domingo, 29 de novembro de 2020

Negritude

Trago em meu peito
as marcas do açoite
na pele cor de noite que
o bronze esculturou
tenho no meu sangue
o elã da madrugada
de cada encruzilhada
que Angola me deixou

Sou filha do atabaque
do som dos retirantes
do congo, dos amantes
caçados no Sudão

Da música de Gana
das flautas de Uganda
das festas de Luanda
tambores do Gabão

E desses ancestrais
da Argélia ao Senegal
nasceu meu carnaval
e dele sou herdeira
e mostro com orgulho
ao mundo, à terra inteira
meu ritmo, meu viço
de negra brasileira
negra bras
negra brasi
negra brasilei
negra brasileira

Música de Irinéia Maria e Paulo Cezar Feital que dava título ao então LP Negritude de Zezé Motta lançado em 1979.

Trecho 47 de Arnaldo Antunes

 A chuva derrubou as pontes. A chuva transbordou os rios. A chuva molhou os transeuntes. A chuva encharcou as praças. A chuva enferrujou as máquinas. A chuva enfureceu as marés. A chuva e seu cheiro de terra. A chuva com sua cabeleira. A chuva esburacou as pedras. A chuva alagou a favela. A chuva de canivetes. A chuva enxugou a sede. A chuva anoiteceu de tarde. A chuva e seu brilho prateado. A chuva de retas paralelas sobre a terra curva. A chuva destroçou os guarda-chuvas. A chuva durou muitos dias. A chuva apagou o incêndio. A chuva caiu. A chuva derramou-se. A chuva murmurou meu nome. A chuva ligou o para-brisa. A chuva acendeu os faróis. A chuva tocou a sirene. A chuva com a sua crina. A chuva encheu a piscina. A chuva com as gotas grossas. A chuva de pingos pretos. A chuva açoitando as plantas. A chuva senhora da lama. A chuva sem pena. A chuva apenas. A chuva empenou os móveis. A chuva amarelou os livros. A chuva corroeu as cercas. A chuva e seu baque seco. A chuva e seu ruído de vidro. A chuva inchou o brejo. A chuva pingou pelo teto. A chuva multiplicando insetos. A chuva sobre os varais. A chuva derrubando raios. A chuva acabou a luz. A chuva molhou os cigarros. A chuva mijou no telhado. A chuva regou o gramado. A chuva arrepiou os poros. A chuva fez muitas poças. A chuva secou ao sol.


Texto de Arnaldo Antunes retirado do livro as coisas, Editora Iluminuras, São Paulo, 2000.

Trecho 41 de Arnaldo Antunes

 O vidro quebra mas não derrete. O plástico derrete mas não quebra. Assim são os óculos. Estrutura plástica para lentes de vidro. O espelho mostra, o vidro deixa ver. Assim são os vidros. O mármore é usado nos túmulos. A madeira polida não solta farpas. As bolhas quando estouram não deixam cacos. O vidro não apodrece, nem na umidade, nem debaixo da terra. Depois de anos enterrados os mortos míopes, sobram apenas os ossos e os óculos. E quando não restarem mais os ossos ainda estarão intactos os óculos. Se o vidro for negro os olhos desaparecem. Assim são os óculos escuros. Mostram mas não deixam ver. O ferro cromado não enferruja. O vidro da janela retém a chuva mas deixa passar as cenas. A água parada espelha como prata. Assim é a água. Se houver luz de um só lado o vidro espelha, como a água parada. A prata depois de anos preteja. Assim é a prata. A pedra quando afunda turva a água. Assim é a pedra.


Texto de Arnaldo Antunes retirado do livro as coisas, Editora Iluminuras, São Paulo, 2000.

Trecho 87 de Arnaldo Antunes

 O inverno é eterno no polo norte. Os dias dilatam no verão. A água gira em sentido anti-horário nos ralos das pias do japão. A patagônia fica ao norte do polo sul. A groelândia fica ao sul do sul do sul da patagônia. O mundo é redondo. Um país ao leste pode estar a oeste se você for pelo caminho mais comprido. Os carrinhos de aeroporto no brasil são empurrados, como os carrinhos de bebê e os de supermercado. Os carrinhos de aeroporto dos estados unidos são puxados. Os chineses e os yanomamis e os tailandeses e os ticuna e os bororo e os vietnamitas têm os olhos puxados. Os relógios da suíça têm um ponteiro maior que o outro, como os outros. As bússolas de marrocos têm um ponteiro, como as outras, só. A terra do fogo é fria. A areia do saara é como a areia da praia, mas fica longe do mar. O mar cerca todos os lugares. O saara fica longe de qualquer lugar. As cidades crescem mas os continentes continuam do mesmo tamanho; crescem na maré baixa e encolhem na maré cheia. A guiana francesa fica longe da frança. A áfrica do sul é na áfrica. O equador fica no meio do mapa. O hawai fica no meio do mar.


Texto de Arnaldo Antunes retirado do livro as coisas, Editora Iluminuras, São Paulo, 2000.

* o autor escreveu todos os nomes próprios com letra minúscula!!

sábado, 28 de novembro de 2020

O Teu Deus Interno

 Periodicamente, o tresvario humano, cansado de desgastar aquele que lhe tomba nas malhas, investe, furioso, contra Deus, em uma forma doentia de afirmar-se na paisagem torpe onde predomina.

Logo após a Revolução Francesa, o cidadão Jacques Duport, entusiasmado com a derrocada da Casa dos Bourbons, pretendeu destronar Deus do Universo, proclamando: - "Natureza e Razão, são esses os meus deuses."

Acompanhado por outros cérebros e vozes apaixonadas, viu a decadência dos seus postulados, à semelhança de Heine, que também O negara antes, morreu "adorando a Deus".

Mais tarde, Nietzsche, colocava nos lábios da sua personagem central, retratando a sua própria aflição: "Acabo de matar Deus, pela Sua desnecessidade no mundo", repetindo a façanha daqueles que se arvoravam a destruí-lO com as armas do materialismo que os decepcionou amargamente.

Mais recentemente, Challemel Lacour, substituto de Renan, na Academia Francesa de Letras, repetiu o estertor dos antepassados, declarando: "Ciência e Razão, eis os meus deuses", acompanhando, logo depois, as conquistas do Conhecimento, que lograva defrontá-lO na raiz das suas descobertas.

E, não há muito, teólogos holandeses inquietos, participando do coral aflitivo das alucinações dos anos sessenta, insistiram: - "Cremos em Jesus, mas não em Deus", constatando, de imediato, a inatingibilidade d'Ele, pelos pesquisadores da Física Nuclear, da Astrofísica, da Astronomia e de outros ramos da Ciência como da Tecnologia, que apenas Lhe vislumbram a existência.

Por mais que o homem fuja de Deus, arranjando substitutivos transitórios, mediante explicações sofistas umas e estapafúrdias outras, Ele ressurge e mantém-se impenetrável na Sua realidade invencível.

Alguns avançados cientistas apresentam equações complexas que parecem dispensar Deus no ato da criação do Universo e falam sobre a Grande Explosão, para elucidar-lhe o aparecimento. E não elucidam os fenômenos precedentes.

Diversos estudiosos denominam-nO como a "Força que agita o elétron" e, penetrando no mundo subatômico, procuram demonstrá-lO como efeito da ignorância cultural daqueles que não estudaram as partículas elementares que se perdem na área de concepções audaciosas.

Há quem O desdenhe, por descobrir as imperfeições que detecta no Cosmo e na Vida.

A todos, porém, Deus sobrevive, e comanda a Sua Obra.

Jesus O chamou, sem qualquer atavio, Pai.

Outros mestres O denominaram "Criador Incriado".

Einstein concluiu pelo "Poder pensante e atuante fora do Universo".

João Evangelista nomeou-O como "Amor".

Chamemo-lO, porém, " Alma da Natureza " ou " Acaso ", " Matemática Transcendente " ou " Força Cósmica Imanente-Transcendente ",  Deus é a Fonte Eterna Geradora de Vida, que nos criou e aguarda por nós.

Interrogando os Guias da Humanidade, a respeito do "que é Deus", aqueles Mentores nobres responderam a Allan Kardec: - "Deus é a Inteligência Suprema do Universo, causa primária de todas as coisas."

Medita sobre a tua pequenez e fragilidade.

Considera a tua mente e os teus sentimentos.

Interroga as tuas aspirações e necessidades.

Questiona a transitoriedade da tua vida física.

Reflexiona quanto à celeridade com que o tempo se esvai no relógio das horas.

Raciocina sobre o amor e busca senti-lo.

Dá-te ao bem, ao próximo e, inevitavelmente, encontrarás Deus dentro de ti, pulsando, amando e conduzindo-te no rumo da plenitude.

Acalma-te e deixa-te por Ele conduzir.


Texto de Divaldo Franco, pelo espírito Joanna de Ângelis, retirado do livro Momentos de Alegria, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014,  4ª Edição.

sábado, 21 de novembro de 2020

Arquitetura da Luz II

Até onde podemos crer sem desconfiar
nos inconfessáveis artifícios da luz?
Arquitetando nossos rostos e cenários
ora graves, ora em expansão como uma maré
de agosto, a todo momento somos vítimas
do entrelaçado jogo dos reflexos que nunca
compactua com a demarcação da realidade.

Enquanto na sombra o que somos
se evidencia mais claramente, nítido
se norteia o rumo das certezas e em nós
nenhum receio de não captar as fronteiras
das revelações. Tudo se mostra e se expõe
numa disposição de linhas inalteráveis
como na pauta a simbologia de uma canção.
Ciranda recifense
e outras canções

Poema de Bartyra Soares retirado do livro "Arquitetura da Luz", Editora Baraúna, Recife, 2004.

Arquitetura da Luz I

Apenas da luz um arabesco e a sombra
já não se nos impõe definitiva.
Erigindo, desarmando, regendo a esperança
sob a planta de nossos pés, a sutil
e ao mesmo tempo ousada dança dos reflexos
leva-nos às mais inesperadas aventuras
ultrapassando percepções e limites.

E nossos passos sempre tão leves
tão descalços, de súbito atrevem-se aos mais
esconsos desfiladeiros. Nossos olhos
outra vez emersos de um sono sem mitos
lançam-se na busca do percurso das estrelas
que caem nos poemas, nas fontes, nas vidraças
impulsionando-nos à renovação dos desejos.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro "Arquitetura da Luz", Editora Baraúna, Recife, 2004.

Tema e Voltas

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?

Poema de Manuel Bandeira retirado do livro "Os Melhores Poemas de Manuel Bandeira", seleção de Francisco de Assis Barbosa, Global Editora, São Paulo, 6ª Edição, 1993.

Tudo Outra Vez

Há tempo (muito tempo) que eu estou longe de casa,
E nessas ilhas cheias de distância
O meu blusão de couro se estragou.
Ouvi dizer num papo da rapaziada
que aquele amigo que embarcou comigo,
cheio de esperança e fé, se mandou.

Sentado à beira do caminho pra pedir carona,
tenho falado à mulher companheira:
- Quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil!
E um cara que transava à noite no "Danúbio Azul"
me disse que faz sol na América do Sul
que nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil.

Minha rede branca! Meu cachorro ligeiro!
Sertão! Olha o Concorde que vem vindo do estrangeiro:
o fim do termo "SAUDADE" como um charme brasileiro
de alguém sozinho a cismar.
Gente de minha rua! Como eu andei distante!
(Quando eu desapareci, ela arranjou um amante
Minha normalista linda! Ainda sou estudante
da vida que eu quero dar.

Música de Belchior lançada no CD "Medo de Avião", também conhecido como "Era uma vez um homem e seu tempo", em 1979.

Amor e Deus

 Mentes irrequietas interpelam os céus solicitando mensagens novas, a fim de se iluminarem no báratro em que se encontram.

Corações insatisfeitos pedem orientações mais claras e substanciosas para superarem as crises em que se demoram.

Pessoas cultas exigem fórmulas mais consentâneas com os enfoques atuais das filosofias contemporâneas, de modo a se deleitarem, afugentando a solidão em que mergulharam.

Tecnocratas e investigadores exigentes requerem conceitos e experiências vigorosas, que lhes não deixem qualquer dúvida a respeito da vida, a fim de poderem equacionar os problemas existenciais em que tombaram, atormentados.

Psicólogos e profissionais outros da área da saúde mental indagam por técnicas e terapias - soluções para os conflitos que infelicitam as criaturas, atingindo-os também - e propõem comportamentos utilitaristas como se o homem fosse apenas a organização celular na qual jornadeia.

Religiosos apresentam-se desanimados, irritadiços, desiludidos, buscando respostas mágicas a fim de prosseguirem...

(...) E a caravana dos tristes, reacionários, violentos, aumenta em toda parte, como se no imenso silêncio da vida nada mais se pudesse fazer pela Humanidade.

Em silêncio, porém, induz as criaturas a um reexame, a uma reavaliação do pensamento e do comportamento, porquanto tudo a que se pode aspirar já ficou delineado no ensinamento de Jesus Cristo, sintetizado no Amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.

O amor é a perene mensagem nova, sempre comentada e pouco vivida, que aguarda oportunidade de alterar, profundamente, a estrutura do ser pensante, fazendo-o feliz.

Todos os Missionários abordaram o amor como a Mensagem Universal, variando a forma de dizer e de viver.

Jesus, no entanto, pairando sobre todos eles, estabeleceu o princípio e o fim da felicidade no amor, entregando-se-lhe totalmente; e, por isso mesmo, tornando-se o Exemplo Maior para todos quantos desejamos a plenitude e a harmonia.

Se desejas uma nova e sábia mensagem para a tua vida, consulta o amor e dá-te a ele, no serviço da Humanidade, seguindo, tranquilo e feliz, sem novas interrogações ou necessidades, porque o amor é Deus revelando-se ao teu e ao coração dos homens.


Texto de Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis retirado do livro Momentos de Alegria, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.

sábado, 14 de novembro de 2020

Marcha

As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.

Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebraram as formas do sono
com a ideia do movimento.
Vamos a passo e de longe;
Entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela forma,
com alguns mortos pelo fluido.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas, 
mais minha dúvida aumenta.

Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo
que tenho, entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho, meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudades;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
Já me dá contentamento.

Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A espera que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento.

Poema de Cecília Meireles retirado do livro Flor de Poemas, Coleção Poiesis, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 7ª Edição, 1983.

O Brinco

 - Alô?

- Russo, deixa eu falar com a Moira.

- O quê?!

- Eu sei que ela está aí. Passa o telefone pra ela.

- Maurão, você enlouqueceu? O que a Moira ia estar fazendo aqui a esta hora?

- Eu só quero falar com ela, Russo. Não vou brigar, não vou fazer cena...

- Mas o que é isso? Você sabe que horas são?

- Desculpe se interrompi qualquer coisa, mas eu preciso falar com a Moira.

- Maurão. Escuta. São três horas da manhã, eu estou dormindo, não tem ninguém aqui comigo e muito menos a... Ó Maurão! O que você pensa que eu sou? Você e a Moira são meus melhores amigos!

- A Moira não é só amiga, não é, Russo? Eu sei. Você e ela...

- Mas que loucura! Maurão...

- Deixa eu falar com ela!

- Quer saber de uma coisa? Vai à... Se a Moira não está em casa eu não tenho nada a ver com isso. Aqui ela não está.

- Você não sabia, mas eu vi você comprando o brinco no calçadão.

- Que brinco?

- Eu vi! E no dia seguinte o brinco apareceu na orelha da Moira.

- E ela disse que eu dei pra ela?

- Ela não disse nada. Eu vi!

- Maurão...

- Você quer que eu faça uma cena? Então está bem. Estou indo praí agora mesmo. Vamos fazer a cena completa, Russo. Marido traído, revolver na mão, tudo. Te prepara!

Maurão desliga. Russo fica por um momento pensativo. Roberto, deitado ao seu lado, não diz nada. Finalmente, Russo fala. Não há rancor em sua voz, só decepção.

- Você e a Moira, é, Roberto?

- Por que eu e a Moira?

- O brinco que eu comprei pra você apareceu na orelha dela.

- Deve ser um parecido.

- Por favor, Roberto. Tudo menos mentira.

- Está bem, eu dei o brinco, Russo. Mas não para a Moira. Pra Lise.

- Pra Lise?!

- É, pra Lise, minha mulher. Juro.

- E a Lise deu pra Moira.

- Será?

- Você sabe onde a Lise está agora, Roberto?

- Deve estar em casa, por quê?

- Porque a Moira não está em casa.

- Você acha que a Lise e a Moira...

- É melhor você ir embora, Roberto. Estou esperando alguém.

- Quem?

- O Maurão vem me matar.

- Eu fico.

- Você vai.

- Está bem.

Roberto levanta da cama, se veste e começa a sair.

- Roberto...

- Ahn?

- Você não gostou do brinco?


Crônica de Luis Fernando Veríssimo retirada do livro Comédias da Vida Privada - 101 Crônicas Escolhidas, L&PM Editores, Porto Alegre, 14ª Edição, 1995.

Fabulosos

 A Mula Sem Cabeça teve uma ideia: convocar todos os personagens folclóricos a uma reunião para reivindicar o reconhecimento como cidadãos brasileiros de verdade.

- Somos tratados como se fôssemos meros produtos da imaginação de escritores, quando na verdade nós aqui estamos mais vivos do que nunca - dizia ela indignada a uma plateia lotada de celebridades literárias.

O Saci-Pererê foi um dos primeiros a reclamar:

- Prometeram institucionalizar um dia só meu e até hoje estou a ver navios. E eu aqui me equilibrando há séculos numa só perninha, meu gorro vermelho já furado e meu cachimbo há muito apagado. Exijo meu dia já!

Quem ocupou o microfone em seguida foi o Boitatá:

- A nova geração ao ouvir meu nome pensa que sou boi, quando na verdade sou uma cobra de fogo. Eu me chamo assim porque na língua tupi-guarani cobra se diz "mboi". Exijo reparação urgente.

Chega então a vez do Curupira:

- Vocês podem imaginar o quanto me custa manter pintados meus cabelos vermelhos, meus dentes verdes e andar com os pés virados pra trás despistando quem em persegue para só se referirem a mim como um mero anão? Exijo reconhecimento.

Tomou a palavra o Boto:

- Há séculos minha fama é a de sedutor de mulheres, eu que nem gosto muito de intimidades com os humanos, que vivo nos rios sem perturbar ninguém. Exijo minha reputação de volta.

Mais que depressa, a Cuca pega o microfone:

- Pior sou eu, que me chamam de mocreia, dizendo que pareço um jacaré e espalham que assusto crianças quando na verdade só as faço dormir. Exijo justiça.

E assim foi que um a um tomou a palavra expondo seu problema de forma que todos concordassem e aplaudissem. Os personagens não estavam brincando, queriam partir para a greve geral até que fossem atendidas suas demandas, caso contrário permaneceriam irredutíveis e cortariam a inspiração de escritores do populário cultural. Ou seriam cidadãos brasileiros com direitos trabalhistas iguais ou desapareceriam de vez dos livros. Organizaram um abaixo-assinado e mandaram para a Academia Brasileira de Letras.

Pouco depois, receberam a resposta oficial:

"Viemos informar por meio desta que não poderemos atender vossas postulações. Realizamos uma grande pesquisa em várias escolas e sentimos muito ao dizer que vocês foram excluídos da preferência literária dos alunos, sendo substituídos por super-heróis estrangeiros. Atenciosamente..."

Crônica de Rita Lee retirada do livro Dropz, Globo Livros, São Paulo, 1ª Edição, 2017.

Guias Espirituais

 Nunca se cansam de inspirar e socorrer.

Jamais abandonam os seus pupilos ou desistem da ação de beneficência ao lado deles.

Sempre se utilizam das menores ensanchas para incutir as ideias felizes e o bem operante.

Vigilantes, são o apoio no desfalecimento, a coragem no receio e a força no momento do desânimo.

Não estimulam à insensatez, nem emulam à vaidade ou ao orgulho venenoso.

Discretos, passam, às vezes, despercebidos, porém, estão sempre presentes.

Generosos, não descuram a disciplina ou a energia.

Gentis, invectivam contra o erro, admoestando com carinho, todavia, com decisão.

Caridosos, perseveram até a exaustão que não atingem, porque se renovam no amor de Deus, que nunca lhes falta.

Assumem o compromisso de apoiar, antes que se inicie a experiência carnal do tutelado, e não o encerram, nem sequer quando se rompem os liames corporais.

Alteram as técnicas de socorro, conforme a ocasião e as necessidades.

Repetem o discurso de amor e de proteção mil vezes, apresentando entonação nova e cordial.

Não se exasperam, tampouco mantêm-se em conivência.

(...) São os Guias Espirituais da criatura humana.

Ninguém, na Terra, que se encontre sem a proteção deles em nome de Deus.

São anjos guardiães, operosos e nobres, que intercedem, respaldam e guardam os homens, protegendo-os das imperfeições que lhes afeiam o caráter e para cuja purificação retornaram à reencarnação.

Haja o que houver, mesmo que repelidos e maltratados, não desprezam os protegidos rebeldes, que mais amam, propiciando-lhes, em diversas ocasiões, o benefício do sofrimento que os desperta para as realidades maiores.

Sabendo que a dor é o método mais eficaz além do amor, propiciam-na, confiando que o buril lapidador realizará o milagre de limar as arestas e liberar a gema preciosa, que é o Espírito adormecido na ganga da ignorância e da perversidade.

Se pretendes alcançar as estrelas, voar livre na amplidão, sonhar e viver o amor sem limite, faze silêncio interior e ouvirás os teus abnegados Guias Espirituais, que vêm aguardando a tua decisão de felicidade, desde há muito, e estão prontos a distender-te as mãos angélicas e salvadoras.


Texto retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

domingo, 8 de novembro de 2020

Visitante Noturno

 O inseto apareceu sobre a mesa como todos os insetos: sem fazer anunciar. E sem que se atinasse por que motivo escolhera aquele pouso. Não parecia bicho da noite, desses que não podem ver lâmpada acesa, e logo se aproximam, fascinados. Era uma coisinha insignificante, encolhida sobre o papel e ali disposta, aparentemente, a passar o resto de sua vida mínima, sem explicação, sem sentido para ninguém.

Ninguém? O homem, que tem o hábito de ficar altas horas entre papéis e livros, sentiu-lhe a presença e pensou imediatamente em esmagar o intruso. Chegou a mover a mão. Não o mataria com os dedos, mas com outra folha de papel.

Deteve-se. Não seria humano liquidar aquele bichinho só porque estava em lugar indevido, sem fazer mal nenhum. Inseto nocivo? Talvez. Mas sua ignorância em entomologia não lhe dava chance de decidir entre a segurança e a injustiça. E na dúvida, era melhor deixar viver aquilo, que nem nome tinha para ele. Com que direito aplicaria pena de morte a um desconhecido infinitamente desprovido de meios sequer para reagir, quanto mais para explicar-se?

O inseto parecia pouco ligar para ele, juiz autonomeado e algoz em perspectiva. Dormia ou modorrava sobre a mesa literária, indiferente, simplesmente. Chegara por acaso, sumiria daí a pouco; deixá-lo viver a seu modo, que era um viver anônimo, desligado de inquietações humanas, invariável dentro da natureza: curto e pobre.

Uma ternura imprevista brotou no homem pelo animálculo que momentos antes pensara destruir. Como se alguém viesse de longe para vê-lo, fazer-lhe companhia, em sua noite de trabalho. Não conversava, não incomodava, era uma questão apenas de estar à sua frente, imóvel, em secreta comunhão. Ele fora o escolhido de um inseto, que poderia ter voado para outro apartamento, onde houvesse outra vigília de escrevedor de coisas, mas aquela fora a casa de sua preferência.

A menos que o acaso determinasse aquele encontro. Era possível. O mesmo inseto voara a esmo. O homem quis aferrar-se a esta hipótese, bem plausível. Já se envergonhava de ter envolvido o estranho numa aura de sensibilidade, e talvez voltasse ao impulso inicial de eliminação. A essa altura, espantou-se com a  mobilidade de suas reações. Passava de verdugo a sentimentalão, depois a observador cético e crítico, finalmente perdia-se na confusão das várias atitudes que podemos assumir diante de um inseto instalado na mesa de um escritório, a uma hora que ainda não é madrugada mas já é noite alta e de sono profundo.

Aquietou-se, afinal, na contemplação do "bicho da terra tão pequeno". Era alguma coisa parecida com um botão marrom rombudo, que tivesse olhos e um projeto de asas - o suficiente para deslocar-se no espaço em aventuras breves. E não era uma aventura simples: a altura do edifício exigia esforço grande para chegar da árvore até o décimo primeiro andar. Entretanto, o botão vivo a fizera, e ali estava, tranquilo ou cansado, à mercê do gigante indeciso, que procurava entender, não propriamente sua presença, mas a turbação que essa presença despertava no gigante.

O homem não pensou em recorrer às enciclopédias para identificar o visitante. Ainda que chegasse a identificá-lo como espécie, não avançaria muito no conhecimento do indivíduo, que era único por ser entre todos o que o visitava. E na multidão de insetos, imagináveis e inimagináveis, só lhe interessava aquele, companheiro noturno vindo de não se sabe onde, a caminho de ignorado rumo.

Já não escrevia. Olhava. Mirava. Sentia-se também olhado e mirado, quando o inseto fez ligeiro movimento que o colocou diretamente sob o foco de luz. Seria exagero encontrar expressão naqueles dois pontinhos negros e reluzentes, mas o fato é que deles parecia vir para os olhos do homem um sinal de atenção ou curiosidade. E os dois, homem e inseto, assim ficaram longo tempo, na muda inspeção, ou conversa, que não se conduzia a nada.

A nada? Muitas conversas entre homens também não levam a resultado algum, mas há sempre a esperança de um entendimento que pode vir das palavras ou de uma troca desprevenida de olhares. E o olhar pode penetrar mais fundo que as palavras. O homem sabia disto. Mas aí, notou que, sabendo falar alguma coisa, não era perito em ver diretamente o real. A figura do inseto dizia-lhe pouco. Dos dois, talvez fosse ele, homem, o que menos habilitado se achava para uma forma de comunicação, aquém - ou além - dos códigos tradicionais.

Distraiu-se avaliando essas limitações e, ao voltar à observação do visitante, este havia desaparecido, decepcionado talvez com a incomunicabilidade dos gigantes. Não é todas as noites que um inseto nos visita. E, se consegue insinuar-nos alguma coisa, esta nunca jamais foi captada para os homens que merecem crédito; só os ficcionistas é que costumam registrá-la, mas quem leva a sério ficcionistas?


Crônica de Carlos Drummond de Andrade retirada do livro Boca de Luar, Editora Record, Rio de Janeiro, 1984.

sábado, 7 de novembro de 2020

Lamentações

 Aglutinam-se na massa humana as pessoas desesperadas.

Uma vaga de aflição paira ameaçadora no mundo, carregando os inquietos que perderam a direção de si mesmos, vitimados pelas circunstâncias dolorosas do momento

A insânia conduz expressivo número de criaturas que estertoram ao sabor do sofrimento, buscando fugir da realidade dos problemas, com a aparência voluptuosa de triunfadores nos patamares dos prazeres alucinantes.

A desordem campeia, e ameaças desumanas transformam-se em torpe conduta nos países do mundo, destroçados por guerras impiedosas em nome de religiões fanatizadoras, de raças asselvajadas, de interesses mesquinhos...

Os governantes da Terra perdem as rédeas da administração e negociam com organizações criminosas, estabelecendo colegiados políticos abomináveis.

A corrupção adquire cidadania, e a imoralidade desfruta de status, perturbando os valores éticos e morais.

Nuvens borrascosas avolumam-se nos céus já escurecidos da humanidade.

Tudo anuncia a chegada dos dias apocalípticos, convocando à razão, à renovação dos códigos, à interiorização espiritual.

Como consequência do período grave de transição, surgem o pessimismo, a desconfiança, as lamentações. De tal forma se vão arraigando no organismo individual e social, que os temas de conversações perdem os conteúdos ou se apresentam desconcertantes, caracterizados pelas sombras do desconforto, da mágoa, dos irrefreáveis desejos de vingança.

A lamentação grassa e perturba as mentes, impedindo a ação correta do bem, como se não adiantasse produzir com elevação, laborar com honradez.

Lamentar não é atitude saudável. Pelo contrário, produz deterioração dos conteúdos bons que ainda remanescem em muitas vidas e movimentam-nas, sustentando os ideais de engrandecimento humano.

A lamentação, qual ocorre com a queixa sistemática, é morbo portador de destruição, de desalento e morte.

Antídoto aos males que infestam os dias atuais, é ainda o amor a força única portadora de recursos salvadores.

Este é um ciclo que se encerra, dando início a outro, que se irradiará plenificador.

Os períodos de renovação fazem-se preceder por inumeráveis acontecimentos devastadores, nos mais diversos aspectos da natureza. O mesmo ocorre na área moral da humanidade.

Assim, não te desalentes, nem duvides do triunfo do bem. Não fiques, porém, inativo, aguardando que forças externas operem miraculosamente sem a tua contribuição.

És importante no contexto atual, em face do que penses e como ajas.

Produze, portanto, com esforço bem direcionado, oferecendo o teu contributo valioso, por menos expressivo que pareça.

Não cedas o passo aos aventureiros da desordem.

Permanece no teu lugar, realizando o que podes, deves e te cabe fazer.

Muita falta fazem Jesus e Sua doutrina no mundo.

Fala-se sobre Ele, discute-se-Lhe a mensagem, mas não se vive o ensinamento que dela deflui.

Sê tu quem confia e faz o melhor.

Se cada cristão decidido resolvesse por viver Jesus, a paisagem atual se modificaria, e refloresceria a primavera no planeta em convulsão.

Assim sendo, ama e contribui em favor do progresso, sem lamentação de qualquer natureza, em paz e confiança.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores, Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2015, 2ª Edição.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Elos Vivos

 Mãos abrasadas pela ansiedade ou pelas chamas itinerantes da tarde? Mãos de fogo consumindo-se de solidão. Por entre elas escorriam lancinantes alguns elos da corrente definindo Gustavo no que ele era, no seu próprio ser.

Deitado sob a árvore no canto mais recuado do quintal, a cabeça esmagando antigas notícias de uma revista, ele não vislumbrava horizontes, só sentia a vida que lhe doía. Não tinha esperança e o verde dos seus olhos diluía-se compreendendo tudo.

Os dedos passavam e repassavam os elos como quem desfia um terço áspero e incolor numa exploração exaustiva, revelando-se em gestos inconclusos, incendiados, indagativos: por quê? por quê?

Brigara com Aniette, a mulher, e não fora como de costume para o desabrigo das ruas onde os seus passos rangiam nas calçadas, enquanto ele repetia um estribilho de raiva e exasperação:

- Não volto mais para casa, não volto mais, não volto...

E quando os pés reclamavam repouso, entregava-se à mesa de um bar, terminando sempre refletido num copo vazio, em mais um sonho destroçado. Era quando os ventos da madrugada reconduziam-no para casa, somente eles impulsionavam os seus passos no itinerário da volta.

Naquele dia, também, não buscara refúgio na biblioteca como às vezes fazia, dissolvendo-se em letras que refeitas em palavras iam povoar as páginas dos livros por ele mal tocados. E havia aquele romance inacabado no qual sempre existiam fatos a acrescentar e a diminuir. Era ele o protagonista de uma história que era a sua e, ao mesmo tempo, não era. Pertencia ao mar que se despejava sem tréguas nas conchas das suas mãos? Ou o cachorro ladrando cheio de cismas no fundo do seu peito? Não podia buscar definições. Não lhe matava a sede aquelas águas azuis.

Um elo de silêncio chegou aos seus dedos hirtos. Tão intenso, tão palpável, que ele poderia desenhar usando a trajetória dos pensamentos, seguindo as pegadas das lembranças. Os seus dedos foram-se amaciando numa imponderabilidade de nuvem atravessando o verão. Era a vida que fluía calada. Gustavo escutava os intervalos das batidas do seu coração.

Onde e quando encontrara um silêncio daquele? Só quando ainda menino flagrara a entrega velada de uma flor ao primeiro pássaro da manhã. Naquela hora ele se fizera gesto e colhera para si a plenitude mágica daquele instante.

E como um barco preso à correnteza de um rio que fluísse em sentido contrário, da foz à cabeceira, ele continuou desaguando na infância.

Reviu a fruta aberta no chão amortalhado de folhas e deteve-se curioso diante daquela intimidade subitamente revelada, embora guardado permanecesse o mistério da vida. A sua baleeira nunca permitia aos canários o direito ao pouso. Chorou a sua solidão nos quartos escuros nos dias de febre ou trovoadas. Redescobriu moças regando flores nos jardins pejados de manhãs.

Outros elos desceram-lhe pelas mãos que ainda há pouco estiveram revestidas de saudade. Precisava fazer um acréscimo no romance: havia um vento desembestado descendo uma ladeira esquecida, um sol rubro de medo, uma borboleta de asas partidas.

Eram elos contorcendo-se na sua flexibilidade plástica. Devia ser mais tolerante com Aniette - dizia-lhe outro elo numa dureza de ferro.

Entre ele e Aniette adensava-se um rio de águas turvas rolando encachoeirado para um tempo que se desfazia no nada. Ela a reclamar dos seus mutismos prolongados, a queixar-se dos seus desleixos, da sua falta de iniciativa para resolver os problemas, a pedir a sua palavra quando ele preferia tê-la guardada no poço da garganta.

Ele a exigir o filho que ela não podia ter. Um filho é um caminho que continua e ele estava ali, os pés retidos numa viela. Outra vez veio o silêncio apaziguando tudo numa maciez de elo de algodão.

A tarde de há muito desmanchava-se na noite. Agora eram sombras que passeavam pelas suas mãos. Algumas cochilavam sorrateiras nos seus cabelos em desalinho. Elos de vidro retratavam-lhe o rosto, ora contrafeito, ora desanuviado. Era ele escorrendo-se em si - rio de comportas abertas resvalando pelo leito do tempo.

Um débil traço de luz alcançou-o por entre a folhagem da árvore. Certamente aquilo era arte da lua. Procurou-a. Lá estava: contida, frágil, minguante - um elo de fogo agônico aninhando-se no verde baço de seus olhos.

- Gustavo, vem jantar. Fiz uma sopa daquelas que você gosta. A voz de Aniette, ali diante dele, chegou-lhe mansa numa clara atitude de quem busca a reconciliação.

Ergueu-se aturdido. A lua saltou dos seus olhos indo abrigar-se no regaço de uma nuvem que a acolheu silente.

- Você me desculpa? - De muito longe veio a sua voz.

Aos seus pés caiu a corrente desfazendo-se em elos isolados rolando sem barulho pela inércia da terra seca.

- Ora...

Num impulso de ternura, Aniette estendeu a mão tentando segurar a dele. Só encontrou o vazio.


Conto de Bartyra Soares retirado do livro Silêncio das Velas Vivas, Editora Novo Horizonte, Recife, 2008.

A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!

Poema de Paulo Leminski retirado do livro Caminho da Poesia, Volume 1, Global Editora, Coleção Literatura em minha casa, 1ª Edição, São Paulo, 2003.

O Gato

No alto do muro
pulando no escuro
miando no mato
entrando em apuro
é o gato, seguro.

De antigo passado
e jeito futuro
movimento puro
ar sofisticado
é o gato, de fato

Só pode ser gato
esse bicho exato
acrobata nato
que só cai de quatro

Poesia de Marina Colasanti retirada do livro Caminho da Poesia, Volume 1, Coleção Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 1ª Edição, 2003.

domingo, 1 de novembro de 2020

A Raposa e o Gato

 Um dia, o gato encontrou a raposa no bosque e disse para si mesmo: vou cumprimentá-la. Ela é tão inteligente, tão experiente, tão respeitada por todo mundo...

E fez uma saudação amigável:

- Bom dia, querida Dona Raposa! Como tem passado? Como tem levado a vida, agora que as coisas andam tão caras?

A raposa ficou inchada de orgulho. Olhou o gato de alto a baixo e levou algum tempo para resolver se respondia ou não. Finalmente disse:

- Dobre a língua, seu patife lambedor de bigodes, seu palhaço de meia-tigela, seu pilantra caçador de ratos, você não se enxerga? Quem você pensa que é? Como ousa me perguntar como eu tenho passado? Quem é você? Que é que você sabe? O que aprendeu? Que artes domina?

- Só uma - respondeu o gato modestamente.

- E qual é, se mal pergunto?

- Quando os cachorros correm atrás de mim, consigo escapar, subindo numa árvore.

- Só isso? - disse a raposa. - Pois eu sou senhora de mil artes e além disso tenho um monte de truques que dariam para encher um baú... Fico de coração apertado só de pensar como você é indefeso. Venha comigo, vou lhe ensinar a escapar dos cachorros.

Justamente nesse momento, apareceu um caçador com quatro cachorros. O gato deu um pulo rápido para o tronco de uma árvore e foi lá para cima, para o meio da copa, onde as folhas e os galhos o esconderam por completo.

- Abra o baú, Dona Raposa, abra o baú! - gritava o gato.

Mas não adiantou nada. Os cachorros já tinham agarrado a raposa, que estava bem presa e imóvel nas patas deles.

- Que pena, Dona Raposa! - disse o gato. - Veja a encrenca em que a senhora está, com todas as suas mil artes. Se pelo menos soubesse subir em árvores, como eu, salvava sua vida...


Texto dos Irmãos Grimm (Jakob& Wilhelm) retirado do livro Contos de Grimm: animais encantados - Clássico Universal; Editora Nova Fronteira, Volume 4, Coleção Literatura em Minha Casa, Rio de Janeiro, 2ª Edição, 2002.