quarta-feira, 15 de maio de 2024

É só não tomar conhecimento

Com a escova de dentes na mão, pousa a lagarta verde da pasta sobre as cerdas, e levanta o rosto para o espelho, entreabrindo os lábios em esgar higiênico. Mas no gesto rotineiro a rotina se rompe, e não é a si mesmo que vê. Outro é o rosto que, contido no vidro, o encara sem sorriso ou reconhecimento.

Em pânico, querendo segurar-se na objetividade dos atos práticos, abre o espelho, porta do armarinho do banheiro. E eis que no reverso, costumeiro como sempre, seu rosto espera, de lábios entreabertos, que ele comece a escovar os dentes.

Corre a água sobre a escova levando os últimos restos de pasta. E enxugando a boca com a toalha, ele pensa que o fato afinal não foi tão grave, um susto apenas. Bastará deixar a porta aberta, ignorando o outro, para que tudo continue como antes.


Texto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

sábado, 11 de maio de 2024

Apascenta (19)

 "Apascenta as minhas ovelhas." - Jesus. (JOÃO, 21:17.)


Significativo é o apelo do Divino Pastor ao coração amoroso de Simão Pedro para que lhe continuasse o apostolado.

Observando na Humanidade o seu imenso rebanho, Jesus não recomenda medidas drásticas em favor da disciplina compulsória.

Nem gritos, nem xingamentos.

Nem cadeia, nem forca.

Nem chicote, nem vara.

Nem castigo, nem imposição.

Nem abandono aos infelizes, nem flagelação aos transviados.

Nem lamentação, nem desespero.

"Pedro, apascenta as minhas ovelhas!"

Isso equivale a dizer: - Irmão, sustenta os companheiros mais necessitados que tu mesmo.

Não te desanimes perante a rebeldia, nem condenes o erro, do qual a lição benéfica surgirá depois.

Ajuda ao próximo, ao invés de vergastá-lo.

Educa sempre.

Revela-te por trabalhador fiel.

Sê exigente para contigo mesmo e ampara os corações enfermiços frágeis que te acompanham os passos.

Se plantares o bem, o tempo se incumbirá da germinação, do desenvolvimento, da florescência e da frutificação, no instante oportuno.

Não analises, destruindo.

O inexperiente de hoje pode ser o mentor de amanhã.

Alimenta a "boa parte" do teu irmão e segue para adiante. A vida converterá o mal em detritos e o Senhor fará o resto.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

A Angústia das Savanas

Uma das tantas teorias sobre o começo da civilização é a da angústia do pênis exposto. Quando os primeiros hominídeos desceram das árvores e foram viver na savana, umas das consequências de andarem eretos e terem que se espichar para pegar as frutas foi que seus órgãos sexuais ficaram expostos ao escrutínio público. Antes de darem às fêmeas, ou aos mulherídios, a chance de organizarem uma sociedade de acordo com a sua observação da novidade e determinarem que os mais potentes teriam o poder - o que inviabilizaria qualquer tipo de hierarquia baseada na inteligência e, principalmente, na antiguidade, além de decretar o fim da linhagem dos pintos pequenos, que nunca se reproduziriam -, os machos tomaram providências, começando por tapar suas vergonhas. A civilização começou pelas calças, ou o que quer que fosse a moda de tapa-sexos nas savanas. E tudo que veio depois - a linguagem, o fogo, a roda, a escrita, a agricultura, a indústria, a ciência, as nações, as guerras, todas as afirmações masculinas que independem do pinto - foi, de um jeito ou de outro, uma extensão das primeiras calças. Um disfarce, um estratagema do macho para roubar da fêmea o seu papel natural de guiar a espécie escolhendo o reprodutor que lhe serve pelas suas credenciais mais evidentes, e não pelas suas poses ou poemas. Toda a nossa cultura misógina vem do pavor da mulher que quer retomar seu poder pré-histórico e, não sendo nem prostituta nem nossa santa mãe, nos tirar as calças. Todo o nosso drama milenar foi resumido num pequeno auto admonitório: Yoko Ono seduzindo John Lennon e  desfazendo uma idílica ordem fraternal, quase destruindo um mundo. E o que é supervalorização da virgindade e a estigmatização civil do adultério, como constam na lei brasileira, senão uma tentativa de garantir que a mulher só descubra o tamanho do pênis do marido quando não pode fazer mais nada a respeito? Continuaríamos vivendo a angústia das savanas.

Independentemente das teorias, a virgindade é um tema para muitas divagações. Ninguém, que eu saiba, ainda examinou a fundo, sem trocadilho, todas as implicações do hímen, inclusive filosóficas. Já vi o hímen - que, salvo grossa desinformação anatômica, não tem  qualquer outra função biológica a não ser a de lacre - descrito como a prova de que o Universo é moralista. E, levando-se em conta a dor do defloramento e mais as agruras da ovulação e do parto em comparação com a vida sexual fácil e impune do homem, também é misógino. Mas em comparação com o que a mulher, historicamente, sofreu num mundo dominado por homens e seus terrores, o que ela sofre com a Natureza é pinto. Com trocadilho.


Texto de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro Sexo na Cabeça, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2002.

domingo, 5 de maio de 2024

A Secretária

Procuro um documento de que preciso com urgência. Não o encontro, mas me demoro a decifrar minha própria letra, nas notas de um caderno esquecido que os misteriosos movimentos da papelada pelas minhas gavetas fizeram vir à tona.

Isso é que dá encanto ao costume da gente ter tudo desarrumado. Tenho uma secretária que é um gênio nesse sentido. Perdeu, outro dia, cinquenta páginas de uma tradução. 

Tem um extraordinário divinatório, que a leva a mergulhar no fundo baú do quarto da empregada os papéis mais urgentes; rasga apenas o que é estritamente necessário guardar mas conserva com rigoroso carinho o recibo da segunda prestação de um aparelho de rádio, que comprei em São Paulo em 1941. Isso me fornece algumas emoções líricas inesperadas: quem não se comove de repente quando quando está procurando um aviso de banco e encontra uma conta  de hotel de Teresina de quatro anos atrás, com todos os vales das despesas extraordinárias, inclusive uma garrafa de água mineral? Caio em estado de pureza e humildade; tomar uma água mineral em Teresina, numa saleta de hotel, quatro anos atrás...

Não importa que ela faça sumir, por exemplo, minha carteira de identidade. Afinal estou cansado de saber que sou eu mesmo; não venham lembrar essa coisa, que me entristece e desanima. Prefiro lembrar esse telefone de Buenos Aires que anotei, com letra nervosa em um pedaço de maço de cigarros, ou guardar com a maior gravidade esse bilhete que diz: "Estive aqui e não te encontrei. Passo amanhã. S." Quem é esse "S." ou essa "S." e por que, e onde e quando procurou minha humilde pessoa? Que sei? Era, afinal, uma criatura humana, alguém que me procurava. Lamento que não estivesse em casa. Espero que eu tenha tratado bem a "S", que "S." tenha encontrado em mim um apoio e não uma decepção - e que ao sair de minha casa ou de meu quarto do hotel tenha murmurado consigo mesmo - "o Rubem é um bom sujeito".

Há papéis de visão amarga, que eu deveria ter rasgado dez anos antes atrás ; mas a mão caprichosa de minha jovem secretária, que o preservou carinhosamente, não será a própria mão da consciência a me apontar esse remorso velho, a me dizer que devo lembrar o quanto posso ser inconsciente e egoísta? Seria melhor talvez esquecer isso; e tento me defender diante desse papel velho que me acusa do fundo do passado. Não, eu não fui mau; andava tonto; e pelo menos era sincero.

Mas para que diabo tomei tantas notas sobre a produção de manganês - e por que não mandei jamais esta carta tão afetuosa, tão cheia de histórias e tão longa a um amigo distante?

Meus arquivos, na sua desordem, não revelam apenas a imaginação desordenada e o capricho estranho da minha secretária. Revelem a desarrumação mais profunda, que não é de meus papéis, é de minha vida.

Sim, estou cheio de pecados; e quando algum dia for chamado a um tribunal, humano ou celeste, para me julgar, talvez a única prova a meu favor que encontre à mão seja essa pequena nota com um PG a lápis e uma assinatura ilegível que atesta que - se respondi com frieza a muita bondade e rasguei com ingratidão ou esquecimento algum bem que me fizeram - pelo menos, Senhor, pelo menos é certo que saldei corretamente a nota de lavagem de um terno de brim à lavanderia Ideal, de Juiz de Fora, em 1936... E esta certeza humilde me dá um certo consolo.


Crônica de Rubem Braga retirado do livro 200 Crônicas Escolhidas - As melhores de Rubem Braga, Editora Record, 9ª Edição, Rio de Janeiro, 1993.

sábado, 4 de maio de 2024

Não Somente (18)

 "Nem só de pão vive o homem." - Jesus. (MATEUS, 4:4.)


Não somente agasalho que proteja o corpo, mas também o refúgio de conhecimentos superiores que fortaleçam a alma.

Não só a beleza da máscara fisionômica, mas igualmente a formosura e nobreza dos sentimentos.

Não apenas a eugenia que aprimora os músculos, mas também a educação que aperfeiçoa as maneiras.

Não somente a cirurgia que extirpa o defeito orgânico, mas igualmente o esforço próprio que anula o defeito íntimo.

Não só o domicílio confortável para a vida física, mas também a casa invisível dos princípios edificantes em que o espírito se faça útil, estimado e respeitável.

Não apenas os títulos honrosos que ilustram a personalidade transitória, mas igualmente as virtudes comprovadas, na luta objetiva, que enriqueçam a consciência eterna.

Não somente claridade para os olhos mortais, mas também luz divina para o entretenimento imperecível.

Não só aspecto agradável, mas igualmente utilidade viva.

Não apenas flores, mas também frutos.

Não somente ensino continuado, mas igualmente demonstração ativa.

Não só teoria excelente, mas também prática santificante.

Não apenas nós, igualmente os outros.

Disse o Mestre: - "Nem só de pão vive o homem."

Apliquemos o sublime conceito ao imenso campo do mundo.

Bom gosto, harmonia e dignidade na vida exterior constituem dever, mas não nos esqueçamos da pureza, da elevação e dos recursos sublimes da vida interior, com que nos dirigimos para a Eternidade.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Retrato do artista quando adulto

Poesia em forma de pessoa, Chico Buarque encarna os requisitos da obra poética: emoção, economia de palavras e agudo senso estético. Dentro dele faz muito barulho. Mas quem o conhece sabe que ele é quase silêncio, disfarçado de tímido, como quem observa o mundo espantado com o milagre da vida. Entre amigos, o vozeirão grave atropela as sílabas, como se temesse a gagueira inexistente, e Chico fala de tudo e de todos, sem poupar irreverência. Entre estranhos, os olhos verdes brilham enigmáticos, luzeiros inefáveis, a boca tapa a fervura d'alma, o sorriso, entre maroto e contido, exibe as teclas de piano entre o sim e o não.

Diante do olhar canibal dos fãs, quase que Chico olha para trás, convencido de que não é com ele. Dane-se a cabeça idolatrada, mas ele se sabe de barro e sopro, exilado dessa imagem que a admiração alheia, avara, projeta na imaginação fantasiosa de quem, um dia, numa frase musical, viu-se arrebatado e identificado, no amor ou na dor, no sentimento indelével que o poeta captou, fraseou e cantou.

Francisco Buarque de Holanda teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos 60. Seresteiro precoce, cercado de livros e cordas na rua Buri, em São Paulo, trocou a régua e o compasso, da faculdade de Arquitetura, pela toada intimista da Bossa Nova, trazida ao lar pelo cunhado João Gilberto. Todavia, neste carioca branco de alma negra, o morro impregnou-se mais forte que a praia. Desconfio de que, no fundo, Chico lamenta não ter nascido na Estação Primeira de Mangueira, como todo o talento que Deus pôs nos pés e na magia dos brasileiros que fazem do futebol a arte de dançar em torno de uma bola.

Em 1964, a ditadura ameaçou os padres dominicanos de expulsão do Brasil. Prejudicados pela conjuntura política, apelamos aos amigos. No Teatro Paramount, em São Paulo, promovemos o espetáculo beneficente Avanço, no qual Chico Buarque, cantor de plateias estudantis, fez sua estreia para o grande público. Havia também baianos muito novos, o irmão de Bethânia do Carcará, um ex-bancário chamado Caetano, todo timidez, e um amigo dele, ex-funcionário da Gessy-Lever, um tal de Gilberto Gil...

Nasciam ali os trovadores que iriam desencantar a ditadura, embora forçados ao exílio e submetidos à censura. Deram-se as mãos na Passeata dos 100 Mil, em torno da igreja da Candelária, no Rio e, mais tarde, Roda Viva, de Chico comprovou que teatro é espelho. Mirem-se nas Mulheres de Atenas. Rostos macabros não gostaram de se ver refletidos. Quebraram o espelho, assim como os algozes de Antônio Maria acreditavam que jornalistas escrevem com as mãos...

Chico foi para a Europa, no autoexílio inevitável. Fez espetáculos em favor dos exilados e deu às suas letras um tom mais profético que romântico. Aqui é o seu lugar e, de retorno ao Brasil, ousou quebrar o cálice e fazer ouvir a sua voz, convencido de que amanhã será outro dia. Foi para São Bernardo do Campo apoiar, com Vinícius os metalúrgicos que, liderados por Lula, teimavam em sonhar um Brasil diferente.

Filho de famílias que há 100 anos conspiram em favor da democracia, Chico não é um militante, desses que exibem carteirinha de partido e atestado de tendência ideológica. Nem "militonto", que pula de palco em palco acreditando que, com o seu violão, vai salvar a pátria e acabar com a fome no Brasil. Mas é um cidadão da utopia, impregnado da virtude da indignação. Esteta, tem a medida das coisas. Nessa arenga nacional, conhece exatamente o seu canto e quando faz noite, sua voz suave, de timbre acentuado e agudo, quase feminino, traduz paixões e feridas rupturas e arroubos. Porque canta o que sentimos sem encontrarmos palavras, expressão agônica de nossos espíritos atordoados ou enamorados. E tece em letras os estorvos que impedem a vida de ser a arte de sonhar acordado.

Chico é ele e suas mulheres - Marieta, Sílvia, Helena e Luiza. Quarternura. Ele é feito de detalhes - o que, aliás, importa em nossas vidas. Sua casa é um espaço democrático, onde candidatos, desde que progressistas, expõem suas ideias e acolhem críticas e sugestões dos artistas. Na Gávea, vi seu pai fazer 76 anos e cantar Sassaricando em latim. Aos 50 anos, para ele o tempo não passou na janela. Ele se fez geração. Na arte e no palco, transmuta-se em Carolina, numa dessas mulheres que só dizem sim, seresteiro, poeta, e cantador, olhos nos olhos, ele se chama Mané e dobra a Carioca, sobe a Frei Caneca e se manda pra Tijuca na contramão. Aliás, sempre andou na contramão. Nunca esteve à toa na vida e, cantando coisas de amor, alia-se à esperança dessa gente sofrida que quer despedir-se da dor. Larápio rastaquera, pai paulista, avô pernambucano, bisavô mineiro e tataravô baiano, ele gostaria de ser o mais exímio jogador de sinuca. Falso cantor, Chico é apenas um artista brasileiro.

Saibam que poetas, como os cegos, podem ver na escuridão. Nessas tortuosas trilhas, sofre de pânico cênico, admira Fidel Castro e, viciado em futebol, jamais se "miamizou". Quando no Rio, cidade submersa, os escafandristas e sábios decifrarem o eco de suas cantigas, amores serão sempre amáveis e cantores, duráveis. Porque a alma brasileira vai reter Chico para sempre.

Se do barro o Criador fez alguém com tanto amor, foi Chico.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).