26 novembro 2025

Os Dragões

 "Fui irmão de dragões

e companheiro de avestruzes."

(Jó, XXX, 29)


Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.

Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.

A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender do erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático negava-lhes a qualidade de dragões, "coisa asiática, de importação europeia". Um leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas-sem-cabeça, lobisomens.

Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.

O cansaço e o tempo venceram a teimosia de muitos. Mesmo mantendo suas convicções, evitavam abordar o assunto.

Dentro em breve, porém, retomariam o tema. Serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões na tração de veículos. A ideia pareceu boa a todos, mas se desavieram asperamente quando se tratou da partilha dos animais. O número destes era inferior ao de pretendentes.

Desejando encerrar a discussão, que se avolumava sem alcançar objetivos práticos, o padre firmou uma tese: os dragões receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados.

Até aquele instante eu agira com habilidade, evitando contribuir para exacerbar os ânimos. E se, nesse momento, faltou-me calma, o respeito devido ao bom pároco, devo culpar a insensatez reinante. Irritadíssimo, expandi o meu desagrado:

- São dragões! Não precisam de nomes nem do batismo!

Perplexo com a minha atitude, nunca discrepante das decisões aceitas pela coletividade, o reverendo deu largas à humildade e abriu mão do batismo. Retribuí o gesto, resignando-me à exigência de nomes.

Quando subtraídos ao abandono em que se encontravam, me foram entregues para serem educados, compreendi a extensão da minha responsabilidade. Na maioria, tinham contraído moléstias desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer. Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos. Melhor dotados em astúcia que os irmãos, fugiam, à noite, do casarão e iam se embriagar no botequim. O dono do bar se divertia vendo-os bêbados, nada cobrava pela bebida que lhes oferecia. A cena, com o decorrer dos meses, perdeu a graça e o botequineiro passou a negar-lhes o álcool. Para satisfazerem o vício, viram-se forçados e recorrer a pequenos furtos.

No entanto eu acreditava na possibilidade de reeducá-los e superar a descrença de todos quanto ao sucesso da minha missão. Valia-me da amizade com o delegado para retirá-los da cadeia, onde eram recolhidos por motivos sempre repetidos: roubo, embriaguez, desordem.

Como jamais tivesse ensinado a dragões, consumia a maior parte do tempo indagando pelo passado deles, família, métodos pedagógicos seguidos em sua terra natal. Reduzido material colhi dos sucessivos interrogatórios a que os submetia. Por terem vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha. Para dificultar a minha tarefa, ajuntava-se à debilidade da memória dos meus pupilos o seu constante mau humor, proveniente das noites mal dormidas e ressacas alcoólicas.

O exercício continuado do magistério e a ausência de filhos contribuíram para que eu lhes dispensasse uma assistência paternal. Do mesmo modo, certa candura que fluía dos seus olhos obrigava-me a relevar faltas que não perdoaria a outros discípulos.

Odorico, o mais velho dos dragões, trouxe-me as maiores contrariedades. Desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se à presença de saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver com ele.

Tudo fiz para destruir a ligação pecaminosa e não logrei separá-los. Enfrentavam-me com uma resistência surda, impenetrável. As minhas palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel e esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que lavava.

Pouco tempo depois, ela foi encontrada chorando perto do corpo do amante. Atribuíram sua morte a tiro fortuito, provavelmente de um caçador de má pontaria. O olhar do marido desmentia a versão.

Com o desaparecimento de Odorico, eu e minha mulher transferimos o nosso carinho para o último dos dragões. Empenhamo-nos na sua recuperação e conseguimos, com algum esforço, afastá-lo da bebida. Nenhum filho talvez compensasse tanto o que conseguimos com amorosa persistência. Ameno no trato, João aplicava-se aos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as compras feitas no mercado. Findo o jantar, ficávamos no alpendre a observar sua alegria, brincando com os meninos da vizinhança. Carregava-os nas costas, dava cambalhotas.

Regressando, uma noite, da reunião mensal com os pais dos alunos, encontrei minha mulher preocupada: João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade.

O fato, longe de torná-lo temido, fez crescer a simpatia que gozava entre as moças e rapazes do lugar. Só que, agora, demorava-se pouco em casa. Vivia rodeado por grupos alegres, a reclamarem que lançasse fogo. A admiração de uns, os presentes e convites de outros, acendiam-lhe a vaidade. Nenhuma festa alcançava êxito sem sua presença. Mesmo o padre não dispensava o seu comparecimento às barraquinhas do padroeiro da cidade.

Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município, um circo de cavalinhos movimentou o povoado, nos deslumbrou com audazes acrobatas, engraçadíssimos palhaços, leões amestrados e um homem que engolia brasas. Numa das derradeiras exibições do ilusionista, alguns jovens interromperam o espetáculo aos gritos e palmas ritmadas:

- Temos coisa melhor! Temos coisa melhor!

Julgando ser brincadeira dos moços, o anunciador aceitou o desafio:

- Que venha essa coisa melhor!

Sob o desapontamento do pessoal da companhia e os aplausos dos espectadores, João desceu ao picadeiro e realizou sua costumeira proeza de vomitar fogo.

Já no dia seguinte, recebia várias propostas para trabalhar no circo. Recusou-as, pois dificilmente algo substituiria o prestígio que desfrutava na localidade. Alimentava ainda a pretensão de se eleger prefeito municipal.

Isso não se deu. Alguns dias após a partida dos saltimbancos, verificou-se a fuga de João.

Várias e imaginosas versões deram ao seu desaparecimento. Contavam que ele se tomara de amores por uma das trapezistas, especialmente destacada para seduzi-lo; que se iniciara em jogos de cartas e retomara o vício da bebida.

Seja qual a razão, depois disso muitos dragões têm passado pelas nossas estradas. E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas, encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos.


Conto de Murilo Rubião retirado do livro Contos Reunidos, Editora Ática, São Paulo, 1998.

25 novembro 2025

Cemitério de Elefantes

À margem esquerda do Rio Belém, nos fundos do mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro - ali os bêbados são felizes. Curitiba os considera animais sagrados, provê às suas necessidades de cachaça e pirão. No trivial contentam-se com as sobras do mercado.

Quando ronca a barriga, ao ponto de perturbar a sesta, saem do abrigo e,  arrastando os pesados pés, atiram-se à luta pela vida. Enterram-se no mangue até os joelhos na caça ao caranguejo ou, tromba vermelha no ar, espiam a queda dos ingás maduros.

Elefantes malferidos, coçam as perebas, sem nenhuma queixa, escarrapachados sobre as raízes que servem de cama e cadeira. Bebem e beliscam pedacinho de peixe. Cada um tem o seu lugar, gentilmente avisam:

- Não usem a raiz do Pedro.

- Ele foi embora, sabia não?

- Aqui há pouco...

- Sentiu que ia se apagar e caiu fora. Eu gritei: Vai na frente, Pedro, deixa a porta aberta.

À flor do lodo borbulha o mangue - os passos de um gigante perdido? João dispõe no braseiro o peixe embrulhado em folha de bananeira.

- O Cai N'água trouxe as minhocas?

- Sabia não?

- Agora mesmo ele...

- Entregou a lata e disse: Jonas, vai dar pescadinha da boa.

Lá do sulfuroso Barigui rasteja um elefante moribundo.

- Amigo, venha com a gente.

Uma raiz no ingazeiro, o rabo de peixe, a caneca de pinga.

No silêncio o bzzz dos pernilongos assinala o posto de um e outro, assombrado com o farol piscando no alto do morro.

Distrai-se um deles a enterrar o dedo no tornozelo inchado. Puxando os pés de paquiderme, afasta-se entre adeuses em voz baixa - ninguém perturbe os dorminhocos. Esses, quando acordam, não perguntam aonde foi o ausente. E, se indagassem, para levar-lhe margaridas do banhado, quem saberia responder? A você o caminho se revela na hora da morte.

A viração da tarde assanha as varejeiras grudadas nos seus pés disformes. Nas folhas do ingazeiro reluzem lambaris prateados - ao eco da queda de frutos os bêbados erguem-se com dificuldade e os disputam rolando no pó. O vencedor descasca o ingá, chupa de olho guloso a fava adocicada. Jamais correu sangue no cemitério, a faquinha na cinta é para descamar peixe. E, aos brigões, incapazes de se moverem, basta xingarem-se à distância.

Eles suportam o delírio, a peste, o fel na língua, o mormaço, as câimbras de sangue, berram de ódio contra os pardais, que se aninham entre as folhas e, antes de dormir, lhes cospem na cabeça - o seu pipiar irrequieto envenena a modorra.

Da margem contemplam os pescadores mergulhando os remos.

- Um peixinho aí, compadre?

O pescador atira o peixe desprezado no fundo da canoa.

- Por que você bebe, Papa-Isca?

- Maldição de mãe, uai.

- O Chico não quer peixe?

- Tadinho, a barriga d'água.

Sem pressa, aparta-se dos companheiros cochilando à margem, esquecidos de enfiar a minhoca no anzol.

Cospe na água o caroço preto do ingá, os outros não o interrogam: presas de marfim que apontam o caminho são as garrafas vazias. Chico perde-se no cemitério sagrado, as carcaças de pés grotescos surgindo ao luar.


Conto de Dalton Trevisan retirado do livro Cemitério de Elefantes, Editora Record, 11ª Edição, Rio de Janeiro, 1997.

24 novembro 2025

O Vampiro de Curitiba

Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada - ai, querida, é uma folha seca ao vento - e encostasse bem devagar na safadinha. Acho que morreria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue.

Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no seu canto, ela que começou. Ninguém diga seu taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro - não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, seu desgraçado. Um anjo pode dizer amém! Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas. Perdoe a  indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? Ó, você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro a seus pés. Por Deus do céu não lhe faça mal - o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado.

Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo do crime? Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa minha não é. Elas fizeram o que sou - oco de pau podre, onde floresce aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por que então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito do que eu?

Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia, irrompem no rosto - o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque recebendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!

Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atrai o pobre rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama - acho que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem o rapaz, seria capaz de? Deus me livre beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda o colibri e enraivece o vampiro.

Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e arminho - rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos do corpo. Ó bracinho nu e rechonchudo - se não quer por que mostra em vez de esconder? -, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.

Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco - ó mãe do céu - desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia voo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico - conheci cada pai de família.

Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia. Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova - à palavra alcova um nó na garganta.

Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol.

Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda de lobisomem. Não olhe agora. Cara feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta - como não roer unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar, quer bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás dela, quando menino era a bandinha do Trio Rio Branco.

Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila - onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão.

Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração da andorinha. A loira, tonta, abandona-se na mesma hora. Ó morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas instrumento do prazer - de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na cara?

Eu vos desprezo, virgens incrédulas. A todas poderia desfrutar - nem uma baixou sobre mim o olho estrábico de luxuria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, ó Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca?

Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que dá voltas para morder o rabo. Em despedida - ó curvas, ó delícias - concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro - os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro hora e desmaia feliz.


Conto de Dalton Trevisan retirado do livro O Vampiro de Curitiba, Editora Record, 14ª Edição, Rio de Janeiro, 1994.

23 novembro 2025

Entrevistas Telefônicas

Antigamente, o repórter envergava a sua melhor roupa, lançava um olhar às unhas e à barba, examinava o dinheiro do bolso, e lá ia com o fotógrafo à busca de sua entrevista. Pensava no que ia perguntar. Estabelecia um plano, um esquema. Examinava o seu caderno de apontamentos. Riscava. Acrescentava. Creio que alguns ensaiariam mesmo a maneira de abordar o assunto. Pesariam as palavras. Para cada pessoa há uma espécie de diálogo. Cada diálogo tem seu vocabulário. O repórter, só com a escola da experiência, com seu senso de responsabilidade e a sua vontade de acertar, comparecia respeitosamente diante do seu entrevistado. E, no fim da conversa, prontificava-se a mandar-lhe o seu trabalho, antes de publicá-lo, para alguma correção necessária.

Um repórter assim parece criatura paleontológica. Mas alguns ainda estão vivos, pela vizinhança. Talvez apenas estejam aposentados ou tenham mudado de profissão, pois os tempos mudaram completamente.

Como os meios de transporte se tornaram impossíveis; e como todos somos tão ocupados que ninguém nos encontra com facilidade; como, além disso, nos tornamos tão inteligentes que podemos concentrar numa simples frase uma ideia sublime, capaz de desvendar mistérios, de transformar o mundo e mesmo atingir o universo em seus fundamentos, a reportagem pode ser feita com muito mais facilidade mediante uma ligação telefônica.

Assim, estamos nós mergulhados numa leitura inadiável, com o pensamento comprometido numa direção, e a voz mais gentil deste mundo pergunta-nos muito obsequiosamente se vamos ou não vamos ganhar o campeonato de futebol; o que pensamos dos amores de Elizabeth Taylor; quem deve ser indicado o homem do ano; se iremos à Luz no ano que vem; se as crianças devem ou não assistir a programas de televisão; se somos a favor ou contra a eutanásia; qual é a senhora mais elegante do mundo; se os mortos devem ser enterrados ou cremados; se a Princesa Soraia poderá vir a ser uma boa artista de cinema; se o melhor meio de ir para Niterói será a ponte ou o túnel; se as escolas devem ter um, dois ou três turnos; qual é a melhor maneira de acabar com o analfabetismo; se o morro do Querosene cai ou deve ser derrubado; se acreditamos que os macacos tenham possibilidade de falar; se os autômatos seriam uma solução para a falta de empregados; qual seria o maior poeta do mundo e quem deve ganhar o Prêmio Nobel; se haverá guerra no Oriente, e quando; se existem barras de ouro nos muros das casas de Ouro Preto; se o carnaval está mesmo acabando ou ainda vai durar alguns anos; se os homens sabem amar melhor que as mulheres ou vice-versa.

Então, nós, da nossa modéstia, na certeza de não sermos nem enciclopedistas, nem adivinhos, nem mesmo observadores internacionais, tropeçamos diante da voz tão amável. Como podemos responder? Quem sabe? É difícil dizer...

Mas a voz não é muito exigente. Uma palavra basta. Sim ou não... Qualquer coisa... Apenas para satisfazer a curiosidade dos leitores...

E então, que fazemos? Porque não se deve ser como uma porta fechada a quem bate e chama por nós, respondemos ao acaso. (Salvo os privilegiados, com presença de espírito, onisciência e genialidade telefônica.)

Mas na semana seguinte os amigos e conhecidos nos felicitam efusivamente. Estivemos formidáveis. Brilhantíssimos. Estupendos. É exatamente assim que eles pensam. E que clareza de resposta! Nítida. Concisa. Perfeita.

E temos até receio de ficar melancólicos. Como nos podemos confessar humilhados com essa perfeição?


Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Ilusões do Mundo, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1976.

A Galeria

Entro por um dos lados da galeria, mas não são as primeiras lojas as que mais me interessam, embora se trate de bons restaurantes, com suas vidraças forradas de cortininhas franzidas, por trás das quais bem me lembro do apuro das claras toalhas e dos brilhantes cristais.

Vejo a bela vitrina das modas; detenho-me a contemplar os brocados orientais, esse primor de tecelagem, com figuras, cenas, paisagens, que aparecem e desaparecem ora com fios de seda branca, ora em fios de seda cor de ouro. (Que mão se atreve a cortar um pano destes? Que obra de arte pode essa mão criar que seja superior a essa obra de arte?)

Vejo a pastelaria com sua variedade de pães, bolos, biscoitos, todas as combinações que os homens engendraram sobre o trigo e a simples e primitiva necessidade de se alimentarem. (Houve um homem, na minha raça, que se descobria diante do trigo ceifado. Alguém atreveu-se a perguntar-lhe, certa vez, por que assim fazia. E ele, reverente e sóbrio, respondeu-lhe, com o sucinto falar de seu tempo: "Porque o trigo é sagrado: sem ele não se celebra.")

Vejo a pequena loja de objetos vários; bolsinhas de petit-point, broches de porcelana, colheres de prata, lenços de seda, caixinhas; o dono da loja está sempre no mesmo lugar, sentado da mesma maneira, lendo um jornal (que espero não seja o mesmo), com a mesma expressão no rosto sereno. Entra-se para comprar qualquer coisa, ele atende, embrulha, dá o troco, volta para o mesmo lugar, continua a ler o que estava lendo, e é como se não tivesse acontecido nada. (Pensando bem, acontece alguma coisa em tais ocasiões, entre vendedor e comprador? Algum dos dois fica mais feliz? Ou tudo são ilusões trocadas, pequeno jogo que aprendemos e vamos repetindo, neste mundo de modestos deslumbramentos e precárias rotinas?) Enfim, o dono da loja senta-se da mesma maneira, retoma o seu jornal e é como se nada daquilo lhe pertencesse, nem se importasse que aparecesse qualquer freguês.

Mais adiante, ao contrário, é a loja surpreendente de um jovem cheio de entusiasmo e agitação. O que se vende? Vende-se tudo quanto a fantasia humana é capaz de inventar, e especialmente artigos para cotillon, curiosidades para dias de festa; chapeuzinhos de papel, charutos que parecem acesos, cartolinhas que apertadas de certo modo fazem saltar lá de dentro um coelhinho branco, binóculos que não medem mais de uns dois centímetros - sem falar em vistas transparentes sobre assuntos que podem ser dos mais inocentes, como o Monte Branco, até os mais perigosos, impróprios para menores e senhoras, e que estão separadas em outra caixa, para uma freguesia especial.

E assim prossegue a tranquila galeria. Uns param diante da vitrina de artigos fotográficos: - Que máquinas, que tripés! - inclinam-se, agacham-se, acocoram-se, enviam a todas aquelas peças olhares perpendiculares, transversais e creio que até mesmo elíticos; olhares que veem do outro lado das coisas e o interior das próprias coisas, que desmontam, aparafusam, atarraxam esses segredos mecânicos, engenhosos e sutis. E tudo para quê? Para fotografar este mundo, as pessoas e os objetos deste mundo, como se tudo devesse ser fixado, tudo merecesse perdurar, tudo tivesse uma parte de valor inesquecível; enfim, o seu instante divino e imortal.

Ah! Muita coisa se aprende, a caminhar por uma galeria de lojas tão diversas, de proprietários tão diferentes, e por onde os passantes - tão civilizados - são umas sombras silenciosas que, diante de cada vitrina, procuram compreensão, comunicação, interpretação entre os desejos que levam consigo e as múltiplas sugestões que aos seus olhos se apresentam.

No fim de tudo, e quando já é noite, no salãozinho à meia-luz, um pianista martela no seu piano verde monótonos ritmos intermináveis, a cujo som as belas senhoras jantam, pensativas, sem que se possa adivinhar o que, a cada uma, possa dizer cada nota.


Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Ilusões do Mundo, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1976.

22 novembro 2025

Compensação

Hoje eu queria apenas abrir um álbum de fotografias, onde não houvesse gente de olhos duros e mãos aduncas. Onde umas boas senhoras pousassem no papel com delicadeza, não para sobreviverem eternamente, mas para mandarem seus retratos às amigas com finas letras de "sincera afeição". Um álbum onde aparecessem uns bons velhotes que não faziam negociatas, que não sabiam multiplicar dinheiro, que usavam roupas desajeitadas, sofriam de reumatismo, liam Virgílio e Horácio, e não tinham medo dos fantasmas do porão. De lá de dentro de seus retratos essas sombras estariam dizendo: "Meus filhos, nada disso vale a pena..." (E saberíamos que falavam de parentes sôfregos, ávidos de partilhas, uns querendo herdar as terras do morro; outros, a mata; outros, a várzea - todos vivendo já do testamento, antes mesmo da extrema-unção...) Hoje eu queria ficar folheando este álbum, onde não desejaria encontrar aqueles herdeiros.

Hoje eu queria ler uns livros que não falam de gente, mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações...

Hoje eu queria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se, viver sua existência, autêntica, integral, do nascimento à morte, muito breve, sem borboletas nem abelhas de permeio. Uma existência total, no seu mistério. (E antes da flor? - Não sei.) (E depois da flor? - Não sei.) Esta ignorância humana. Este silêncio do universo. A sabedoria.

Hoje eu queria estar entre as nuvens, na velocidade das nuvens, na sua fragilidades, na sua docilidade de serem e deixarem de ser. Livremente. Sem interesse próprio. Confiante. À mercê da vida. Sem nenhum sonho de durarem um pouco mais, de ficarem no céu até o ano 2000, de terem emprego público, férias, abono de Natal, montepio, prêmio de loteria, discurso à beira do túmulo, nome em placa de rua, busto no jardim... (Ó nuvens prodigiosas, criaturas efêmeras que estais tão alto e não pretendeis nada, e sois capazes de obscurecer o sol e de fazer frutificar a terra, e não tendes vaidade nenhuma nem apego a esses acasos!) Hoje eu queria andar lá em cima nas nuvens, com as nuvens, pelas nuvens, para as nuvens...

Hoje eu queria estar no deserto amarelo, sem beduíno, camelo ou rebanho de cabras: no puro deserto amarelo onde só reina o vento grandioso que leva tudo, que não precisa nem de água, nem de areia, nem de flor, nem de pedra, nem de gente. O vento solitário que vai para longe de mãos vazias.

Hoje eu queria ser esse vento.


Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Escolha o Seu Sonho, Editora Record,  21ª edição, Rio de Janeiro, 1998.

Capacete da Esperança (94)

 "Tendo por capacete a esperança na salvação." - Paulo. (I TESSALONICENSES, 5:8.)


O Capacete é a defesa da cabeça em que a vida situa a sede de manifestação do pensamento e Paulo não podia lembrar outro símbolo mais adequado à vestidura do cérebro cristão, além do capacete da esperança na salvação.

Se o sentimento, muitas vezes, está sujeito aos ataques da cólera violenta, o raciocínio, em muitas ocasiões, sofre o assédio do desânimo, à frente da luta pela vitória do bem, que não pode esmorecer em tempo algum.

Raios anestesiantes são desfechados sobre o ânimo dos aprendizes por todas as forças contrárias ao Evangelho salvador.

A exigência de todos e a indiferença de muitos procuram cristalizar a energia do discípulo, dispersando-lhe os impulsos nobres ou neutralizando-lhe os ideais de renovação.

Contudo, é imprescindível esperar sempre o desenvolvimento dos princípios latentes do bem, ainda mesmo quando o mal transitório estenda raízes em todas as direções.

É necessário esperar o fortalecimento do fraco, à maneira do lavrador que não perde a confiança nos grelos tenros; aguardar a alegria e a coragem dos tristes, com a mesma expectativa do floricultor que conta com revelações de perfume e beleza no jardim cheio de ramos nus.

É imperioso reconhecer, todavia, que a serenidade do cristão nunca representa atitude inoperante, por agir e melhorar continuamente pessoas, coisas e situações, em todas as particularidades do caminho.

Por isso mesmo, talvez, o apóstolo não se refere à touca protetora.

Chapéu, quase sempre, indica passeio, descanso, lazer, quando não defina convenção no traje exterior, de acordo com a moda estabelecida.

Capacete, porém, é indumentária de luta, esforço, defensiva.

E o discípulo de Jesus é um combatente efetivo contra o mal, que não dispõe de muito tempo para cogitar de si mesmo, nem pode exigir demasiado repouso, quando sabe que o próprio Mestre permanece em trabalho ativo e edificante.

Resguardemos, pois, o nosso pensamento com o capacete da esperança fiel e prossigamos para a vitória suprema do bem.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

21 novembro 2025

Sonho de menino analfabeto

 O chão foi meu quadro-negro;

gravetos, o meu giz. (Paulo Freire)


Quero aprender a ler e a escrever logo.

Quero sentar no chão do meu quintal e, com prego ou graveto, escrever um montão de palavras bem bonitas. No chão, já desenho melhor do que no caderno.

Quero escrever um dia nomes de gente muito amada; de minha mãe; de meu pai, dos meus irmãos, de meu avô, de minha avó, dos meus tios e primos.

Quero escrever nomes de países sonhados, de brinquedos perdidos ou quebrados. Nomes de todos os bichos e coisas que já tive e perdi por aí.

Quero escrever como quem sonha e pode dar nome a tudo. Só que nomes escritos, pois já não me interessam os falados.

Vou me lembrar dos amigos todos, dos parentes todos, até daqueles que já sumiram deste mundo e moram agora no céu.

Desenhar um coração, eu já sei. Fazer uma flecha cortando o coração, também já sei. Agora faltam duas coisas: arrumar minha primeira namorada e aprender a escrever, no coração dividido, os nomes meu e dela.

Quando eu souber escrever, vai ser tudo diferente... Posso escrever todos os meus sonhos, todas as minhas alegrias e também as minhas tristezas. Sonho escrito deve durar mais. Tristeza escrita deve se apagar dentro da gente e ficar inteirinha no papel.

Daqui a um ano, vou deixar só de rabiscar bolinhas e montanhas. Vou deixar de colorir coisas chatas, que já vêm desenhadas pra gente. Vou aprender a escrever e a desenhar tudo o que vejo no mundo: gente, flor, bicho, casa e coisas.

Acho que quem escreve pode ser meio dono deste mundo...


Conto de Elias José retirado do livro O Furta-Sonos e Outras Histórias, Coleção Era Uma Vez, Atual Editora, 4ª Edição, São Paulo, 1991.

O Dono da Bola

A coisa mais joia, mais maravilha das maravilhas, a maior sensação é ser dono da bola de futebol. Uma bola de capotão, durinha, feita de couro, com partes brancas e outras negras. Uma bola de verdade, não essas feitas de meia velha, que grudam no chão. Bola bonita e firme pra gente chutar e chutar, até fazer gol.

E a molecada da rua, vendo a bola, fica sempre com muita inveja. E agrada que agrada a gente.

Quem tem uma bola assim de verdade vira rei. Vira príncipe. Vira tudo o que quiser. Basta falar "quero", e todo mundo obedece, com medo de não entrar no futebol.

Quero uma bola lindona, de couro puro, durinha, branca e preta.

Já ando cheio de chutar bola de meia velha. De chutar tudo o que vejo e que tem forma arredondada ou oval. De chutar lima, limão, laranja, manga, mamão e até bolinhas de papel.

Quero uma bola de verdade, bem minha. Não quero mais saber de bola de couro que só more nos meus sonhos.

Quando tiver minha bola, ninguém vai poder comigo. Vou ser o moleque mais feliz e mais respeitado e mais amado de minha rua. Quem tem uma bola de couro, uma bola durinha, de verdade, branca e preta, não precisa de mais nada...


Conto de Elias José retirado do livro O Furta-Sonos e Outras Histórias, Coleção Era Uma Vez, Atual Editora, 4ª Edição, São Paulo, 1991.

20 novembro 2025

Fazendo cabeças para quem vai nascer

Com as próprias mãos, Oxalá amassou o barro e com ele modelou os bonecos aos quais deu a vida com o sopro de Olorum, transformando-os em seres humanos. Mas isso também não foi nada fácil. O Criador fracassou várias vezes antes de chegar à matéria-prima mais adequada para a modelagem dos humanos.

Primeiro os fez de ar, mas eles se desvaneciam, sem consistência. Com água também não funcionou: as criaturas lhe escorriam por entre os dedos, caíam num jorro e se infiltravam no solo.

Oxalá achou que tinha que dar mais solidez ao ser humano e tentou fazê-lo de pau. Agora sim, os novos seres se mantinham firmes e não lhe escapavam das mãos. Só que ficaram duros demais, quase nem podiam se mexer.

E assim Oxalá foi experimentando tudo quanto era material que lhe parecia apropriado. De ferro, os modelos do ser humano ficaram pesados demais. De massa de inhame ficaram leves, mas muito moles.

Adetutu ficou tentada a sugerir a Oxalá que pedisse ajuda a Exu, mas decidiu não se meter na Criação. Exu insistia em seu ouvido:

"Diga a ele para me pedir ajuda, diga."

Ela preferiu ficar quieta. Mas Oxalá, talvez ciente da conversa de Exu com Adetutu, chamou o imrão e lhe deu de presente um galo preto bem gordo para reforçar a oferenda anterior.

Passoi-se algum tempo e nada aconteceu. Frustrado e com medo do fracasso, Oxalá se sentou às margens de um lago para descansar e refletir.

Nanã, que habitava o fundo daquelas águas, veio em socorro de Oxalá. Quando Nanã saiu do lago, a visão de seu corpo feito de lama iluminou a mente de Oxalá.

"Você, que é a mais antiga de nós, se move tão bem com seu corpo de lama. E como é bela!", ele disse. "De lama poderia ser também o corpo dos humanos."

Adetutu imaginou seu corpo feito de lama e avaliou que não ficara nada mau.

Nanã disse:

"Pode usar a lama e fazer quantos humanos quiser. Mas se um dia não tiver mais um bom uso para suas criaturas e decidir se desfazer delas, terá que me devolver a matéria-prima."

"Feito", concordou Oxalá, satisfeito com o trato, achando que nunca teria de devolver nada a Nanã.

Então, com uma porção de barro do fundo do lago, Oxalá modelou sua criatura e lhe deu vida. Fez corpo, cabeça e membros. Recheou com o coração, os pulmões, as tripas e os demais componentes que preenchem a barriga. Fez dois modelos iguais. Num, pôs pênis e testículos; no outro, ovário útero e vagina, e seios cheios de leite. Para que a criatura dotada de pênis penetrasse a criatura dotada de vagina, e suas sementes se misturassem e produzissem outras criaturas, sem mais trabalho para Oxalá, que poderia descansar.

Caprichou o quanto pôde. Só esqueceu de pôr alguma coisa dentro da cabeça.

Dotados de vida, os seres, que foram chamados homem e mulher, não pensavam, não agiam, nem mesmo se interessavam um pelo outro. Bela reprodução!, pensou Oxalá, desolado.

Foi consultar o adivinho Ifá para saber onde errara.

Seguia acompanhado de Adetutu, que segurava sua mão e procurava encorajá-lo.

O resultado da consulta ao oráculo foi bastante promissor. Disse Ifá:

"Está tudo certo, meu irmão. Você apenas esqueceu de dar a cada ser humano um destino, as vontades e o raciocínio próprio. Basta completar sua obra, e ela funcionará."

"Ah, bom!", reagiu Oxalá, aliviado.

Oxalá pagou a Ifá duas porções de azeite e dezesseis fileiras de búzios pela adivinhação, despediu-se e, depois de deixar na encruzilhada mais um agradinho para Exu, foi à casa de outro irmão, o oleiro Ajalá.

Combinaram que a partir de então, para cada homem ou mulher, Ajalá forneceria o recheio do crânio, que conteria o destino e a personalidade de cada um.

Assim foi feito.

Bastou que as criaturas recebessem o que está dentro da cabeça para saírem pelo mundo como seres humanos prontos para a vida.

De seu palácio. Olorum sorriu para Oxalá, agradecido, e se retirou para seus aposentos.

Oxalá estava cansado, muito cansado, mas a obra, enfim, estava feita.

Antes de voltar para casa, deu a Adetutu um caracol, que ela guardou na sua sacolinha de segredos.

E desde então os homens se multiplicaram e tomaram conta da Terra. Hoje são seus senhores. E Oxalá pôde descansar.

A labuta do oleiro Ajalá, entretanto, prossegue até os dias de hoje: antes de nascer, cada ser humano deve passar na olaria de Ajalá e escolher uma cabeça para si. O trabalho de Ajalá não cessa, sempre é preciso fazer novas cabeças. Nunca para de nascer gente.

Ajalá faz as cabeças de barro e depois as cozinha no forno. Nem sempre a tarefa é bem-sucedida. Ajalá às vezes bebe demais e erra o ponto, de modo que algumas cabeças saem meio cruas, outras cozidas demais, quando não tortas, ocas, malformadas. Na pressa de nascer, os seres humanos pegam qualquer cabeça. Pobre de quem nasce com uma cabeça daquelas...

Adetutu, ao se lembrar desse pormenor, chacoalhou bem sua cabeça, querendo se certificar de que era boa. "Louca eu não sou", ela concluiu, satisfeita.

Teve pena de Ajalá. Tanta trabalheira, e quase ninguém se lembrava dele, poucos lhe faziam festa. Adetutu tinha aprendido que Iemanjá cuidava das cabeças. Alguém lhe dissera: "Ajalá faz, Iemanjá conserta". Então ela se lembrou da história.

Houve um tempo em que Iemanjá foi casada com Oxalá. Ela tinha uma missão muito bem definida: tomar conta de Oxalá e de sua casa. Devia cuidar para que nada lhe faltasse, dando-lhe o carinho e as honras merecidos por aquele que havia criado a humanidade. Afinal, eram os homens que alimentavam os deuses, e seu Criador merecia um lugar muito importante entre os orixás.

Iemanjá achava que a missão não lhe dava o prestígio merecido. Cuidar de Oxalá era um encargo honroso, mas para ela isso era pouco, queria uma tarefa grandiosa, em que pudesse usar de poderes que os demais invejassem. Oxalá era o pai de todos os seres humanos, não era? Então, sendo casada com ele, ela era a mãe. Queria honra maior? Ela queria. Queria ser chamada de mãe, sim, mas que fosse por seu próprio mérito, e não por ser casada com o Criador.

Enquanto cozinhava para Oxalá, preparava seu banho, alvejava suas túnicas brancas, Iemanjá falava sem parar. Queria tanto fazer alguma coisa de grande, ter uma missão que a tornasse indispensável, estar verdadeiramente à altura de Oxalá, o Grande Orixá.

Tanto falou no ouvido de Oxalá, tanto reclamou, que ele enlouqueceu.

E agora? Iemanjá se assustou. O que diriam os outros? Em vez de cuidar de Oxalá, ela o fizera adoecer. Certamente seria castigada, nunca teria os poderes que almejava. 

Iemanjá tratou de curar a cabeça de Oxalá. Com a ajuda de Exu a Ossaim, que sabia tudo sobre o poder curativo das plantas, Iemanjá preparou banhos e unguentos para a cabeça de Oxalá, fez oferendas, cuidou para que ele repousasse num ambiente todo branco, limpo e silencioso, rezou. Em pouco tempo Oxalá ficou bom da loucura, sarou.

Olorum gostou de resultado e ordenou que, a partir de então, Iemanjá cuidasse da cabeça de todos os homens e mulheres. Demonstrara ter talento para isso. Muitos tinham a cabeça malformada e precisavam de ajuda.

Agora sim. Os humanos sabiam que Iemanjá tinha força para ajudar os loucos, os deprimidos, os de mente fraca. E como de louco todo mundo tem um pouco, não houve quem deixasse de adorar Iemanjá. Presentes e festas nunca lhe faltaram. Os humanos dançavam para ela e a chamavam de Mãe das Cabeças, Mãe da Humanidade.

Adetutu agradeceu a Iemanjá por manter sua cabeça em bom estado. Apesar de todo o sofrimento a que estava submetida desde que os caçadores de escravos a tinham raptado, apesar de toda a incerteza que povoava os seus dias, Adetutu se mantinha lúcida e esperançosa. Iemanjá ficou feliz por ter sido lembrada, e deu um peixinho de prata a Adetutu, que o guardou na sacolinha. Pensou como eram tantas as histórias de Iemanjá. E continuou a sonhar com a Criação.


Conto de Reginaldo Prandi retirado do livro A Criação do Mundo - Contos e Lendas Afro-brasileiros, Editora Cia. das Letras / Editora Schwarcz, São Paulo, 2009.

Tem início a maior criação da criação

Ao acordar, Oxalá não podia acreditar no que seus olhos viam. Estava tudo mudado. O mundo agora existia!

Onde antes não havia nada, viam-se campos, rios, mares. Plantas de todas as formas e tamanhos forravam o chão da Terra, peixes enchiam os mares de formas e movimentos, bandos de pássaros animavam os ares em revoadas coloridas e sonoras. A luz estava em todos os lugares. O Sol, no firmamento, iluminava o dia. E depois do dia vinha a noite, e com ela o escuro, quebrado pelo clarão da Lua e pelo cintilar das estrelas. Oxalá se comoveu com tanta beleza e se aqueceu no calor do universo recém-nascido.

De repente se deu conta: quem era o responsável por aquilo tudo, se ele dormira nas últimas horas? Procurou o saco da Criação e não o achou. Mais que depressa, Oxalá tratou de voltar à casa de Olorum. No caminho, ao passar pela encruzilhada, deu de cara com Exu terminando sua refeição, lambendo os beiços de prazer. Zombeteiro, Exu disse:

"Os inhames que ganhei de Odudua estavam soberbos. E você, meu caro irmão mais velho, apreciou o vinho-de-palma?"

Oxalá não precisou ouvir mais nada: fora passado para trás. Enganado por seu próprio orgulho e presunção.

Adetutu sentiu pena de Oxalá e resolveu lhe fazer companhia no caminho para o palácio de Olorum. Mas não lhe deu atenção, estava deprimido demais. Ou será que ele não percebia que ela estava ali, será que ela ainda não existia? Pensou a menina.

Na casa de Olorum, Oxalá foi duramente repreendido.

"Nunca mais beberá vinho-de-palma nem comerá nada que se extraia da palmeira de dendê", determinou o Ser Supremo, como castigo. "Nem você, nem nenhum de seus descendentes."

Oxalá estava arrasado, evidentemente, e não ousava olhar o Pai nos olhos. O Ser Supremo então disse:

"Ainda falta o mais importante no mundo. Eu pus na sua cabeça a semente de uma ideia que não pus no saco da Criação. Apesar de tudo, você é meu primogênito e há de ser lembrado como Oxalá, o Grande Orixá."

Oxalá sentiu que alguma coisa se mexia em sua cabeça. Então o Pai lhe disse:

"Vá e crie."

Oxalá partiu com destino ao mundo.

Olorum mandou chamar Exu e ordenou:

"Acompanhe seu irmão mais velho. Espero que desta vez ele não beba. E você, nada de trapaças."

Oxalá tratou de passar bem longe do dendezeiro. Compenetrado, sempre lembrando que dessa vez devia tentar ser humilde, Oxalá depositara na primeira encruzilhada, como presente para Exu, um cabrito, quatro galos, cebolas, azeite de dendê, sal, pimenta e noz-de-cola e outra de água fresca. Um verdadeiro banquete dos deuses, que Exu adorou.

Adetutu sentia que suas pernas e braços, seus pés e mãos, todas as partes de seu corpo, enfim, eram apertadas por várias mãos vigorosas, como se alguém a estivesse modelando, ajustando aqui, dando forma ali. Depois sentiu no rosto o calor de um sopro e ouviu palavras de ordem que a chamavam para a vida.

Oxalá estava criando o ser humano.


Conto de Reginaldo Prandi retirado do livro A Criação do Mundo - Contos e Lendas Afro-brasileiros, Editora Cia. das Letras / Editora Schwarcz, São Paulo, 2009.

19 novembro 2025

O bem se paga com o bem

A onça caiu numa armadilha preparada pelos caçadores e, por mais que tentasse escapar, ficou prisioneira. Resignara-se a morrer, quando viu passar um homem. Chamou-o e lhe pediu que a libertasse.

- Deus me livre! - disse o transeunte. - Se você ficar solta, vai me devorar.

A onça jurou que seria eternamente agradecida, e o homem desatou as cordas que seguravam a tampa do alçapão e ajudou a onça a deixar a cova. Logo que esta se encontrou livre, agarrou seu salvador por um braço, dizendo:

- Agora você é meu jantar.

Debalde o homem pediu e rogou. A onça, finalmente, decidiu:

- Vamos combinar uma coisa. Ouvirei a sentença de três animais. Se a maioria for favorável ao meu desejo, eu o como.

O homem aceitou e saíram os dois. Encontraram um cavalo, velho, doente, abandonado. A onça narrou o caso. O cavalo disse:

- Quando eu era moço e forte, trabalhei e ajudei o homem a enriquecer. Qual foi o meu pagamento? Largaram-me aqui para morrer, sem um auxílio. O Bem só se paga com o Mal.

Adiante depararam-se com um boi. Consultado, opinou pela razão da onça. Contou sua vida de serviços ao homem e, quando julgava que ia ser recompensado, soube que fora vendido para ser morto e retalhado pelo açougueiro. O Bem só se paga com o Mal.

O homem triste, acompanhava a onça que lambia o beiço, quando viram um macaco. Chamaram o macaco e pediram seu parecer. O macaco começou a rir. E saltava, fazendo caretas e rindo. A onça ia-se zangando:

- Por que tanta risada, camarada macaco?

- Não é fazendo pouco - explicou o macaco -, é que eu não acredito que o homem caísse na armadilha que ele mesmo preparou.

- Ele não caiu. Quem caiu fui eu - contava a onça.

- Foi você? Então como é que esse homem fraquinho pôde libertar um bicho tão grande e forte como a camarada onça?

A onça, despeitada pelo macaco julgá-la mentirosa, foi até o alçapão e saltou para o fundo do fosso, gritando lá de baixo:

- Está vendo? Foi assim!

Mais que depressa o macaco empurrou o engradado de varas pesadas que fazia de tampa e a onça tornou a ficar prisioneira.

- Camarada onça - sentenciou o macaco -, o Bem só se paga com o Bem. E você fez o Mal, receba o Mal.


Conto de Luís da Câmara Cascudo retirado do livro Contos Tradicionais do Brasil, Coleção Literatura em Minha Casa, Volume 5, Tradição Popular, Global Editora, São Paulo, 2003.

Tachos e Gamelas

Mais que verdade. Um pouco de assunto para a gente ter coragem de escafeder-se por aí por esse Brasil mundão grande afora.

- Senta, Niquinha.

- Num havera eu de sentar?

- E pra quê essa cara de muxoxo?

- Se incomode não.

- O Zeca veio?

- Veio coisa nenhuma aquele safado sem-vergonha metido a besta odiento fingido que eu gosto de doer. 

- E então?

- Ara!

- Num vai me contar?

- Ara, ara!

- Pois num conte, uai. Fica aí sentada. Até a bunda arder. É capaz que chova agorinha.

Tia Natércia foi soprar fogo na cozinha. Niquinha revirou os olhos castanhos tristes fundos para as bandas da Rua Campo Formoso e quis chorar. Era mais que verdade. Pra lá de muito mais.

- Ô Niquinha!

Era a menina Miroca chamando de outro lado da rua. Os cabelos de Miroca voavam. Seu sorriso esquentou o frio de Niquinha.

- Que é, Miroca?

- Vamo catar gabiroba lá no mato do corgo?

Niquinha espichou as pernas no degrau da varanda. Baixou os olhos e viu uma borboleta branca alvinha e pequetita em cima de um copo de leite do jardim.

- Tô com querência pra isso não.

- Deixa de ser boba... Resmungou Miroca amarrando o laço de uma sandália vermelha que lhe soltara do pé.

Niquinha esqueceu-se da borboleta branca e escutou a voz de Tia Natércia cantando na cozinha. Lembrou-se do Zeca. Desembestou a chorar alto sacudindo o corpo todo.

Miroca veio até ela e seus cabelos ainda voavam.

- Êta Niquinha pamonha! Chorando desse jeito por causa de home!

- Cala a boca, Miroca! Cê num sabe o que é amor.

Miroca sentou-se no peitoril da varanda e começou a roer unha.

Niquinha olhou para ela e se arrependeu da malcriação.

- Me desculpa, Miroca. Num liga pro que eu falo não.

- Num ligo não, Niquinha. Só queria te enterter um tiquinho.

- Me enterter?

- A gente bem que podia catar gabiroba...

- Tô sem vontade nenhuma...

- Ia ser bom procê!

- O Zeca num me sai do juízo, aquele desgraçado, aquele diabo, aquele merda.

- Num apareceu mais não?

- Havera de aparecer por um acauso?

- A gente achava que o Zeca tava doidinho por ocê.

- Pois é. Até a tia já tava gostando do jeitão dele...

Niquinha soltou um choro fino comprido que parecia não ter mais fim. Miroca se ajoelhou perto dela e falou com voz de alegria quase:

- E se a gente fosse ver o trem na Estação. Êta que chega cada baita home bonito lá!

Mas Niquinha não se contentou nem um pouco. Levantou-se do degrau da varanda e foi para dentro de casa. Deu com a porta de seu quarto. Entrou. Suspirou uma horinha de frente para o espelho. Caminhou até à cozinha. Tia Natércia cozinhava mandioca no tacho. Na gamela sobre a mesa havia biscoitos de polvilho e uma caneca de café recebia tapinhas do sol que passava por cima da goiabeira bem em frente a porta da cozinha.

- Vamo ou num vamo catar gabiroba?

Gritou ainda Miroca lá da varanda.

Niquinha se lembrou do Zeca mais uma vezinha. Apalpou a barriga. Pensou na coisa bonita que estava dentro dela, coisinha miúda que ia crescer que nem abóbora moranga.

- Quer tomar café? Perguntou Tia Natércia com o rosto quente de fogo da trempe.

Niquinha sentou-se no tamborete:

- Esses biscoitos tão cheirando... Acho que vou deixar a gamela vaziinha de tudo

Tia Natércia riu da fomeagem dela. Depois foi buscar mais uma gamelada de biscoitos de polvilho que já estava fora do forno, aquele quintal de tanta árvore e de tanta fruta, batido pela gostosura do sol, com cheiro de coisa boa e limpa.

A chuva nem tardou.


Conto de Stela Maris Rezende Paiva retirado do livro Dentro das Lamparinas, Horizonte  Editora, Brasília, 1979.

18 novembro 2025

Na Rodoviária

O lugar mais frio do mundo. Debaixo daquelas placas de cimento, todas tão altas, tão grandes, tanto frio nas costas cobertas apenas por uma camisa de algodão, amarelada e respingada de lama. No bancos enfileirados os corpos sentados com as pernas cruzadas, com as pernas esticadas, com as pernas encolhidas. Os rostos que não dizem coisa alguma. Os olhos de todos. Com um brilho sombrio, uma luz sem direção. Nas bocas um riso tosco que mais parece uma careta repetitiva e angustiante.

A camisa não aquece. O vento está levantando a saia daquela moça que passou com um embrulho de pastel na mão. A gordura do pastel está molhando o embrulho. A moça para, sem olhar para ele, para sua camisa que não aquece. A moça abre o embrulho e tira um pastel enorme que deve ter muita carne dentro. Ela como o pastel com vontade, com um sorriso. Com um brilho diferente nos olhos fundos. Depois ela desaparece entre as pernas daqueles homens altos e louros que conversam perto da lanchonete. Mas o pastel ficou. O pastel corre de mão em mão, todos comem um pedacinho. Só ele observa tudo, encostado a uma das pilastras, sentindo esse frio todo, essa tristeza toda, essa fome toda.

- Ei, guri.

Levanta os olhos com preguiça.

- Tá me ouvindo, guri?

Examina o rosto enrugado da mulher, o batom vermelho nos lábios finos, o pó de arroz sobrando nas bochechas murchas.

- Qual é a tua? Num fala não, é?

Acha graça na voz da mulher. Ri do jeito de mexer com os ombros.

- Vai falando, dona.

Ela acende um cigarro com um isqueiro azul. Começa a fumar, os cabelos estão soltos e pegajosos.

- Sabe o que é, guri? É que... Bom, eu tava a fim de...

Sente cheiro de cerveja. Essa mulher deve ter tomado muita cerveja. Os olhos dela são miúdos e piscam muito.

- Eu tava a fim de papear com alguém, sacou?

Agora ele ri bastante, sacudindo os ombros.

- A dona tá querendo me gozar? Nunca me viu mais gordo e tá a fim de papear comigo?

- Você não quer?

Ele para de rir bruscamente. Lembra-se do pastel. Da carne quentinha que devia estar dentro dele.

- Tô a fim de comer um pastel, dona. Tô com uma fome dos diabo!

Cala-se.  Envergonha-se do que acabou de dizer, meio perplexo, meio tonto. A mulher puxa-o pela mão. Leva-o diante da lanchonete e apoia-se no balcão de mármore branco. Compra o pastel para ele. Depois, ao voltar a seu lado, em direção à pilastra, ela passa as mãos enrugadas em suas costas.

- Essa tua camisa num tá com nada, meu guri.

Engole a carne moída com pedacinhos de tomate e folhas de salsa. Mais uma vez olha pra ela, agora achando tudo isso muito esquisito e bom.

- A dona mora aqui mesmo em Brasília?

Ela belisca um pedacinho do pastel.

- Desculpa. Num tô com fome não, é só uma mania que eu tenho. Moro na Cidade Livre. Num barraco de tábua.

- Eu também moro num barraco de tábua, num tenho nenhuma inveja da senhora.

Os dois estão rindo. Rindo sem parar. O pastel acabou. O frio parece que diminuiu um pouco. Uma criança passa correndo, chamando pela mãe que voltou para a escada rolante, deve ter esquecido algum dos pacotes de suas compras.

- A senhora sabia que aqui é a capital da esperança?

A mulher continua rindo, os olhos miúdos são engolidos pelas bochechas murchas. Ele tira o resto da gordura das mãos com uma ponta da camisa. Ergue os olhos e vira o rosto. Vê ao longe, embaçada e triste, a Praça dos Três Poderes.


Conto de Stela Maris Rezende Paiva retirado do livro Dentro das Lamparinas, Horizonte  Editora, Brasília, 1979.

17 novembro 2025

Mitologia e Simbologia de Escorpião

Todos os signos do Zodíaco correspondem a uma lenda mitológica muito bonita que teve sua origem em tempos muito antigos.

Os deuses gregos possuíam todas as fraquezas humanas e, da mesma forma que os deuses, eram sensuais e ambiciosos como os homens, seus pais e mães, eram possessivos e dominadores como os pais e mães humanos.

Existem duas histórias mitológicas correspondentes, por um lado a Escorpião e por outro lado a Marte, que era o regente deste signo na antiguidade.

Existem várias versões lendárias, mas aconteceu mais ou menos assim:

Em uma versão, Netuno apaixonou-se por Euríale, filha do rei Minus e dela teve uma filho que chamou-se Órion.

Órion tinha três características que o distinguiam do resto dos mortais: possuía uma extraordinária habilidade como caçador, era dotado de uma beleza incomum e tinha uma estatura gigantesca.

O gigante Órion era tão grande que as lendas contam que quando caminhava sua cabeça atingia as nuvens.

Órion morreu vítima de uma flecha perdida lançada por Diana em uma competição com seu irmão Apolo.

Visto que Diana era apaixonada por Órion, que não correspondia a seu amor por amar Aurora, muitos afirmam que ela o teria matado intencionalmente por ciúmes.

Seja como for, Órion foi imortalizado entre as estrelas numa das maiores e mais belas constelações existentes, que o brasileiro está acostumado a identificar facilmente graças às "Três Marias", agrupamento de estrelas que forma o "Cinturão de Órion".

Em outra versão, Júpiter e Netuno foram recebidos de forma hospitaleira por um camponês, que os recebeu em sua modesta casa sem saber que eram deuses.

Como paga pela acolhida, os deuses presentearam o lavrador com um bebê, surgido do nada sobre uma pele de ovelha.

Uma das versões da vingança de Diana está relacionada com o escorpião e se passa mais ou menos assim:

Da relação entre Júpiter e Latona, filha de um dos Titãs, nasceu um casal de gêmeos, Diana (a Lua) e seu irmão Apolo (o Sol).

Diana teria nascido uns instantes antes de seu irmão testemunhando as dores sofridas por sua mãe.

Apavorada diante da perspectiva de passar pelo mesmo sofrimento não considerou a felicidade da maternidade que transcende todas as dores e covardemente pediu a Júpiter que lhe desse a graça de permanecer eternamente virgem.

Apesar do voto de castidade, quando adulta Diana se apaixonou algumas vezes, em uma delas foi pelo caçador Órion, mas, castigo do destino, jamais foi correspondida por ele.

Órion já havia sido conquistado por Aurora, que era muito formosa e assim se chamava porque abria as portas do céu para o surgimento do carro do Sol todas as manhãs.

Não sendo correspondida, Diana tomada de ciúmes, inventou uma história complicada em que ela tivera seu véu tocado pelas mãos impuras do caçador e resolveu matá-lo pela audácia.

Incumbiu dessa missão o escorpião, que mordeu Órion e o matou através de dores terríveis.

Mais tarde, Diana teria se arrependido e implorado ao pai que perpetuasse nos céus seu amado e o inseto que realizara sua perfídia.

Órion foi imortalizado em sua constelação. O escorpião na constelação que leva esse nome e o fiel cão de caça de Órion na constelação do Cão Maior.

Devido a essas lendas, atribui-se ao signo de Escorpião a vingatividade, o ciúme e a motivação sexual como impulso determinante de atitudes impensadas.

Evidentemente tais avaliações são excessivamente maniqueístas e muitos outros fatores astrológicos teriam que ser considerados antes de afirmativas desse nível.


Marte

Da união de Júpiter com sua irmã gêmea Juno, nasceu Marte o deus da guerra.

Marte teve como seu mestre na arte marcial Príapo, filho da ninfa Naias.

Como deus da guerra, envolveu-se em inúmeras batalhas, sempre acompanhando Eris (a discórdia), Ênio e Queres (divindades do morticínio e do genocídio) e Ago (divindade do combate).

De seu amor por Vênus, Marte gerou Deimos e Fobos (o terror e o medo), que também o acompanhavam em suas batalhas.

Uma das esposas de Marte era Belona, uma mulher monstruosa que tinha serpentes no lugar dos cabelos e que atrelava e conduzia seu carro de batalha.

Dizem que a deusa Fama seguia sempre o carro de Marte em suas batalhas, e tocando sua trombeta chamava a vitória ou a derrota.

Conta-se também que apenas a vitória atendia aos chamados de Fama quando se tratava de batalhas travadas por Júpiter.

Marte teve outros filhos com Vênus, Eros (o amor) e Anteros (o anti-amor ou o ódio).

Marte era adorado entre os gregos e romanos.

Os gregos lhe consagraram o rochedo vizinho a acrópole de Atenas, também chamado Aeropago.

Os romanos acreditavam ser descendentes diretos de Marte, que teria gerado Rômulo e Remo (os fundadores de Roma) em um relacionamento que teve com Sílvia.

Grandes templos foram erguidos em sua homenagem quando os césares passaram a acreditar serem deuses e merecer a proteção especial de Marte.


Texto retirado do livro Escorpião, de Loreley Somma e Marco Natali, Coleção Astral, Ediouro/Editora Tecnoprint S.A., São Paulo, 1986.

16 novembro 2025

Signo Solar Escorpião

De muitas maneiras, Escorpião é o mais poderoso signo do Zodíaco; pois é regido por Marte e Plutão, sendo também o signo da exaltação de Urano.

Mais do que qualquer outro signo, Escorpião lida com o processo de transformação fundamental em todos os níveis.

Essa transformação pode atingir níveis altos ou baixos dependendo da motivação por trás da mudança.

Os escorpianos possuem grande poder fundamentado na vontade e nos intensos desejos emocionais.

A vida deles é uma constante batalha para conquistar os desejos através do uso criativo da vontade.

Visto que este signo está fortemente relacionado com o princípio do desejo e do direcionamento sexual, há uma tremenda força emocional por trás dos envolvimentos românticos dos escorpianos.

Quando foge ao controle, isso pode levar a possessividade, ciúme e violência.

Nenhum signo tem tanto potencial para o bem e para o mal como escorpião.

Nunca brincam com a vida superficialmente. Onde quer que se envolvam, o fazem pelas consequências mais sérias possíveis.

Algumas vezes o desejo de fazer tudo perfeitamente torna-os incapazes de delegar responsabilidades, por isso é comum se desgastarem em busca da perfeição em todos os detalhes.

Os escorpianos mais desenvolvidos são os defensores mais ardentes da justiça, ainda que seja em face da morte.

Levam a bom-termo todos os assuntos, ainda que a custa de muito esforço e sacrifício.

Apesar de desprezarem a fraqueza neles mesmos e não gostarem de vê-la nos outros, geralmente são generosos e compassivos, desdobrando-se para ajudar aos demais.

Eles esperam, entretanto, que uma vez que a pessoa tenha sido ajudada, seja capaz de manter-se por si mesma.

Nem sempre são diplomáticos, visto que costumam expressar suas ideias e sentimentos com franqueza que, às vezes, pode ferir.

Às vezes, preferem ficar em silêncio do que submeter os outros a suas verdadeiras emoções e opiniões.

São intensamente voltados a investigação da natureza das coisas e descobrir as causas que se ocultam por trás do mundo manifesto.

Consequentemente, muitos deles se envolvem em trabalhos ligados a investigações, pesquisas e investigações ocultas.

Tendem a ser muito discretos sobre os resultados de suas pesquisas.

Quando em luta, não cedem muito facilmente e nem esperam que seus adversários cedam.

Costumam possuir olhos profundos e penetrantes, além de uma aura de misticismo pessoal e magnetismo.

A intuição dos escorpianos costuma ser bem desenvolvida, dando-lhes habilidade para penetrar os pensamentos dos outros e extrair informações secretas deles.

Quando espiritualmente desenvolvidos obtêm imenso poder de sua capacidade de lidar com as forças fundamentais, criativas e regenerativas da natureza.

Suas realizações podem, algumas vezes, parecer miraculosas.

Não são inclinados a temer a morte, pois têm um entendimento místico da natureza cíclica das manifestações.


Texto retirado do livro Escorpião, de Loreley Somma e Marco Natali, Coleção Astral, Ediouro/Editora Tecnoprint S.A., São Paulo, 1986.

Um Esclarecimento

Por que a Astrologia, sendo tão antiga, é tão atual e de tanta utilidade hoje?

A Astrologia, a linguagem dos astros, estuda o Zodíaco e seu conjunto de símbolos há mais de 6.000 anos. Documentos históricos atestam que esse conhecimento milenar acompanhou boa parte das civilizações que povoaram a Terra desde a aurora dos tempos. Há uma série de estudos e livros especializados que trazem, em detalhes, todos esses referenciais.

Sabe-se que sumerianos, caldeus, assírios, judeus, egípcios, os povos do Extremo Oriente, incas, astecas, gregos e romanos já conheciam e interpretavam essa linguagem, a mais antiga de que se tem notícia.

A Astrologia não tem a pretensão de oferecer todas as respostas, nem tenta explicar todos os eventos, mas orgulha-se de reunir um dos maiores acervos de conhecimento de que o homem dispõe para melhorar sua qualidade de vida.

Ela não nega o livre-arbítrio, nem prega o determinismo. O homem é livre para fazer suas escolhas dentro do mundo condicionado em que vive. Sempre pode escolher em qual polaridade prefere viver tentar ou pelo menos procurar decifrar qual a mensagem contida nos fatos da vida.

Entre os vários ramos do conhecimento, a Astrologia conseguiu uma façanha única: mantém-se viva, atuante, e há séculos vem prestando serviços à humanidade. Os ensinamentos astrológicos atravessaram todas as fases históricas com sucesso, porque constituem um verdadeiro "manual de instruções" para uma vida melhor.

Mesmo com toda essa bagagem e tradição, ainda hoje ouve-se a ingênua pergunta: você acredita em Astrologia? A resposta certa é não. A Astrologia não é uma crença nem uma religião, muito menos um dogma, por isso não cabe o verbo "acreditar", e sim o verbo "conhecer". Aqueles que tiveram acesso a ela e puderam verificar a eficácia de seus recursos são unânimes em afirmar: a Astrologia funciona.


UMA RESPOSTA A UMA ETERNA PERGUNTA


Toda vez que um astrólogo encontra um leigo, ouve a solene pergunta: "A Astrologia é uma ciência?"

A resposta conveniente é sim. A Astrologia está alinhada entre as ciências humanas porque é um saber que se encaixa em todos os requisitos do que se considera ciência. Vejamos a definição do Dicionário Aurélio:


"Ciência [Do lat. scientia.] Saber que se adquire pela leitura e meditação; instrução, erudição, sabedoria. Conjunto de conhecimentos socialmente adquiridos ou produzidos, historicamente acumulados, dotados de universalidade e objetividade, que permitem sua transmissão, e estruturados com métodos, teorias e linguagens próprias, que visam compreender e possam orientar a natureza e as atividades humanas."


A Astrologia não pretende ser uma ciência exata, nem se fundamenta em um processo puramente matemático. É um conhecimento acumulado no decorrer dos séculos. Dotada de universalidade e objetividade, é estruturada em métodos, teorias e linguagem própria, e seu objetivo é melhor compreender e, possivelmente, orientar a natureza e as atividades humanas.

A Astrologia é, sobretudo, a arte de "cienciar", ou seja, dar ciência ao homem sobre o seu processo evolutivo durante sua passagem na Terra.

Complementando essa ideia, o astrólogo Antônio Carlos Harres acrescenta:


"As mais modernas concepções da ciência afirmaram que, nos domínios do microuniverso, não há como separar observador e observado, sujeito e objeto. Muito antes dessa descoberta da física quântica, mas de forma análoga, os 'scientes' da antiguidade (os praticantes da ciência, os que conheciam, os que estavam a par, modernamente, os que estão 'por dentro') criaram sistemas simbólicos que expressam sua constatação da indissolúvel união do Homem com a Natureza, do ser com a totalidade, do indivíduo com a sociedade e da humanidade com a Astrologia.

Astrologia é ciência porque analisa, estuda e constrói uma corpo de conhecimento que se revela sempre o mesmo em sua essência e é regido por constantes e leis próprias.

E é 'com-ciência' porque, embora separando, não deixa de incluir; dividindo, não perde de vista o conjunto; analisando, não abandona a síntese, evitando que o estudante atento seja lançado ao ceticismo e à esterilidade psicológica e espiritual a que se condena todo adepto do cientificismo, que se crê capaz de existir ou perceber à revelia do Cosmos."


CONCLUSÃO


Evoluir é o destino do homem, mesmo que ele tenha consciência disso. Nascemos "programados" para uma gradual evolução, não importa quais sejam nossos objetivos pessoais. Mas, se utilizarmos o conhecimento de nossos recursos mentais, já teremos meio caminho andado. E, mais uma vez, a Astrologia participa com outra importante função - fornecer aos homens "ferramentas" que propiciem sua escalada nesse rumo vertical.

A vida não teria nenhum sentido, nenhuma razão lógica para acontecer, se não fosse por esse propósito evolutivo. 

Por último, lembramos que, embora a Astrologia esteja disponível para todos, nem todos têm afinidade com esse tipo de saber. Para o grupo de simpatizantes, fizemos uma transposição e uma adaptação das palavras finais de C. G. Jung, no Prefácio do I Ching - O Livro das Mutações:


"A Astrologia não oferece fatos nem poder, porém, para os amantes do autoconhecimento e da sabedoria - se estes existem -, parece ser o conhecimento indicado. Para alguns, seu espírito parecerá claro como o dia; para outros, sombrio como o crepúsculo; e para outros, ainda obscuro como a noite. Aquele que não o aprecia não precisa usá-la, e aquele que é contra não é obrigado a considerá-la verdadeira. Que a deixem seguir para o mundo em benefício daqueles que sejam capazes de discernir seu significado."


Texto retirado de O Livro dos Signos, de Maria Eugênia de Castro, Luiz Augusto P.A. Figueira e Paula Dornelles Bevilaqua, Saberes Editora, 15ª Edição, São Paulo, 2011.