estrela da consolação. E perguntou ao deus:


- Como se chamará, Cananxiué, esse fruto bom, cujo coração são os espinhos de minha dor, cuja cor são os cabelos de ouro de Uadi e cujo aroma é inesquecível como o cheiro dessa mata, onde brinquei com meu filhinho?


- Chamar-se-á Ramauó, pequi, minha filha. Quero ver-te alegre de novo, pois te darei muitos filhos, fortes e sadios como Maluá. E teu marido voltará cheio de glória da batalha, pois muitos séculos se passarão até que nasça um guerreiro tão destemido e tão honrado! Ele comerá deste fruto e gostará dele por toda a vida!


Tainá-racan sorriu. E o pequizeiro começou a brotar.


Este conto faz parte do livro " Antologia do Conto Goiano II - o conto contemporâneo ", organizado pelas professoras Vera Maria Tietzmann Silva e Maria Zaira Turchi, de 1994 e lançado pela Editora UFG.