sábado, 31 de outubro de 2020

Espelho

 Quando uma casa desmorona por velhice mais abandono, parece que alguma coisa da essência das pessoas que viveram nela e foram felizes - pelo menos por algum tempo ou alternadamente, já que ninguém é feliz sempre - fica pairando sobre os escombros e sobre utensílios abandonados ou esquecidos pela última família que morou nela; tanto que o poeta Pessoa escreveu num poema: "O que eu sou hoje é terem vendido a casa \ e terem morrido todos \ Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez." Aquela casa deve ter sido vendida várias vezes, depois envelheceu e por fim caiu.

O entulho ficou lá enfeando a rua e servindo de abrigo a mendigos e outros desses que têm a mania de pensar que são rebeldes, contestadores, não querem trato com o que chamam de sistema, mas não levam esse pensamento às últimas consequências: não abrem mão de um bom churrasco de gato nem do ato mais visceral de descarregar seus detritos quando se sentem pesados por dentro. Em todo caso, uma vez aliviados lembram-se de que fizeram uma concessão aos costumes e pensam que se redimem deixando de se limpar. Cada qual com a sua filosofia, como disse o general de granadeiros Contumácio Coribantes, vencedor da Batalha de Filigranas, que, como se sabe, mudou o rumo da história dos países do lado de baixo do Equador.

Então o entulho do desabamento ficou lá poluindo a rua e atraindo moscas, lagartixas, ratos, baratas e outros entes obnóxios, até que saqueadores tomaram conhecimento e começaram seu trabalho sistemático de extrair e carregar tudo em que vissem algum valor. Durante dias, talvez semanas, caminhões, kombis e até burros-sem-rabo, que ainda existem para quem sabe onde achá-los, transportaram ladrilhos, azulejos, grades, pias, torneiras, painéis de vidraças milagrosamente inteiros, portas, portais, caixilhos e esquadrias de janelas, fechaduras antigas ainda perfeitas, algumas sem as chaves; dois ou três armários enormes de madeira maciça para guardar louça ou roupa de cama e mesa e que os últimos moradores não quiseram carregar, certamente devido ao tamanho e ao peso. Esses foram desmontados a duras penas e transportados em um caminhão novo com placa de Vassouras, RJ, que alguém anotou por curiosidade.

Havia também um guarda-roupa, esse não tão antigo nem de boa madeira, tanto que não resistiu ao esboroo da casa, ficou todo quebrado e desconjuntado e não interessou a nenhum dos primeiros predadores. Mas quando chegou o segundo escalão, o chamado pente-fino, formado pelos que se contentam com sobras e rebotalhos, alguém deu uma olhada no guarda-roupa arrebentado, talvez esperando ou desejando que em alguma das muitas gavetas, quem sabe, tivesse ficado algum objeto de valor, ou mesmo dinheiro, é impressionante o que existe de gente distraída no mundo, e muitas vezes o prejuízo de um distraído acaba sendo o lucro de um porfioso.

Dada a vista nas gavetas, quase todas ocadas por cupins, e nada encontrando, a pessoa notou que uma porta estava inteira e sã e poderia ser aproveitada, há sempre colocação para uma boa peça de madeira já curtida pelo tempo e vacinada contra cupins, poderia servir para tampo de mesa, para um banco, para prateleiras de estante, era só esperar o encontro dela com quem a estivesse procurando, se esses encontros nunca acontecessem não haveria necessidade de belchiores, que sempre existiram e sempre existirão.

Depois de muito esforço, solavancos e engenho porque o puxador, também de madeira, estava quebrado e não dava pega, o pente-fino conseguiu abrir a porta - e teve nova surpresa. Do lado de dentro havia um espelho biselado de metro e meio de altura e sessenta e cinco centímetros de largura em perfeitíssimo estado, só que por cima da grossa camada de poeira podia se escrever nele com um dedo uma frase completa, como "Todo governo e delinquente".

Razoável conhecedor de coisas antigas, o vasculhador de ruínas imaginou ou percebeu que o espelho tinha sido reaproveitado naquele armário: a moldura era diferente da madeira da porta, indicando que o espelho devia ter estado numa parede, talvez num salão, acima de um bufê ou de um sofá; ou num quarto de vestir; ou em uma loja de roupa ou calçado. E era importado, provavelmente da França, cujos artesãos inventaram esse tipo de corte chanfrado para evitar arestas nas margens de placas de vidro ou de madeira.

Mas - e o aço? Estaria ainda bom depois de tanta vivência e de tantos sacolejos?

Como saber, com tanta poeira encrostada em cima? Olhou em volta, viu umas folhas de jornal jogadas nas ruínas pelo vento. Pegou duas folhas, fez uma pelota, experimentou. A seco não adiantava, apenas espalhava a poeira. Só molhando o papel, mas onde achar água? O homem tinha expediente, não ia empacar por tão pouco. Procurou um lugar protegido da vista de quem passasse na rua e urinou na pelota de jornal. Com o papel molhado limpou duas pequenas áreas do espelho e por elas deduziu que o aço devia estar bom de ponta a ponta.

Satisfeito com o achado, nosso homem tornou a fechar a porta do armário, esperando encontrá-lo intacto quando voltasse com uma kombi de aluguel para levar o espelho; se ninguém o vira antes, certamente ninguém ia vê-lo naquele dia. Mas antes era preciso agradecer ao santo fumando um bom charuto ali mesmo, com calma; para quê pressa, se o dia estava ganho? Depois de limpado e exposto no belchior, o espelho não demoraria a encontrar comprador.

Não errou na previsão. Logo no primeiro dia um decorador se interessou, indagou o preço. Achou caro, fez uma contraproposta. Experiente, o belchior não quis vender ao primeiro interessado, mas anotou nome e telefone. Horas depois entrou um casal jovem procurando uma mesa de jantar extensível. Não gostaram das únicas duas que havia, ambas precisando de conserto, o que encareceria o preço final. Quando saíam, viram o espelho. Ouviram o preço, confabularam em voz baixa, compraram sem regatear.

Depois de muito debate e experimentação concluíram juntos que o espelho ficaria bem na sala de visitas, instalado horizontalmente atrás do sofá de três lugares. Oposto a ele, separando a sala de visitas da de jantar, ficava uma marquesa de jacarandá trabalhado, também comprada em belchior e restaurada por empalhador recomendado pelo próprio vendedor. De cada lado do sofá havia uma poltrona Luís XV estofada de veludo caramelo pelo artista Mário Cotas, mas para isso tiveram que esperar seis meses, a lista de encomendas dele era enorme. Valeu a espera. A sala ficou coisa de revista, diziam os amigos.

E o casal ficou feliz com a sala. Quando saíam para algum compromisso social, sentiam-se como exilados e arranjavam pretextos para se retirar mais cedo e voltar depressa para a sala acolhedora. Logo perceberam que a alma do ambiente era o espelho, tudo mais eram acessórios que sozinhos não encheriam os olhos de ninguém. Sem o espelho ficaria sala plebeia, com móveis de sentar, tapetes, alguns quadros indiferentes, riquefifes vários - igual a um sem-número de outras.

Por causa do espelho, e parece que sem perceber, o casal ficou passando a maior parte do tempo na sala, e às vezes até dormiam nela, um no sofá, outro na marquesa. Por que faziam isso? Se perguntados, possivelmente não saberiam o que responder. Sentiam-se felizes na sala, seria a resposta singela. Mas não precisavam dar essa explicação a ninguém, primeiro porque eram sozinhos, e a senhora que cuidava da casa e da cozinha dormia fora; segundo, porque achavam aquilo natural, e o que é natural carece de explicação. Quanto mais olhavam para o espelho e viam a sala e eles mesmos refletidos no vidro impecável, mas quase etéreo, mais gostavam dele; e já estavam achando que o encontro deles com o espelho, ou o contrário - o que talvez não fosse a mesma coisa, pensando bem -, podia ser alguma arrumação do destino; e se consideravam escolhidos. Imagine se o espelho tivesse ido para um novo-rico qualquer, um capadócio, um bicheiro, um fala-gritado?

Mas, como disse um cantador, a felicidade é um trono de nuvem, quem se senta nele deve estar prevenido porque se desmancha à toa, basta um ventinho, uma palavra impensada.

Foi o que aconteceu, ao que parece, porque, quando voltaram o filme e o repassaram para ver se entendiam, ficaram achando que a mudança começara numa tarde esplêndida de domingo, o sol iluminando a varanda da frente, crianças brincando, gritando e rindo embaixo na praça, o casal na sala gozando a companhia do espelho. De repente a mulher, serena, alegre, reflexiva, deitada na marquesa, olhando pela porta da varanda e torcendo um chumaço de cabelo com o polegar e o indicador da mão direita, disse em voz calma, mais como se fosse um pensamento que tivesse lhe escapado pela boca:

- Não acha que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho?

O homem, sempre atencioso, deitado no sofá, os pés descalços sobre uma almofada, os joelhos dobrados, lendo o segundo volume do Corpo de Baile de Guimarães Rosa, pousou-o aberto sobre o peito e olhou intrigado para a mulher.

- Como é mesmo, filha?

- Eu disse alguma coisa? - indagou a mulher, olhando-o também intrigada.

- Disse que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho. Aliás, não disse; perguntou se eu não achava.

- Foi, é? Ora essa! - Voltou a torcer a mecha de cabelo por um instante, calada. Bem, se eu disse, então é porque estava pensando.

Ele pegou novamente o livro, mudou de ideia antes de localizar o ponto onde havia parado. Pousou-o de novo no peito. A observação da mulher ficou interessando mais.

- Esse pensamento é novo ou já lhe ocorreu antes? - perguntou.

Como não tinham segredos um para o outro, ela admitiu que dias antes no trabalho, ao ouvir uma colega falar do fim de semana altamente relaxante que passara com o marido e amigos em um hotel-fazenda no Vale do Paraíba, fizera uma comparação e ficara em dúvida se eles dois estariam certos fechando-se tanto em casa e em si mesmos por causa do espelho, como se o mundo lá fora não existisse; e se indagara se isso não acabaria prejudicando-os de alguma maneira.

- Bem, já que o assunto pulou a cerca, é porque chegou a hora. Então não vamos continuar fazendo de conta que ele não existe. Eu também tenho me preocupado com o espelho de uns dias pra cá.

- É mesmo? Como assim? - disse ela, ao mesmo tempo em que passava da posição de semideitada para a de semi-sentada. 

- Um dia, quando você estava na cozinha fazendo café e eu aqui conversando com Emer e Zenaide, os dois sentados no sofá, olhei para eles para dizer qualquer coisa, tive uma sensação esquisita. Emer me perguntara sobre meninos de rua, a matança da Candelária. Quando dei minha opinião, aconteceu. Os que estavam no sofá eram Emer e Zenaide. Os que eu via no espelho, só do ombro para cima, eram outros. Esses aprovavam a matança. Não diziam isso em palavras, as palavras deles eram as de Emer e Zenaide, diziam que tinha sido um horror, uma vergonha, uma desumanidade; mas tudo soava falso. A opinião verdadeira estava nas imagens refletidas. Fiquei horrorizado. Disfarcei, levantei, fui à varanda pretextando ter ouvido qualquer coisa lá fora. Felizmente você apareceu logo com o café.

- Me lembro que quando entrei com a bandeja você vinha da varanda. Só isso.

- Então eles também não devem ter notado. Ainda bem. Mas fiquei transtornado. Naquele instante o espelho mostrou-me a verdadeira alma deles.

Ela olhou demoradamente para o espelho e disse: - Gostaria muito de pensar... pensar não, ter certeza... de que você tivesse imaginado isso.

- Eu também. Mas não dá para fraudar. Foi real.

Não falaram mais no assunto, mas pensaram muito, cada um por si. De tardinha fizeram um lanche na sala de jantar, esforçando-se os dois para não falarem no espelho nem olharem para ele. Depois ligaram a televisão, nada de interessante. Que tal um cinema à noite? Consultaram o jornal, optaram por uma comédia inglesa, "O Garçom Vermelho", de Peter Ustinov. Os ingleses são bons em comédia, e Ustinov melhor ainda, lembra-se de "Vice-Versa"?

O filme é a história de um garçom de Charlotte Stret que encontra a seu lado num banco de metrô uma bolsinha minúscula. Guarda-a no bolso para ver depois se contém algum valor. Quando a abre em casa, vê que tem um diamante do tamanho de ovo de codorna, com nota de venda de uma loja de Amsterdã. O preço, uma fortuna. O filme todo é o desespero do garçom para encontrar um lugar seguro onde esconder o diamante até poder dispor dele sem risco. Não tem experiência em atividades clandestinas e não pode consultar ninguém para não levantar suspeita. Não pode dividir o problema com a mulher porque ela tem coceira na língua. Todo esconderijo que imagina logo lhe parece escancarado. Levanta-se no meio da noite para mudar o diamante de lugar. Pensa engoli-lo para recuperá-lo no dia seguinte, e assim ir fazendo dia após dia, mas na primeira tentativa quase morre engasgado, o raio do diamante bem podia ser um pouco menor.

O homem vive sonolento, cochila no trabalho, o chefe o adverte. Finalmente o pobre garçom conclui que não existe em toda Londres um lugar seguro para quem não tem diamantes esconder um diamante do tamanho de um ovo de codorna. E resolve entregá-lo à polícia.

Em vez de distraí-los, o filme agravou as preocupações inconfessáveis do casal. Na mesma noite retiraram o espelho da parede, o que não foi difícil: bastou retirar com torquês as três escápulas do alto, içar o espelho das três escápulas que o sustentavam embaixo, depois virá-lo de frente para a parede e pousá-lo no chão atrás do sofá.

No dia seguinte telefonaram para o belchior e fecharam negócio pela primeira proposta, como tinham feito quando da compra. Mas continuaram usando espelhos, ele para fazer a barba, ela para se pintar e pentear.


Conto de José J. Veiga retirado do livro As Eternas Coincidências, Crônica & Conto, série Literatura em minha casa, Bertrand Brasil, Volume 2, Rio de Janeiro, 2003.

Meditação e Prece

 O homem comum vive para gozar, usufruir, beneficiar-se no imediatismo da exigência corporal.

O homem espiritual produz para o futuro, transformando as tendências do prazer imediatista em emoções salutares que armazena para os gozos transcendentais.

Desse modo, o primeiro come, dorme e fala muito, negando-se à meditação para crescer e iluminar-se.

O segundo, porque medita, come, dorme, e fala pouco, ponderando sobre os valores existenciais que lhe são de relevante significado para o processo de evolução.

Grande número de pessoas afirma que a meditação não lhe é uma experiência desconhecida.

Acreditam, desse modo, essas pessoas, que, cigarro na mão, olhar fixo num "ponto morto", entregam-se à meditação, quando vinculadas a sentimentos mais grosseiros, apenas estão divagando.

Algumas outras, embriagando-se com os alcoólicos, detém a mente na fixação de ideias perturbadoras e supõem meditar, quando somente fogem, sucumbindo ao peso da razão obnubilada.

A meditação exige disciplina mental, esforço constante e treinamento, mediante os quais exerce comando sobre as ideias desordenadas que desbordam dos arquivos da memória e assaltam a consciência, quando esta se detém a reflexionar.

O homem tem necessidade urgente de meditar para saber agir e entregar-se aos objetivos superiores que a vida lhe destina.

A meditação abre espaço para a convivência com a prece, que lhe é irmã gêmea.

A meditação aclara o raciocínio.

A prece ilumina-o.

A meditação acalma.

A prece dulcifica.

A meditação fortalece.

A prece sustenta.

A meditação liberta.

A prece conduz.

A meditação realiza.

A prece purifica.

A meditação dilata os valores que dormem no ser.

A prece canaliza-os para as realizações edificantes.

A meditação eleva às regiões sublimes de onde procede o Espírito.

A prece imanta-o às matrizes da sua origem e para cujo lar retornará.

A meditação dá vida.

A prece é combustível para a sua sustentação.

A meditação e a prece são instrumentos ao alcance de todos aqueles que empreendem a viagem de conscientização da sua realidade imortal.

Reserva-te o hábito da meditação e apoia-te no recurso da prece.

Antes de tomares decisões, medita, e antes de agires, ora.

A meditação te equacionará todas as dificuldades e a prece te concederá lucidez para a atitude correta.

Jesus, a cada passo, buscava o silêncio da Natureza, durante o Seu ministério, para meditar, logo entregando-Se à prece, de cujo concurso retornava à convivência dos homens, a fim de conduzi-los, sofrê-los e amá-los sem desfalecimento, até o fim.


Texto retirado do livro Momentos de Esperança; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

A Prova do Gato

 O rapaz, moço, solteiro, rico, estava em seu apartamento de Copacabana, deitado no sofá, ouvindo jazz, quando tocaram a campainha; entrou em cavalheiro de 50 anos, muito bem vestido, que lhe apontou um revólver, logo depois de fechada a porta.

- Este revólver está carregado, mas não tenha medo, que estou com os nervos dominados. Porte-se como homem. O senhor é Fulano de Tal?

- Perfeitamente. Qual o problema? Por que esse revólver?

- Vamos com calma. Só quero umas informações.

- Não tenho nada com esse contrabando aí.

- Mas talvez tenha muito com outro tipo de pirataria. O senhor conhece a Conceição?

- Conheço várias.

- Estou falando da Conceição de Tal, morena, 28 anos, desquitada.

- Conheço ligeiramente.

- Diga a verdade, do contrário posso perder a paciência. Só estou aqui para saber a verdade, o resto não me interessa.

- Conheço.

- Muito bem.

- E a mim o senhor conhece?

- Não, nunca o vi mais gordo nem tão armado.

- Deixe de brincadeira: o senhor me conhece ou não?

- De nome.

- E de vista?

- Já o vi umas três vezes.

- Está melhorando. Sabe o senhor que não me casei até hoje com a Conceição por ter mulher e filhos? Mas que tenho com ela há mais de dois anos e três meses uma relação muito séria, muito honrada, muito digna? Sabe?

- Não tinha o prazer.

- Sabe ou não sabe?

- Sei mais ou menos.

- Mas pelo menos sabia da minha ligação?...

- Sabia.

- Preste atenção na resposta: o senhor esteve sábado no Copa com a Conceição?

- Estive. Fomos apresentados dois dias antes e fizemos boa camaradagem.

- O que o senhor chama de boa camaradagem?

- Me simpatizei amigavelmente com ela e a convidei para jantar.

- Só isto?

- Só isto.

- O senhor está mentindo. Minta outra vez, e eu sou capaz de perder a calma. Só isto?! O senhor depois não saiu de automóvel com ela?

- Bem, meu amigo, vou lhe dizer tudo.

- É o meu jeito. Meu problema é com ela; diga tudo e não se arrependerá.

- Às quatro horas da manhã saímos os dois de automóvel e demos uma volta até o Leblon.

- Beijos?

- Sim, beijos.

- O senhor tem certeza de que a Conceição é esta de que lhe falo?

- Certeza absoluta.

- Não há possibilidade de uma coincidência? Então, prossiga.

- Depois fui até o apartamento dela.

- Na rua tal, número tal, apartamento tal?

- Exatamente.

- Bem, mas isso não prova nada. O senhor até agora disse que deu um beijo na Conceição. Quero saber tudo. Escuta uma coisa: esse apartamento tem um tapete azul na sala?

- Tem um tapete azul, azul vivo.

- Ah, então deve ser ela mesma. E ela lhe mostrou um aparelho de alta-fidelidade?

- Mostrou.

- Foi presente meu. Que miserável! E depois?

- Depois... depois... ela me deu um drinque qualquer...

- Vinho do Porto?

- Isto mesmo: vinho do Porto.

- Tocou na vitrola um disco chamado This is Sinatra?

- Tocou... tocou... This is Sinatra...

- E depois?

- Bem, vai me compreender, mas eu acho que não é preciso contar mais nada...

- Pois vai contar tudo direitinho. Até agora o que houve entre o senhor e a Conceição foi um jantar e uns beijinhos. Além do mais, estou muito desconfiado de que se trata de uma amiga da Conceição, uma outra Conceição, de São Paulo. O senhor jura que ela não era paulista? Não tinha um certo sotaque?

- Não reparei.

- Porque a Conceição, a minha Conceição, me disse que ia subir para Petrópolis. Ah! Agora eu me lembro de um teste definitivo! Tinha lá um gato? Quando ela sobe, sempre leva o gato.

- Isto mesmo, um gato... Angorá, se não me engano.

- Certo, certíssimo, um gato angorá. Eu tenho ódio a esse gato! Um dia eu ainda mato aquele gato!

- O senhor tem toda razão: o gato fica pulando em cima da gente a noite toda.

- O pior é que fica miando... Já me arranhou todo... Ah, eu ainda mato aquele gato!... Boa-noite, cavalheiro. Eu vou matar aquele gato!...


Crônica de Paulo Mendes Campos retirada do livro As Eternas Coincidências, série Crônica & Conto, Literatura em minha casa, Volume 2, Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Madrugada

 Desconhecidos - mas somente antes do encontro. Que acontecera no bar. Então, unidos pela mesma cerveja, pelo mesmo desalento, deixaram que o desconhecimento se transmutasse naquela amizade um pouco febril dos que nunca se viram antes. Entre protestos de estima e goles de cerveja depositavam lentos na mesa os problemas íntimos. Enquanto um ouvia, os olhos molhados não se sabia se de álcool ou pranto contido, o outro pensava que nunca tinha encontrado alguém que o compreendesse tão completamente. Era talvez porque não trocavam estímulos, apenas ouviam com ar penalizado, na sabedoria extrema dos que têm consciência de não poder dar nada. Uma mão estendida áspera por entre os copos era o consolo único que se poderiam oferecer.

Com a lucidez dos embriagados, haviam-se reconhecido desde o primeiro momento. Ou talvez estivessem realmente destinados um ao outro, e mesmo sem o álcool, numa rua repleta saberiam encontrar-se. o fulgor nos olhos e a incerteza intensificada nos passos fora a pergunta de um e a resposta de outro.

O primeiro estava ali sentado há duas horas, mas já fazia parte do ambiente. Um pouco porque seu terno era de cor igual às paredes do fundo, mas principalmente porque ele era todo bar. Na forma, no conteúdo. Mas exatamente, aquele bar em especial, que tinha uma coruja no nome e nos desenhos da parede. Ave que ele imitava involuntário, nos ombros contraídos, no olhar verrumante. Olhar que lançou sobre o outro no momento da entrada. Este vinha ainda incerto, como se buscasse. E sua imprecisão atingiu o paroxismo quando no choque de olhares. Vacilou sobre as pernas, a roupa parecendo mais amarrotada, subitamente um braço se descontrolou atingindo a mesa mais próxima, varrendo-a quase com doçura. A doçura dos que de repente encontraram sem querer de sobreaviso. A loura oxigenada deu um grito e o homem que a acompanhava aprumou-se em ofensa, pronto a atacar, macho pré-histórico protegendo a fêmea em perigo. Ainda perdido no espanto, o segundo bêbado não reagiu. Suas mãos estavam cheias apenas de perplexidade, não de ódio. Nesse momento, o primeiro bêbado enristou seu metro e noventa de altura, até então diluído no encolhimento de coruja em que se mantinha. Sem dizer palavra encaminhou-se para o amigo - pois que seus olhares haviam sido tão fundos que dispensavam ritos preparatórios antes de empregar o substantivo - e tomando-o pelo braço, levou para a mesa. O acompanhante da loura acalmou-se de imediato, enquanto esta ficava ainda mais oxigenada no despeito.

E os dois, satisfeitos com a inesperada oportunidade para a comunicação, foram objetivos ao assunto. Estavam sós. A mulher de um estava viajando; o outro não tinha mulher. Mas tinha noiva, e desconfiava que ela o andava traindo. O outro maravilhou-se com a coincidência, pois tinha quase certeza ser a viagem da mulher apenas um pretexto para encontrar com o amante. Unidos na mesma dor-de-cotovelo, sua amizade esquentou a razão de cem graus por segundo. Ambos estavam insatisfeitos nos respectivos empregos. Operários, planejaram greves, piquetes, sindicatos, falaram mal do governo. Um deles, que tinha lido uma frase de Marx num almanaque, citou-o com sucesso. E o engajamento era outro elo a reforçar a corrente já sólida que os unia. De elo em elo, ligavam-se cada vez mais. A tal ponto que simplesmente não cabiam mais em si mesmo. Os copos colocavam-se em pé, oscilantes como se estivessem em banho-maria, os cabelos despenteados, rostos vermelhos, olhos chispantes - furiosos e agressivos no diálogo. Nas outras mesas, seres provavelmente frustrados no desencontro farejavam briga e ergueram as cabeças, espreitando. Não sabiam que, por deficiência de vocabulário, a amizade não raro se descontrola e pode levar ao crime. Apenas os dois pressentiram isso, tão sensíveis haviam-se  tornado no investigar sem palavras do terreno que ora pisavam. Tudo neles era recíproco - e o medo de se ferirem cresceu junto para explodir num silêncio súbito. Então se encararam, mais desgrenhados do que nunca, e com tapinhas nas costas voltaram à delicadeza dos primeiros momentos.

Mas os frustrados que enchiam o bar estavam achando aquilo um grande desaforo. Não era permitido a duas pessoas se encontrarem num sábado à noite e, ostensivas, humilharem a todos com sua infelicidade dividida. O desespero não repartido dos outros era uma raiva grande, expressa nos gestos de quem não suporta mais. Com a sutileza dos donos de bar, o dono deste sentiu a hostilidade crescente. E medroso de que o choque resultasse em prejuízos para si, colocou-se sem hesitação ao lado da maioria. Dirigiu-se aos dois operários e pediu-lhes que se retirassem. Apoiado em seu metro e noventa, um deles quis reagir. Mas o outro, mais fraco e portanto menos heroico e mais realista, advertiu-o da inconveniência da reação. E olharam ambos os outros desencontrados pelas mesas - subitamente encontrados no mesmo ódio - formando uma muralha indignada. O mais alto, menos por situação financeira do que por força, caindo em si fez questão absoluta de pagar todos os gastos. De braço dado, saíram para a madrugada.

Fora, depararam com o frio e o brilho desmaiado das luzes de mercúrio. Encolheram-se devagar, as desgraças mútuas morrendo em calafrios. O domingo vinha vindo. Eles não sabiam o que fazer das mãos cheias de amizade e lembranças das mulheres ausentes. Bêbados como estavam, a única solução seria abraçarem-se e cantarem. Foi o que fizeram. Não satisfeitos com o gesto e as palavras, desabotoaram as braguilhas e mijaram em comum numa festa de espuma. Como no poema de Vinícius que não tinham lido nem teriam jamais. Depois calaram o olharam para longe, para além dos sexos nas mãos. Nas bandas do rio, amanhecia.


Texto de Caio Fernando Abreu retirado do livro Inventário do Ir-remediável, Editora Sulina, Porto Alegre, 2ª Edição, 1995.

sábado, 24 de outubro de 2020

Fenômenos Inexoráveis

 Vês definhar o ser querido, que a enfermidade implacável consome.

Preocupas-te e disfarças a tua agonia, ante o inexorável acontecimento.

Anotas o nome de pessoa querida que a desencarnação violenta arrebatou, e tens o coração dorido.

Oras, em silêncio, sem que ninguém saiba o que experimentas em forma de melancolia.

Recebes informação sobre acontecimentos rudes, afetando corações afetuosos que são convidados a dores extenuantes.

Padeces choque emocional, constatando a tua carência de recursos diante de tão graves provações.

Chega-te o apelo angustiado de amigos queridos, que despertam na soledade ante as infaustas partidas daqueles a quem amam.

Constatas a precariedade da existência física e sofres calado, embora sorrindo.

Defrontas os companheiros da juventude, agora deformados, combalidos, sem rumo.

Nublam-se-te os olhos com lágrimas que não deixas, a fim de que ninguém perceba a tua compunção.

Multiplicam-se, em toda parte, as enfermidades mutiladoras, debilitantes, perturbadoras, que acometem os seres vivos e dilaceram as criaturas humanas, deixando vazios terríveis nos corações.

Não te desalentes, porém.

A desencarnação é etapa final do fenômeno biológico, e ninguém se eximirá de experimentá-la.

Não te entristeças ante os infortúnios e padecimentos daqueles a quem amas.

Canta, aos ouvidos desses que padecem, a canção da imortalidade, acenando-lhes com a esperança de libertação próxima que virá.

Dize-lhes que a existência corporal é veste que dura um dia e a dor é fenômeno de desgaste que descerra a luz guardada no íntimo.

Felizes os que sabem sofrer.

Bem-aventurados aqueles que expungem na Terra.

Se a estância é breve na matéria, o estágio libertador é longo e abençoado.

Anima os que se dilaceram nas enfermidades consumidoras, irradiando-lhes as alegrias com que se inundarão de coragem para sublimar-se.

Reflexiona com eles sobre a realidade da existência humana e o que a todos aguarda após a morte.

Nenhuma dor que permaneça sem termo.

A morte é, portanto, dádiva de Deus para interromper os ciclos afligentes.

Raciocina, examinando a vida sob o ponto de vista espiritual, e tudo se modificará.

Sentir-te-ás feliz, então, vendo os amigos em processo de libertação, antegozando as alegrias que os esperam, por tua vez, a ti também aguardando.

Jesus, sadio e puro, ensinando o amor e confirmando a imortalidade, aceitou, espontaneamente, a traição de um amigo, a negação de outro, o abandono de quase todos, e, sofrendo, sem desanimar, permaneceu tranquilo, tal a Sua certeza, que nos legou, do triunfo da vida além da morte e da noite humana.

Assim, reflexiona e deixa-te dominar pela fé na imortalidade, verificando que, nesta condição, tudo se altera e passa a ter nova e ditosa configuração.


Texto retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 5ª edição, 2014.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Professor Idealista

 Sou professor. Nasci no momento em que uma pergunta saltou da boca de uma criança. Fui muitas pessoas em muitos lugares.

Sou Sócrates, estimulando a juventude de Atenas a descobrir novas ideias através de perguntas.

Sou Anne Sullivan, extraindo os segredos do universo da mão estendida de Helen Keller.

Sou Esopo e Hans Christian Andersen revelando a verdade através de inúmeras histórias.

Os nomes daqueles que praticaram minha profissão soam como um corredor da fama para a humanidade... Buda, Confúcio, Ralph Waldo Emerson, Moisés e Jesus.

Sou também aqueles cujos nomes foram há muito esquecidos, mas cujas lições e o caráter serão sempre lembrados nas realizações de seus alunos.

Tenho chorado de alegria nos casamentos de ex-alunos, gargalhando de júbilo no nascimento de seus filhos e permanecido com a cabeça baixa de pesar e confusão ao lado de suas sepulturas cavadas cedo demais, para corpos jovens demais.

Ao longo de cada dia tenho sido solicitado como ator, amigo, enfermeiro e médico, treinador, descobridor de artigos perdidos, como o que empresta dinheiro, como motorista de táxi, psicólogo, pai substituto, vendedor, político e mantenedor da fé.

A despeito de mapas, gráficos, fórmulas, verbos, histórias e livros, não tenho tido, na verdade, nada o que ensinar, pois meus alunos têm apenas a si próprios para aprender, e eu sei que é preciso o mundo inteiro para dizer a alguém quem ele é.

Riqueza material não é um de meus objetivos, mas sou um caçador de tesouros em tempo integral, em minha busca de novas oportunidades para que meus alunos usem seus talentos e em minha procura constante desses talentos que, às vezes, permanecem encobertos pela autoderrota.

Sou o mais afortunado entre todos os que labutam.

A um médico é permitido conduzir a vida num mágico momento. A mim, é permitido ver que a vida renasce a cada dia com novas perguntas, ideias e amizades.

Um arquiteto sabe que, se construir com cuidado, sua estrutura poderá permanecer por séculos. Um professor sabe que, se construir com amor e verdade, o que construir durará para sempre.

Sou um guerreiro, batalhando diariamente contra a pressão dos colegas, o negativismo, o medo, o conformismo, o preconceito e a apatia. Mas tenho grandes aliados: inteligência, curiosidade, apoio paterno, individualidade, criatividade, fé, amor e riso, todos correm a tomar meu partido com apoio indômito.

E a quem mais devo agradecer por esta vida maravilhosa, que sou tão afortunado em experimentar: a vocês, ao público, aos pais? Pois vocês me deram a grande honra de me confiarem suas maiores contribuições para com a eternidade, seus filhos.

E assim, tenho um passado rico em memórias. Tenho um presente de desafios, aventuras e divertimento, porque a mim é permitido passar os meus dias com o futuro.

Sou professor... a agradeço a Deus por isso todos os dias.


Texto de Daniel Carvalho Luz retirado do livro Insight 2,  DVS Editora, São Paulo, 2002.

sábado, 17 de outubro de 2020

Jubilosamente

 Tens o cérebro ardendo sob a ação das preocupações que o dominam em círculo de fogo.

Trazes o sentimento macerado por angústias que não relatas.

Estás com a alma açoitada por vendavais de agonia que se sucedem, ininterruptamente.

Sais de um testemunho, e, em vez de liberação, já te vês enfrentando novos e dolorosos desafios.

Pedem-te, porém, que sorrias e superes estes teus momentos de provações, impondo-te insensibilidade, indiferença emocional.

Renasceste crucificado nas provações redentoras e não tens ainda o direito à plenitude, à marcha serena daqueles que se venceram a si próprios.

A existência terrestre, no entanto, é assim mesmo.

Todos avançam a contributo da aflição, que lhes constitui o recurso valioso graças ao qual a falência moral se torna mais difícil.

Certamente, há aqueles que, sob a injunção do sofrimento, rebelam-se, parecendo piorar a própria situação.

Não obstante, já travaste contato consciente com a vida, e sabes que apenas te sucede aquilo que é de melhor para o teu progresso espiritual.

Desse modo, jubilosamente carrega tua cruz invisível, guardando a certeza de que as tuas traves penosas, se conduzidas com amor, converter-se-ão em asas de luz que te erguerão deste mundo áspero para as regiões da felicidade.

Ausculta os reais vitoriosos da Terra, e perceberás que o holocausto deles é o estímulo para o teu prosseguimento afervorado.

Joana d'Arc, quando começava a arder na fogueira, ergueu-se acima dos seus inquisidores e experimentou a libertação plena.

Jan Huss, enquanto era queimado pelo Concílio de Constança, inaugurou a era do livre exame das Escrituras, tornando-se mártir para todo o sempre.

Jerônimo de Praga, seu discípulo, seguindo-lhe depois no drama das labaredas, depois de uma prolongada existência rica de sabedoria, abriu espaços coma sua morte para que a vida dos homens fosse iluminada pela fé racional.

São inúmeros os heróis da renúncia e dos ideais de engrandecimento humano.

A evolução dos homens torna-se possível através das vertentes do amor que santifica, que estimula ao progresso, ou do sofrimento que desperta para as responsabilidades mal consideradas.

A dor não representa maldição divina, antes significa recurso educativo, inevitável.

Não te entristeças, pois, porque te encontres lanhado pelos látegos do sofrimento, enquanto o festival de sorrisos, em torno de ti, constitui uma constante que não fruis.

Afinal, o teu não é o mestre dos triunfos terrenos, porém, o Herói Silencioso da Cruz, o Excelente Triunfador da sepultura vazia.

Jubilosamente prossegue, e não te perturbes com nada, enquanto transcorra a tua vilegiatura carnal.


Texto retirado do livro Momentos de Harmonia, Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 3ª Edição.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Todo Mundo no Mundo

Todo mundo tá perdido,
Isso ninguém pode negar
Então junta todo mundo
Que é pro mundo melhorar
Então junta todo mundo
Que é pro mundo melhorar

Tem indiano, brasileiro, africano, libanês
Cada qual com seu talento
Dando as mãos viramos três

Tem inglês, tem argentino, italiano, português
O melhor de cada um a gente soma dessa vez

Esse mundo tá perdido
Isso ninguém pode negar
Então junta todo mundo
Que é pro mundo melhorar

Então junta todo mundo
Que é pro mundo melhorar

Tem francês, tem espanhol, americano, japonês
Cada qual com seu talento
Cada um dá o que fez

Tem cigano, alemão, tibetano, tem chinês
O melhor de cada um a gente soma dessa vez

Música de Laura Finocchiaro que fecha seu CD Copy Paste - Música Orgânica, lançado em 2013.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Meu Amigo Pedro

Muitas vezes Pedro você fala
Sempre a se queixar da solidão
Quem te fez com ferro, fez com fogo, Pedro
É pena que você não sabe não

Vai pro seu trabalho todo dia
Sem saber se é bom ou se é ruim
Quando vai chorar vai ao banheiro
Pedro as coisas não são bem assim

Toda vez que eu sinto o paraíso
Ou me queimo torto no inferno
Eu penso em você, meu pobre amigo,
Que só usa sempre o mesmo terno

Pedro onde cê vai eu também vou
Mas tudo acaba onde começou

Tente me ensinar das tuas coisas
Que a vida é seria, e a guerra é dura
Mas se não puder, cale essa boca, Pedro
E deixa eu viver minha loucura

Lembra, Pedro, aqueles velhos dias
Quando os dois pensavam sobre o mundo
Hoje eu te chamo de careta, Pedro
E você me chama vagabundo

Pedro onde cê vai eu também vou
Mas tudo acaba onde começou

Todos os caminhos são iguais
O que leva à glória ou à perdição
Há tantos caminhos, tantas portas
Mas somente um tem coração

E eu não tenho nada a te dizer
Mas não me critique como eu sou
Cada um de nós é um universo, Pedro
Onde você vai também eu vou

Pedro onde cê vai eu também vou
Mas tudo acaba onde começou

Música de Raul Seixas e Paulo Coelho retirada do CD Há 10 Mil Anos Atrás. Lançado originalmente em LP em 1976.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Meu Amigo João

 Saindo agora do escritório dele, recordei-me subitamente das palavras de minha mãe. A vida é uma ciranda, dizia ela, a gente dá a mão para uma pessoa hoje, outra nos estende a sua amanhã. E, como se reescrevesse o meu evangelho, lembrei-me da primeira vez em que o vi: João estava sob a sombra de uma mangueira no quintal de nossa vizinha, onde eu fora buscar folhas de louro a pedido de mamãe. Movia-se, silencioso, como uma serpente, procurando pedras no chão, com as quais depois derrubou duas mangas maduras; uma, que logo mordeu, sugando o suco como um seio; a outra, que deu a mim, a contemplá-lo admirado. Havia pouco ele se mudara com a tia para a vila onde morávamos e, naquela manhã, ao me estender a fruta, disse apenas, É pra você!, e sumiu entre as árvores. Comoveu-me a sua inesperada generosidade, eu não estava habituado a ganhar nada de estranhos, era eu quem sempre dava. E descobri que ele não entrara ali como eu, pelo portão: João pulara o muro da vizinha. Mas em vez de desprezá-lo pelo roubo, admirei-o pela ousadia.

Surpreendeu-me na semana seguinte, quando nos encontramos no catecismo e a professora, após ler a Bíblia, explicou que João significava "amigo de Cristo", e ele sorriu docemente pra mim, sua mais nova conquista. Foi numa dessas aulas que me entreguei de fato a ele - já então nos conhecíamos melhor e bastava vê-lo amarrado à grossa corda de seu silêncio, os lábios unidos por pregos invisíveis, para saber que não se resignava à sua condição. Era uma tarde de inverno e, de repente, o horizonte enegreceu e uma inesperada tempestade desabou. Trovões eclodiam, ininterruptos, bombardeando nossos ouvidos; relâmpagos desenhavam no céu formas horripilantes, que víamos, assustados, pelos vidros da janela. A professora fechou a cortina, acendeu a luz da sala onde nos reuníamos em roda, e tentou nos acalmar, enquanto galhos de árvores se estatelavam na rua ao bramir da ventania. A luz tremeu uma vez, outra, e na terceira se apagou. Vou procurar uma vela, disse ela, e então alguém sussurrou, aflito, Ai, meu Jesus! Reconheci a voz de meu amigo e senti o ar que sua mão deslocava, rasgando as trevas à procura da minha - e prontamente a estendi.

Minha mãe se alegrava ao me ver com João. Nós dois nos divertíamos horas a fio com meus automóveis, piões, quebra-cabeças, soldados e índios do Forte Apache, dinheiros e cheques do Banco Imobiliário. E me elogiava, sempre em voz alta, para meus irmãos ouvirem, que eu sabia dividir como um autêntico cristão; afinal, ninguém podia ser feliz sozinho, o paraíso na terra eram as boas companhias. Não me admirou, numa das poucas vezes em que fui à casa de João - era sempre ele quem vinha à nossa -, encontrar em seu quarto brinquedos meus, alguns que eu supunha ter perdido: um avião de guerra, um carro de polícia, o trem elétrico. Ao me ver repentinamente ali, ele deu de ombros e me chamou para brincar na rua, como se aqueles brinquedos não tivessem para ele o valor que eu sabia ter. Não que eu os quisesse de volta, João é quem desejava ocultá-los de mim. Mas não me aborreci, eu sabia que nada pode ser dado se já não é do outro. E era eu ganhar uma bicicleta nova para ceder a ele a minha velha, sem hesitar em trocá-las no caminho e deixá-lo saborear algo que me alegrava possuir só para lhe oferecer. Era sobrar papel-alumínio, com o qual minha mãe encadernava meus livros, para igualmente encadernar os dele. Era soar o sino do recreio para sentarmos num banco, e eu dar a  ele o meu lanche e assistir à sua voracidade, ao seu jeito de comer, ruminante, os maxilares se movendo com vigor, quando então parecia um homem, e só voltava a ser menino se eu olhasse para suas mãos pequenas, seus pés balançando sem tocar o chão, seus cabelos revoltos ao vento. Era chegar o inverno para que eu admirasse meus agasalhos sobre seu corpo, vivendo o susto de me ver nele - água para seu batismo -, e não foram poucas as ocasiões em que menti, afirmando não me servirem mais para que pudessem vestir João. Era chegar o sábado para irmos juntos à banda e corrermos até o suor escorrer pelas nossas faces em fogo, e depois nos deitarmos na grama, o coração como um bumbo, trovejando, e ele transbordar seus silêncios, e eu gastar todas as moedas que ganhava em pipocas, beijus, amendoins, refrigerantes e tudo o mais que eu podia comprar para agradá-lo.

Na juventude, tive plena certeza de que João era o senhor absoluto de minha amizade. Passávamos horas em mesas de bar, eu pedindo com satisfação a marca de cerveja que ele apreciava, concedendo-lhe sempre a regalia de encerrar as nossas noites à hora que lhe fosse conveniente. Numerosas vezes o levei cambaleante para casa, atravessando a névoa da madrugada, enquanto ele prometia, aos brados, que haveria de ser importante para o mundo, sem se importar de já o ser para mim. Foi o tempo de urdir devaneios, fabricar os fios para tecermos o nosso futuro, emaranhar-nos na meada de nossas crenças ingênuas e viver o alumbramento que a descoberta do corpo feminino nos proporcionava. Como touros enfurecidos, saíamos às ruas, em busca da costela que nos faltava, experimentando uma garota e outra, convictos de que ocupavam o nosso vazio, até começarem a nos doer, mostrando o seu duvidoso encaixe. Rompíamos manhãs, perfurávamos tardes, desvirginávamos madrugadas, confidenciando um ao outro as nossas aventuras amorosas. Chegamos a partilhar, em épocas distintas, a mesma jovem. Eu a namorei primeiro, ou foi Madalena quem se meteu ao meu lado em nossa ciranda. Mas, depois de alguns meses, ela preferiu seguir João, como um apóstolo, e só me restou ouvi-lo contar, em detalhes cruéis, as suas vivências com Madalena. Constrangia-me que ele soubesse o quanto eu havia me dado a ela e o pouco que ela lograra receber de mim. Eu renascera em Madalena, mas João a possuíra, e ela, certamente pelo gosto de ser possuída, morreria por ele, apesar das pedras que meu amigo lhe atirava, sobretudo, se eu estivesse por perto. Mais tarde ele a abandonou: Madalena era apenas uma ermida, e João queria oficiar a sua missa numa catedral.

Comecei a me preparar para o vestibular, seguindo o exemplo de meus irmãos que cursavam faculdade em cidades vizinhas e, de tanto eu insistir, meu pai obteve no cursinho em que me matriculara uma bolsa de estudos para João. O diabo do mundo nos tentava com suas maravilhas e nos atiramos aos livros com a obstinação dos peregrinos. Não nos bastava viver entre margens de rio; queríamos lançar redes no oceano, enfiar nas mãos dos incrédulos os cravos de nossa vitória. E, como eu me empenhasse em demasia nos estudos, quase sem lazer, meu pai, temendo que o excesso fosse um obstáculo para eu atingir meu intento, oferecia-me às vezes o carro para dar uma volta. Se não saía com nenhuma garota, João ia comigo. Eu o deixava dirigir pelas ruas afastadas do centro, mas ele não se satisfazia plenamente, porque desejava se exibir à luz esfuziante das avenidas. Foi quem mais festejou quando meu pai me deu um Fiat no dia em que entrei na faculdade. Empenhou-se em me embriagar, estendendo-me a todo instante o cálice da glória, e em me raspar os cabelos, obrigando-me a dar uma face e depois a outra para escrever o nome da faculdade na qual eu entrara. Meu coração hesitava, queria disparar com a alegria do triunfo, mas se continha, receoso de que tanta satisfação o magoasse. Na semana seguinte, saiu o resultado de seu exame e foi a minha vez de vazar de felicidade ao descer o dedo pela folha do jornal e materializar seu nome na lista dos aprovados. Armei uma festa para ele, e, como acontecera dias antes comigo, João oscilava entre o sol daquela certeza e as nuvens de inquietude: a faculdade era pública, mas ele também teria de se mudar para a capital, e trinta moedas não bastariam para sustentá-lo. Calma, meu amigo, eu lhe disse. E lembrei das nossas aulas de catecismo, Não cai um fio de cabelo sem que Deus não queira. Ele respondeu, amargo, Já é hora de Deus transformar as pedras de meu caminho em pães.

O milagre aconteceu. Meu pai alugou uma quitinete em São Paulo e João foi morar comigo. o que agradou especialmente minha mãe; ela se sentia segura, achava que, junto a ele, eu enfrentaria melhor os perigos da metrópole e teria ao meu lado um guardião. Abnegado, meu pai conseguiu uma aposentadoria para a tia de João e ela, mensalmente, passou a lhe enviar algum dinheiro para que comprasse seus livros. O mais, que não era muito, eu lhe dava. Apetecia-me repartir o meu pão com ele, multiplicar em dois o meu peixe.

Vivemos quatro anos metidos nos bancos da universidade, nas salas pulguentas dos cineclubes, nas pistas enfumaçadas dos inferninhos, nos corpos rijos das mulheres que nos amaciavam a fúria libidinosa, nos botecos imundos onde transformávamos vinho em água. Muitos conhecidos vinham a mim, reivindicando o posto de escolhidos, mas João era o amigo que nenhum superaria em meu coração.

Quando estávamos para colar grau, surgiu Marta e o arrebatou com sua sensualidade voraz, sua beleza saturnina, seu rico pai - o dedo que faltava à mão de João. Não tardou para Marta engravidar e se desentender com o pai que não aprovou sua união com meu amigo e a deserdou. Eles se casaram em dezembro e no sorriso de João havia uma linha de contrariedade que só minha alma podia soletrar. Na gritaria de seu silêncio, ele desafiava Deus. Providenciei um jantar para os noivos, convidando uma dúzia de colegas, e comemoramos as suas bodas. Eu me sentia feliz em entregá-lo a ela, julgava-me um bem-aventurado e seguia as palavras de Cristo: Quem quiser ganhar a vida perdê-la-á; mas quem quiser perdê-la por mim, tudo ganhará. Dei a ele todas as minhas economias para que pudesse ter uma lua-de-mel decente, embora não a de seus sonhos, e pagar adiantado três meses de aluguel de um modesto apartamento no centro da cidade, que eu encontrara para o casal.

No ano seguinte, João começou a trabalhar como trainee numa multinacional, eu me encaixei numa empresa, e seguimos a vida. Quando a criança nasceu, ele me convidou para batizá-la e, nesse dia, eu soube que meu amigo vivia cheio de dívidas, e no universo de seus credores não havia espaço para o perdão. Eu planejava vender meu carro e fazer um curso nos Estados Unidos, já comunicara o plano à minha família, mas vendo João em apuros, agradeci a Deus a oportunidade de servi-lo. Consumei o negócio e dei o dinheiro apurado a ele, inventando a meu pai, cuja situação financeira declinava, que haviam me roubado o carro e eu não renovara apólice do seguro.

Atirei-me ao trabalho e às mulheres, vaguei de corpo em corpo, em busca de minha Eva e, enfim, quando a encontrei, tinha um bom emprego e me casei. Vieram os filhos. Eu e João quase não nos víamos. Nem precisava: meu sangue repousava em seu cálice, seu rosto de menino reinava em minha memória. Sobreveio um período de silêncio, nossos encontros se espaçaram, até que entre eles não cabiam dias, mas longos anos.

Meu pai morreu, os bens que deixou motivaram uma disputa feroz entre meus irmãos, com os quais rompi relações. De repente, o progresso que eu fazia no mundo profissional cessou e me vi desempregado. No início não me preocupei, acostumara-me a pouco, mesmo nos tempos de abundância. Mas, com o passar dos meses, percebi que não tinha a quem recorrer. Eu estava acuado, como João na tarde em que a luz acabou, a mão estendida em busca de ajuda. Então vi nos classificados do jornal que uma importadora de azeite necessitava de um gerente e meu perfil atendia às exigências. No dia da entrevista, quando a porta se abriu, dei inesperadamente com ele, como que saindo da sombra das mangueiras para me salvar. Foi um momento divino para mim. Mas não para ele, como notei depois. João parecia estar há muito à minha espera, como naquela manhã no quintal da vizinha, as pedras na mão para derrubar a minha e a sua manga. Abraçamo-nos, longamente, e logo ele me contou a sua via-crúcis, as jornadas que enfrentara para construir o seu tão almejado mundo, até o último lance, quando o sogro, doente, intimara-o a dirigir os negócios da família. A roda da fortuna girava finalmente para ele. Falamos o que é comum nesses reencontros e, a uma pergunta sua, contei o que se passava comigo. Entreguei em suas mãos o meu espírito, convicto de que ele se reconhecia em mim. Mas, após relembrar vários episódios de nossa vida, como se recapitulando os atos de minha paixão, ele disse que meu currículo chegara quando já se encerrara o processo de seleção e não podia interferir a meu favor. Senti a boca seca, a garganta esbraseada e levantei para me despedi. Então o telefone tocou e ele atendeu. Alguém o chamava urgentemente. Esperei algum tempo, ouvindo-o gritar feito um demônio e a negociar numa língua que não era a nossa, de meninos. E, como João parecia não ter pressa, fiz-lhe um sinal e saí, sem que me estendesse a mão.


Conto de João Anzanello Carrascoza retirado da coletânea Olhar de Descoberta, Volume 2 Crônica e Conto, Série Literatura em minha casa, Editora Melhoramentos, São Paulo, 2003.

domingo, 11 de outubro de 2020

A Descoberta

- Bom dia. Eu sou o pai do Buscapé.

- Do Buscapé?

- Do Otávio.

- Ah, do Otávio. Pois não.

- Ele é um demônio.

- Eu sei. Quer dizer, não. Ele é um menino, vamos dizer, hiperativo.

- "Hiper" é pouco.

- Eu não acho que...

- Por favor. Não precisa se constranger. Eu sou o pai e sei. Ele é um demônio.

- É.

- E é sobre isso que eu queria lhe falar.

- Ele contou que eu gritei com ele na aula...

- Não, não. Isso ele nem nota. Está acostumado. É que a mãe dele está preocupada.

- Eu não me preocuparia. Todas as crianças são hiperativas nessa fase. O Buscapé... O Otávio só é um pouco mais do que as outras. A sua senhora não deve...

- Mas ela está preocupada com outra coisa.

- O quê?

- O Busca não para de ler.

- Não para de ler? Mas isso é ótimo.

- Desde que começou a ler, anda sempre com um livro debaixo do braço. Quando a gente estranha o silêncio dentro de casa, vai ver é ele não fazendo barulho. Está atirado no chão, soletrando um livro, muito compenetrado.

- Mas eu não vejo qual o problema.

- É a mãe dele que... Bom, ela sente falta.

- Do quê?

- Da agitação do Busca. Ela não está acostumada, entende? A ter um intelectual em casa. Outro dia até brigou com ele.

- Por quê?

- Ele estava quieto demais. Ela gritou: "Eu não aguento mais. Quebra alguma coisa!"

- Mas eu não entendo o que eu posso...

- Bom, se a senhora pudesse, sei lá. Não digo desencorajar o Busca. Só dizer que ele não precisa exagerar.

- Mas ele está descobrindo o mundo maravilhoso dos livros. Isso é formidável.

- É, só que a gente fica, não é?, com um certo ciúme. 


Conto de Luis Fernando Veríssimo retirado do livro O Santinho, Coleção Literatura em minha casa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.

sábado, 10 de outubro de 2020

A Religião e o Indivíduo

 O conceito de Freud quanto à religião, afirmando que ela é, por si, uma neurose compulsiva, exprime uma reação dogmática negativa, absurda.

A religião oferece métodos de integração da consciência individual e coletiva na Realidade Cósmica, como opção realizadora para o homem mediante a conquista de objetivos mais elevados.

Tivesse razão o nobre psicanalista vienense e se poderia afirmar também que a ausência dela, por si mesma, seria igualmente, o resultado de uma compulsão neurótica.

Não é a religião que impõe freio, dependência, fuga à liberdade e à capacidade de o homem ser responsável. Porém, os esquemas propostos por alguns religiosos, que elaboram doutrinas castradoras, que proíbem, impõem, cassam os direitos dos seus fiéis, aprisionando-os na urdidura dos seus limites.

Da mesma forma que o homem busca a fé religiosa como processo de certeza, de segurança, o faz em relação à ciência, nela procurando refúgio, apoio à sua fragilidade, proteção ao seu estado infantil.

A religião propicia amadurecimento psicológico, graças às propostas desafiadoras com que se apresenta.

O crente que se conscientiza dos postulados religiosos que abraça, entrega-se a uma dinâmica de maturidade e realização que o propele a conquistas novas: ampliação das aptidões, capacidade de amar, força de trabalho, alegria na luta, compensação emocional diante da dor, espírito de combatividade, calma nas atitudes...

A ansiedade cede-lhe passo à harmonia interior, e, sem transferir responsabilidades para Deus, confia no futuro e no seu poder de triunfo.

Há indivíduos que se entregam à vontade de Deus, porque resolvem acomodar-se, fugindo à responsabilidade dos acontecimentos que lhes cumpre conduzir. Este é, sem dúvida, um estado de alienação neurótica.

Sucessos e fracassos, mais insucessos certamente, lhes ocorrem porque, dizem, Deus assim o quer, quando tudo os convida à realização dinâmica e produtiva do bem com saldos favoráveis para a sua realização.

Outros existem, que permanecem aguardando milagres capazes de lhes alterar o destino, sem a contribuição do seu esforço.

Diversos, portadores de sentimentos de culpa, buscam a fuga religiosa como processo escapista para o enfrentamento com a consciência.

Não falta, da mesma forma, quem procure transferir suas responsabilidades para Deus, utilizando-se do processo infantil de ser cuidado por alguém...

Esses crentes são portadores de conflitos, sem dúvida, mas a culpa não é da religião que abraçam, e sim deles próprios.

A religião deve possuir recursos terapêuticos de otimismo, de afirmação para o indivíduo e de identificação pessoal com a vida.

Não se impondo a ninguém, ajuda a discernir quais as melhores metas existenciais e como consegui-las.

Apoiando-se no raciocínio, liberta o homem do totens e tabus atávicos, facilmente aplicando-lhe as regras éticas de conduta que o tornam seguro e calmo no processo de crescimento íntimo.

Abandonando a ideia de um Deus-homem ou um homem-Deus, o crente assimila o conteúdo da definição do Dr. Paul Tillich, célebre religioso contemporâneo: "É tão ateu afirmar a existência de Deus, como negá-lo. Deus é o próprio ser, não um ser."

A crença em Deus é, também, uma forma de dar sentido, dar significado à vida. Desse modo, a atitude religiosa é uma maneira de o homem encontrar motivos superiores para viver, para dignificar a vida e até mesmo para dar a existência por eles, qual ocorre em outras áreas do comportamento humano.

A religião é também responsável por inúmeros impulsos criativos e realizadores, o que a torna essencial à vida.


Texto retirado do livro Momentos de Iluminação, Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª edição, 2015.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A Periferia e o Centro

 O berço da Modernidade talvez resida, não no Renascimento italiano ou na Reforma protestante, e sim, na aventura marítima de Cristóvão Colombo, desembarcando no Novo Mundo em 12 de outubro de 1492. A chegada das caravelas espanholas ao nosso continente alterou profundamente a vida e a história dos povos que aqui viviam; astecas, maias, quechuas e aymaras. Contudo, assim como o corruptor faz o corrupto e a mentira instaura o mentiroso, o efeito da conquista mudou radicalmente o perfil do conquistador.

Até 1492 as histórias dos povos eram regionais. Nenhum povo trazia a experiência da mundialidade da História. Quando muito, conhecia expansões mediterrâneas e asiáticas, que, no entanto, não tornava gregos, romanos ou mongóis centro de um orbe inculturado pelo dominador. Ao quebrar, no século 15, as barreiras que lhe haviam sido impostas pelo domínio muçulmano desde 711, a Península Ibérica impregna a Europa da consciência de ser o centro do espaço mundial. Os portugueses lançam a ponte entre o continente europeu e a Ásia oriental, enquanto os espanhóis estendem o arco que se abre da América às Filipinas.

A centralidade europeia, instaurada em 1492, induz o conquistador a confundir sua particularidade com a universalidade. Já não se admitem fenômenos como o deslocamento do polo cultural da dominação grega, que se transfere do centro para a periferia - da Academia de Atenas para a Biblioteca de Alexandria - ou a pluralidade religiosa do império romano, tolerante com as crenças judaicas. Agora, o conquistador se julga modelo e modelador. "Europeu" torna-se sinônimo de humano e civilizado, enquanto os habitantes da periferia, por não residirem no centro, são tidos como seres inferiores, cuja salvação depende da submissão. Suprime-se, assim, a diversidade planetária. A partir de então, colonialismo e neocolonialismo fortalecem vínculos de dependência que nos fazem habitantes de um mundo que se define Terceiro em relação ao Primeiro...

Passados 500 anos, os povos da "periferia" americana tomam consciência de seu atávico mimetismo, ao mesmo tempo que empreendem a luta pelo resgate de sua identidade. Indígenas e negros descobrem-se, agora,  com os próprios olhos, talvez estranhando esses brancos que afagam gatos e cães e pensam que têm um corpo que lhes oprime a alma, sem consciência de que são um corpo pleno de espírito. E, do outro lado do oceano, o "centro" se dá conta de que não é homogêneo. A liberdade traz à tona a diversidade de raças e etnias, religiões e nações, que exigem espaço e reconhecimento próprios. À porta de sua integração a Europa se desmembra e seus países se desintegram. E se pergunta se foi mesmo um genovês instruído em Portugal e financiado pela Espanha quem "descobriu" a América, convencido de que chegara às costas da Ásia...


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho D'água, 2ª Edição, São Paulo, 2003.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Ícaro

Que nem um Ícaro
Aquele herói que se iludiu
Com o sol e a quem o sol sorriu
E então caiu no mar

Pois foi dos píncaros
Que aquele anjo do céu surgiu
Aquele anjo, aquele ardil
Que eu não quis evitar

Vertical, direto, certo e reto
Na minha direção
Seta absoluta que caiu do céu
No meu coração

Música de Fred Martins e Marcelo Diniz gravada por Carlos Navas em seu CD Tanto Silêncio - Acústico, lançado em 2003.

Si mis manos pudieran deshojar

Yo pronuncio tu nombre
en las noches oscuras,
cuando vienen los astros
a beber en la luna
y duermen los ramajes
de las frondas ocultas.
Y yo me siento hueco
de pasión y de música.
Loco reloj que canta
muertas horas antiguas.

Yo pronuncio tu nombre,
en esta noche oscura,
y tu nombre me suena
más lejano que nunca.
Más lejano que todas las estrellas
y más doliente que la mansa lluvia.

?Te querré como entonces
alguna vez? ?Qué culpa
tiene mi corazon?
Si la niebla se esfuma,
?qué otra pasión me espera?
?Será tranquila y pura?
!!Si mis dedos pudieran
deshojar a la luna!!

Poema de Garcia Lorca retirado do livro Obra Poética Completa, Editora Martins Fontes/Editora Universidade de Brasília, 1989.

domingo, 4 de outubro de 2020

O Juiz

 Foi em pleno julgamento do filho do Prefeito que o Juiz teve um ataque cardíaco e virou presunto.

Com o julgamento adiado, o Prefeito não se conteve:

- Justo agora o desgraçado teve que empacotar! Gastei uma dinheirama para garantir a inocência do meu filho e o sujeito desmonta daquele jeito!

E a pequena cidade estava em véspera de festa. A comemoração da emancipação era no fim-de-semana. Até mesmo um futebolzinho estava programado para o domingo. Era contra a cidade vizinha, um verdadeiro clássico! Mas agora o Prefeito estava preocupado, seu filho teria que ser libertado antes da comemoração, uma questão política. Um novo Juiz chegaria nos próximos dias e o Prefeito teria que usar do mesmo procedimento.

- Será que vai ser fácil comprar o homem? falou o Prefeito, passando a mão pelo farto bigode.

Dois dias antes da festa o Juiz apareceu. O Prefeito na estação rodoviária foi recebê-lo:

- O senhor é o Juiz?

- Sou sim, senhor. Estou um pouco cansado da viagem, mas estarei pronto para atuar.

- Ótimo, seu Juiz, ótimo!

No caminho até o hotel, o Prefeito explicou a situação ao Juiz e de cara foi logo oferecendo o dinheiro. O Juiz ficou sem entender, quis explicar, tentou dizer algo, mas o Prefeito não permitiu:

- O dobro, seu Juiz, o dobro!

Era muito dinheiro, o Juiz não resistiu:

- Pagamento imediato?

O Prefeito limpou os cofres da Prefeitura e conseguiu o dinheiro. O Juiz ainda teve a petulância de conferir:

- Está certo, seu Prefeito! Então está combinado. Pode ficar tranquilo.

Na manhã seguinte, o Juiz acordou cedinho. Tomou o primeiro ônibus e desapareceu do mapa.

Naquele mesmo dia chegava à cidade o Juiz de Direito. Na Prefeitura, encontrou-se com o Prefeito.

- Senhor Prefeito? Sou o Juiz.

- Como vai o senhor? Não o esperava tão cedo. O jogo de futebol é só no domingo!

- Futebol? Que futebol?

- Uai, o senhor não veio apitar o clássico de domingo?!


Crônica de Alexandre Azevedo retirado do livro Que Azar, Godofredo!, Atual Editora, Série Transas e Tramas, São Paulo, 13ª Edição, 1989.

sábado, 3 de outubro de 2020

Recorre à Meditação

 O homem que busca a realização pessoal, inevitavelmente é impelido à interiorização.

Seu pensamento deve manter firmeza no ideal que o fascina, e a fé, de que logrará o êxito, impulsiona-o a não se intimidar diante dos impedimentos que o assaltam na execução do programa ao qual se propõe.

A meditação torna-se-lhe o meio eficaz para disciplinar a vontade, exercitando a paciência com que vencerá cada dia as tendências inferiores nas quais se agrilhoa.

Meditar é uma necessidade imperiosa que se impõe antes de qualquer realização.

Com essa atitude, acalma-se a emoção e aclara-se o discernimento, harmonizando-se os sentimentos.

Não se torna indispensável que haja uma alienação, em fuga dos compromissos que lhe cumpre atender, em face das responsabilidades humanas e sociais. Mas, que reserve alguns espaços mentais e de tempo, a fim de lograr o cometimento.

Começa o teu treinamento, meditando diariamente num pensamento do Cristo, fixando-o pela repetição e aplicando-o na conduta através da ação.

Aumenta, a pouco e pouco, o tempo que lhe dediques, treinando o inquieto corcel mental e aquietando o corpo desacostumado.

Sensações e continuadas comichões que surgem, atende-as com calma, a mente ligada à ideia central, até conseguires superá-las.

A meditação deve ser atenta, mas não tensa, rígida.

Concentra-te, assentado comodamente, não porém, o suficiente para amolentar-te e  conduzir-te ao sono.

Envida esforços para vencer os desejos inferiores e as más inclinações.

Escolhe um lugar asseado, agradável, se possível, que se te faça habitual, enriquecendo-lhe a psicosfera com a qualidade superior dos teus anelos.

Reserva-te uma hora calma, em que estejas repousado.

Invade o desconhecido país da tua mente, a princípio reflexionando sem censurar, nem julgar, qual observador equilibrado diante de acontecimentos que não pode evitar.

Respira, calmamente, sentindo o ar que te abençoa a vida.

Procura a companhia de pessoas moralmente sadias e sábias, que te harmonizem.

Dias haverá mais difíceis para o exercício. O treinamento, entretanto, se responsabilizará pelos resultados eficazes.

Não lutes contra os pensamentos. Conquista-os com paciência.

Tão natural se te tornará a realização que diante de qualquer desafio ou problema, serás conduzido à ideia predominante em ti, portanto, a de tranquilidade, de discernimento.

Gandhi jejuava em paz, por vários dias, sem sofrer distúrbios mentais, porque se habituara à meditação, à qual se entregava nessas oportunidades.

E Jesus, durante os quarenta dias de jejum, manteve-se em ligação com o Pai, prenunciando o testemunho no Getsêmani, quando entregue, em meditação profunda, na qual orava, deixou-se arrastar pelas mãos da injustiça para o grande testemunho que viera oferecer à Humanidade.


Texto retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.