segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Meu Amigo João

 Saindo agora do escritório dele, recordei-me subitamente das palavras de minha mãe. A vida é uma ciranda, dizia ela, a gente dá a mão para uma pessoa hoje, outra nos estende a sua amanhã. E, como se reescrevesse o meu evangelho, lembrei-me da primeira vez em que o vi: João estava sob a sombra de uma mangueira no quintal de nossa vizinha, onde eu fora buscar folhas de louro a pedido de mamãe. Movia-se, silencioso, como uma serpente, procurando pedras no chão, com as quais depois derrubou duas mangas maduras; uma, que logo mordeu, sugando o suco como um seio; a outra, que deu a mim, a contemplá-lo admirado. Havia pouco ele se mudara com a tia para a vila onde morávamos e, naquela manhã, ao me estender a fruta, disse apenas, É pra você!, e sumiu entre as árvores. Comoveu-me a sua inesperada generosidade, eu não estava habituado a ganhar nada de estranhos, era eu quem sempre dava. E descobri que ele não entrara ali como eu, pelo portão: João pulara o muro da vizinha. Mas em vez de desprezá-lo pelo roubo, admirei-o pela ousadia.

Surpreendeu-me na semana seguinte, quando nos encontramos no catecismo e a professora, após ler a Bíblia, explicou que João significava "amigo de Cristo", e ele sorriu docemente pra mim, sua mais nova conquista. Foi numa dessas aulas que me entreguei de fato a ele - já então nos conhecíamos melhor e bastava vê-lo amarrado à grossa corda de seu silêncio, os lábios unidos por pregos invisíveis, para saber que não se resignava à sua condição. Era uma tarde de inverno e, de repente, o horizonte enegreceu e uma inesperada tempestade desabou. Trovões eclodiam, ininterruptos, bombardeando nossos ouvidos; relâmpagos desenhavam no céu formas horripilantes, que víamos, assustados, pelos vidros da janela. A professora fechou a cortina, acendeu a luz da sala onde nos reuníamos em roda, e tentou nos acalmar, enquanto galhos de árvores se estatelavam na rua ao bramir da ventania. A luz tremeu uma vez, outra, e na terceira se apagou. Vou procurar uma vela, disse ela, e então alguém sussurrou, aflito, Ai, meu Jesus! Reconheci a voz de meu amigo e senti o ar que sua mão deslocava, rasgando as trevas à procura da minha - e prontamente a estendi.

Minha mãe se alegrava ao me ver com João. Nós dois nos divertíamos horas a fio com meus automóveis, piões, quebra-cabeças, soldados e índios do Forte Apache, dinheiros e cheques do Banco Imobiliário. E me elogiava, sempre em voz alta, para meus irmãos ouvirem, que eu sabia dividir como um autêntico cristão; afinal, ninguém podia ser feliz sozinho, o paraíso na terra eram as boas companhias. Não me admirou, numa das poucas vezes em que fui à casa de João - era sempre ele quem vinha à nossa -, encontrar em seu quarto brinquedos meus, alguns que eu supunha ter perdido: um avião de guerra, um carro de polícia, o trem elétrico. Ao me ver repentinamente ali, ele deu de ombros e me chamou para brincar na rua, como se aqueles brinquedos não tivessem para ele o valor que eu sabia ter. Não que eu os quisesse de volta, João é quem desejava ocultá-los de mim. Mas não me aborreci, eu sabia que nada pode ser dado se já não é do outro. E era eu ganhar uma bicicleta nova para ceder a ele a minha velha, sem hesitar em trocá-las no caminho e deixá-lo saborear algo que me alegrava possuir só para lhe oferecer. Era sobrar papel-alumínio, com o qual minha mãe encadernava meus livros, para igualmente encadernar os dele. Era soar o sino do recreio para sentarmos num banco, e eu dar a  ele o meu lanche e assistir à sua voracidade, ao seu jeito de comer, ruminante, os maxilares se movendo com vigor, quando então parecia um homem, e só voltava a ser menino se eu olhasse para suas mãos pequenas, seus pés balançando sem tocar o chão, seus cabelos revoltos ao vento. Era chegar o inverno para que eu admirasse meus agasalhos sobre seu corpo, vivendo o susto de me ver nele - água para seu batismo -, e não foram poucas as ocasiões em que menti, afirmando não me servirem mais para que pudessem vestir João. Era chegar o sábado para irmos juntos à banda e corrermos até o suor escorrer pelas nossas faces em fogo, e depois nos deitarmos na grama, o coração como um bumbo, trovejando, e ele transbordar seus silêncios, e eu gastar todas as moedas que ganhava em pipocas, beijus, amendoins, refrigerantes e tudo o mais que eu podia comprar para agradá-lo.

Na juventude, tive plena certeza de que João era o senhor absoluto de minha amizade. Passávamos horas em mesas de bar, eu pedindo com satisfação a marca de cerveja que ele apreciava, concedendo-lhe sempre a regalia de encerrar as nossas noites à hora que lhe fosse conveniente. Numerosas vezes o levei cambaleante para casa, atravessando a névoa da madrugada, enquanto ele prometia, aos brados, que haveria de ser importante para o mundo, sem se importar de já o ser para mim. Foi o tempo de urdir devaneios, fabricar os fios para tecermos o nosso futuro, emaranhar-nos na meada de nossas crenças ingênuas e viver o alumbramento que a descoberta do corpo feminino nos proporcionava. Como touros enfurecidos, saíamos às ruas, em busca da costela que nos faltava, experimentando uma garota e outra, convictos de que ocupavam o nosso vazio, até começarem a nos doer, mostrando o seu duvidoso encaixe. Rompíamos manhãs, perfurávamos tardes, desvirginávamos madrugadas, confidenciando um ao outro as nossas aventuras amorosas. Chegamos a partilhar, em épocas distintas, a mesma jovem. Eu a namorei primeiro, ou foi Madalena quem se meteu ao meu lado em nossa ciranda. Mas, depois de alguns meses, ela preferiu seguir João, como um apóstolo, e só me restou ouvi-lo contar, em detalhes cruéis, as suas vivências com Madalena. Constrangia-me que ele soubesse o quanto eu havia me dado a ela e o pouco que ela lograra receber de mim. Eu renascera em Madalena, mas João a possuíra, e ela, certamente pelo gosto de ser possuída, morreria por ele, apesar das pedras que meu amigo lhe atirava, sobretudo, se eu estivesse por perto. Mais tarde ele a abandonou: Madalena era apenas uma ermida, e João queria oficiar a sua missa numa catedral.

Comecei a me preparar para o vestibular, seguindo o exemplo de meus irmãos que cursavam faculdade em cidades vizinhas e, de tanto eu insistir, meu pai obteve no cursinho em que me matriculara uma bolsa de estudos para João. O diabo do mundo nos tentava com suas maravilhas e nos atiramos aos livros com a obstinação dos peregrinos. Não nos bastava viver entre margens de rio; queríamos lançar redes no oceano, enfiar nas mãos dos incrédulos os cravos de nossa vitória. E, como eu me empenhasse em demasia nos estudos, quase sem lazer, meu pai, temendo que o excesso fosse um obstáculo para eu atingir meu intento, oferecia-me às vezes o carro para dar uma volta. Se não saía com nenhuma garota, João ia comigo. Eu o deixava dirigir pelas ruas afastadas do centro, mas ele não se satisfazia plenamente, porque desejava se exibir à luz esfuziante das avenidas. Foi quem mais festejou quando meu pai me deu um Fiat no dia em que entrei na faculdade. Empenhou-se em me embriagar, estendendo-me a todo instante o cálice da glória, e em me raspar os cabelos, obrigando-me a dar uma face e depois a outra para escrever o nome da faculdade na qual eu entrara. Meu coração hesitava, queria disparar com a alegria do triunfo, mas se continha, receoso de que tanta satisfação o magoasse. Na semana seguinte, saiu o resultado de seu exame e foi a minha vez de vazar de felicidade ao descer o dedo pela folha do jornal e materializar seu nome na lista dos aprovados. Armei uma festa para ele, e, como acontecera dias antes comigo, João oscilava entre o sol daquela certeza e as nuvens de inquietude: a faculdade era pública, mas ele também teria de se mudar para a capital, e trinta moedas não bastariam para sustentá-lo. Calma, meu amigo, eu lhe disse. E lembrei das nossas aulas de catecismo, Não cai um fio de cabelo sem que Deus não queira. Ele respondeu, amargo, Já é hora de Deus transformar as pedras de meu caminho em pães.

O milagre aconteceu. Meu pai alugou uma quitinete em São Paulo e João foi morar comigo. o que agradou especialmente minha mãe; ela se sentia segura, achava que, junto a ele, eu enfrentaria melhor os perigos da metrópole e teria ao meu lado um guardião. Abnegado, meu pai conseguiu uma aposentadoria para a tia de João e ela, mensalmente, passou a lhe enviar algum dinheiro para que comprasse seus livros. O mais, que não era muito, eu lhe dava. Apetecia-me repartir o meu pão com ele, multiplicar em dois o meu peixe.

Vivemos quatro anos metidos nos bancos da universidade, nas salas pulguentas dos cineclubes, nas pistas enfumaçadas dos inferninhos, nos corpos rijos das mulheres que nos amaciavam a fúria libidinosa, nos botecos imundos onde transformávamos vinho em água. Muitos conhecidos vinham a mim, reivindicando o posto de escolhidos, mas João era o amigo que nenhum superaria em meu coração.

Quando estávamos para colar grau, surgiu Marta e o arrebatou com sua sensualidade voraz, sua beleza saturnina, seu rico pai - o dedo que faltava à mão de João. Não tardou para Marta engravidar e se desentender com o pai que não aprovou sua união com meu amigo e a deserdou. Eles se casaram em dezembro e no sorriso de João havia uma linha de contrariedade que só minha alma podia soletrar. Na gritaria de seu silêncio, ele desafiava Deus. Providenciei um jantar para os noivos, convidando uma dúzia de colegas, e comemoramos as suas bodas. Eu me sentia feliz em entregá-lo a ela, julgava-me um bem-aventurado e seguia as palavras de Cristo: Quem quiser ganhar a vida perdê-la-á; mas quem quiser perdê-la por mim, tudo ganhará. Dei a ele todas as minhas economias para que pudesse ter uma lua-de-mel decente, embora não a de seus sonhos, e pagar adiantado três meses de aluguel de um modesto apartamento no centro da cidade, que eu encontrara para o casal.

No ano seguinte, João começou a trabalhar como trainee numa multinacional, eu me encaixei numa empresa, e seguimos a vida. Quando a criança nasceu, ele me convidou para batizá-la e, nesse dia, eu soube que meu amigo vivia cheio de dívidas, e no universo de seus credores não havia espaço para o perdão. Eu planejava vender meu carro e fazer um curso nos Estados Unidos, já comunicara o plano à minha família, mas vendo João em apuros, agradeci a Deus a oportunidade de servi-lo. Consumei o negócio e dei o dinheiro apurado a ele, inventando a meu pai, cuja situação financeira declinava, que haviam me roubado o carro e eu não renovara apólice do seguro.

Atirei-me ao trabalho e às mulheres, vaguei de corpo em corpo, em busca de minha Eva e, enfim, quando a encontrei, tinha um bom emprego e me casei. Vieram os filhos. Eu e João quase não nos víamos. Nem precisava: meu sangue repousava em seu cálice, seu rosto de menino reinava em minha memória. Sobreveio um período de silêncio, nossos encontros se espaçaram, até que entre eles não cabiam dias, mas longos anos.

Meu pai morreu, os bens que deixou motivaram uma disputa feroz entre meus irmãos, com os quais rompi relações. De repente, o progresso que eu fazia no mundo profissional cessou e me vi desempregado. No início não me preocupei, acostumara-me a pouco, mesmo nos tempos de abundância. Mas, com o passar dos meses, percebi que não tinha a quem recorrer. Eu estava acuado, como João na tarde em que a luz acabou, a mão estendida em busca de ajuda. Então vi nos classificados do jornal que uma importadora de azeite necessitava de um gerente e meu perfil atendia às exigências. No dia da entrevista, quando a porta se abriu, dei inesperadamente com ele, como que saindo da sombra das mangueiras para me salvar. Foi um momento divino para mim. Mas não para ele, como notei depois. João parecia estar há muito à minha espera, como naquela manhã no quintal da vizinha, as pedras na mão para derrubar a minha e a sua manga. Abraçamo-nos, longamente, e logo ele me contou a sua via-crúcis, as jornadas que enfrentara para construir o seu tão almejado mundo, até o último lance, quando o sogro, doente, intimara-o a dirigir os negócios da família. A roda da fortuna girava finalmente para ele. Falamos o que é comum nesses reencontros e, a uma pergunta sua, contei o que se passava comigo. Entreguei em suas mãos o meu espírito, convicto de que ele se reconhecia em mim. Mas, após relembrar vários episódios de nossa vida, como se recapitulando os atos de minha paixão, ele disse que meu currículo chegara quando já se encerrara o processo de seleção e não podia interferir a meu favor. Senti a boca seca, a garganta esbraseada e levantei para me despedi. Então o telefone tocou e ele atendeu. Alguém o chamava urgentemente. Esperei algum tempo, ouvindo-o gritar feito um demônio e a negociar numa língua que não era a nossa, de meninos. E, como João parecia não ter pressa, fiz-lhe um sinal e saí, sem que me estendesse a mão.


Conto de João Anzanello Carrascoza retirado da coletânea Olhar de Descoberta, Volume 2 Crônica e Conto, Série Literatura em minha casa, Editora Melhoramentos, São Paulo, 2003.

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