quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sobre Moluscos e Homens

         Rubem Alves


Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suíça.

Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas, e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras e lindas (que os protegem da fome dos predadores)!

Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo de molusco, chamado " homem ".

Muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animados de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais, nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais: eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta.

A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado, que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, " é a necessidade que faz o sapo pular ". E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, conclui que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver.

O pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.

O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não tem uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com  o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de " conhecimento "...

Sem excitação, a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de " burrinho "... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.

Os ditos " programas " escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais no momento (insisto na expressão " no  momento "; a vida só acontece " no momento ") da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos, a sua justa recusa em aprender, a sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar...

Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca; é esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido, não fazia sentido.

Por isso acho inúteis os exames oficiais (inclusive os vestibulares) feitos para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho.

O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor especialista em português saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência sobre os estudantes?

Ah! Piaget! Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...

domingo, 24 de novembro de 2013

Aniversário

   Álvaro de Campos/Fernando Pessoa


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera a sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem a acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humanidade no corredor do fim da casa,
Pondo gelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Como uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos de louça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Para, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Canção no Rádio

     Joanna/Tony Baía/Tharcísio

Quando ouvir no rádio essa canção de amor
Não fale nada, escute os versos
Sinta, por favor
É uma canção feita pra você ouvir

Sem o seu carinho e amor, meu bem
Quero dizer que nessa vida
Eu não sou ninguém
Não posso esquecer, quero lembrar você

Quando vejo a nossa estrela
Espero o dia amanhecer
Tenho o seu perfume em minha boca
Saudade que aperta e que faz doer

Mar de água cristalina
Traga o meu amor assim
Feito luz do sol, que coisa linda
Brilho da manhã que nasceu em mim

Quando ouvir no rádio essa canção de amor
Preste atenção, tente entender
Me ouça, por favor
É uma canção feita pra você ouvir

Só o que eu quero é te fazer lembrar
E, em tudo que eu cantar, será por nosso amor
Leve essa canção
Seja aonde for

Música do então LP de Joanna gravado em 1985.