segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

O Amazonas e a Amazônia

    Um dia, as índias que viviam perto de um rio cuja nascente provinha de uma lágrima da Lua ficaram seriamente zangadas com seus maridos.

    Eis como tudo aconteceu:

    Os índios, segundo uma lei imemorial, foram caçar: trouxessem ou não algum animal, a cada vez, assim que voltavam, ordenavam à mulher que lhes desse imediatamente algo para comer. Mas elas que não pensassem em lhes colocar sob o nariz aqueles beijus comuns, senão eles começavam a dar altos brados, e as infelizes não paravam de chorar.

    Isso vinha acontecendo desde sempre, até aquela manhã na qual, quando os índios saíram da aldeia, Toenza, a esposa do próprio chefe, convocou as outras índias para um Conselho.

    E esse Conselho foi um verdadeiro sucesso, pois a mulher do chefe entendia desses assuntos melhor do que o marido.

    - Por que, durante todo o dia, pilamos mandioca para fazer farinha, preparamos as flechas e as lanças, consertamos as cabanas, tratamos de cozinhar, enquanto os homens não fazem coisa alguma, e à tarde não trazem nada, nem um papagaio? Sabemos de tudo isso muito bem, e sem eles estaríamos bem mais felizes do que com eles...

    As outras a aprovaram com entusiasmo, pois aquelas palavras vinham do coração. Por isso, a mulher do chefe malhou o ferro enquanto ele ainda estava quente.

    - Escutem o meu plano. Hoje à noite, quando os homens voltarem, encontrarão preparadas as melhores comidas e as bebidas de que mais gostamos. Depois, dormirão bem depressa, e então nós tomaremos os arcos, as zarabatanas, as flechas e as redes deles e fugiremos...

    - Mas para onde? Seja onde for, eles nos encontrarão..., murmurou uma jovem índia, que acabava de se casar.

    - Conheço um lugar que todo mundo desconhece. E, caso nos encontrem, com certeza levaremos a melhor sobre qualquer intruso, respondeu, segura de si, a mulher do chefe.

    As outras não fizeram mais perguntas; já estavam bem felizes de pensar que, no final de tudo aquilo, logo não teriam mais nada a ver com os homens.

    Naquela noite, quando os caçadores retornaram ao acampamento, como de costume, quase de mãos abanando, seus olhos se arregalaram de espanto e, já de longe, as bocas se encheram d'água.

    Diante das fogueiras, as índias temperavam um filhote de pecari, peixes e ovos de tartaruga. Havia beiju de mandioca espalhado por toda parte em abundância e as moringas estavam cheias do delicioso e capitoso álcool de coco.

    Os índios começaram a comer com formidável apetite e suas esposas, todas sorridentes, lhes traziam carne e mais carne, e não esqueciam de servir bebida. Elas próprias se mantinham respeitosamente um pouco afastadas, e não comiam sequer uma migalha da comida.

    Não demorou muito para que, por todo acampamento, ecoassem roncos satisfeitos.

    Era o que Toenza esperava. A um sinal dela, as mulheres se apossaram das armas dos índios e do seu curare, o temível veneno que eles passavam na ponta das flechas; carregaram as redes de dormir às costas e, em fila indiana, saíram do acampamento em silêncio.

    Durante dias e noites, a mulher do chefe as guiou através da floresta; elas atravessaram um grande rio e chegaram ao sopé de rochedos selvagens.

    - É aqui, nas Montanhas das Virgens! Aqui estaremos ao abrigo dos homens! - declarou Toenza. E elas sabiam muito bem do que Toenza estava falando.

    Os índios, abandonados por suas mulheres, logo encontraram o rastro delas e tentaram, pela doçura ou pela força, convencê-las a voltar com eles. Mas as mulheres, como feras, os obrigavam a fugir, ameaçando-os com suas flechas envenenadas.

    Montanhas das Virgens porque nenhum homem pode chegar lá. E, por causa do nome de Toenza, que foi sendo deformado, hoje se chamam Amazônia, e o grande rio em cujas margens aconteceu esta história se chama Amazonas.


Texto retirado do livro Alguns Contos e Fábulas - Contos da América do Sul, Volume 4. Tradução de Thereza Christina F. Stummer, Paulus Editora, São Paulo, 2002.

A dama pé de cabra

    Conta a lenda que nada detinha D. Diogo Lopes, infatigável caçador: nem neve, nem o frio, nem a chuva. Em seu cavalo branco, corria pelos montes em busca de javalis, veados, lobos e ursos.

    Certo dia, perseguindo um javali no monte agreste, ouviu um lindo cantar. Levantou os olhos e viu uma mulher de extraordinária beleza: cabelos louros, face gentil e mãos brancas como a neve. Aproximou-se e perguntou:

    - Senhora, quem sois vós, que logo me cativaste?

    Seu riso puro e cristalino saltitava nas dobras do vento.

    - Sou uma dama tão nobre como tu.

    O coração de D. Diogo parecia querer estourar de amor dentro do peito.

    - Se casares comigo, senhora, terás as minhas terras e os meus castelos.

    - Deles não preciso. Guarda tuas terras, que delas precisas para cavalgar.

    - Que queres, então, para que sejas minha?

    Fingindo-se envergonhada, ela baixou os olhos e, quando respondeu, sua voz fez com que D. Diogo perdesse de vez a cabeça.

    Só tens que me jurar uma coisa: jamais tornar a fazer o sinal-da-cruz que tua mãe te ensinou desde pequeno.

    Apaixonadíssimo, já não conseguia resistir aos encantos da mulher e tratou de sossegar a própria consciência. "As benzedeiras não me servem para nada mesmo. Na próxima oportunidade mato duzentos mouros e meus pecados serão perdoados."

    E, enfim, exclamou:

    - Será como queres. Faço tua vontade. Arrebatou-a nos braços e partiram velozes para o castelo.

    À noite, quando se deitaram, notou que a dama tinha pés de cabra. Em compensação seu corpo era esbelto e esguio, sua pele escorregadia como seda e ele não perguntou mais nada.

    O casal viveu feliz por alguns anos e dessa união nasceram dois filhos: um menino, chamado Inigo, e uma menina, chamada Sol.

    D. Diogo amava a mulher e os filhos. Não trocava nada por um bom lume e um jantar no aconchego da família.

    Certa noite, conversavam alegremente sentados à mesa quando D. Diogo reparou que o seu melhor cão de caça dormitava junto à lareira. A cachorra, que pertencia à bela dama, farejava o aposento muito inquieta.

    D. Diogo pegou um pedaço de osso com bastante carne e atirou-o ao seu cão, gritando:

    - Silvano, precisas te alimentar. À cachorra não dou nada, porque não para quieta.

    O cão satisfeito dispunha-se a saborear o osso quando, de repente, soltou horrendo uivo de dor. A cachorra abocanhara-lhe a garganta.

    D. Diogo correu imediatamente até ele, que tinha o pescoço coberto de feridas.

    - Meu Deus, nunca vi uma coisa assim, parece coisa de belzebu! - E, esquecendo-se do juramento feito há anos, benzeu-se repetidas vezes.

    Foi o suficiente: a mulher começou a berrar, como se a estivessem trespassando com um ferro em brasas.

    Assombrado, D. Diogo olhou para ela e o que viu foi um animal horrendo. De boca torta e olhos revirados, erguia-se no ar, levando debaixo do braço esquerdo a filha Sol. Soltou um último grito e desapareceu por uma fresta junto ao teto.

    Só então D. Diogo compreendeu: sua mulher era o diabo em forma de gente! Desconsolado, partiu para a guerra. Foi lutar contra os mouros, no sul da Espanha.


Uma lenda portuguesa adaptada por Sylvia Manzano. Retirado da Revista Nova Escola, Março de 1994. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


Esta lenda foi contada por Alexandre Herculano, um grande escritor português. É uma história muito antiga, do tempo em que a Península Ibérica estava dividida entre cristãos ao norte e mouros ao sul. Nesse tempo, toda a gente acreditava em demônios, magia, forças do bem e do mal. O diabo resistia a tudo, menos ao sinal-da-cruz.

O Filho de Luísa

    Uma boa história pode começar de qualquer maneira. Esta começa com uma quitandeira da Bahia. Chamava-se Luísa. O sobrenome deixo para dizer depois.

    Luísa era pequena, bem negra e tinha lábios roxos - diferente de quase todo mundo, que tem lábios cor-de-rosa. Outra coisa: a maior parte dos negros da Bahia, naquele tempo,  era escrava. Luísa não. Por quê? Não sei. Quando começou esta história, ela já era livre - e nada, nada sabemos dela antes disso.

    Luísa também não era cristã. Era uma problema? Para as autoridades era. Tinham receio de negros que não fossem cristãos. "Se acreditam em outros deuses", pensavam, "podem pedir ajuda a eles e esses deuses vão ajudá-los contra nós. É melhor, aqui na Bahia, só permitir o deus cristão.

    Para Luísa, porém, ter outra religião não era problema. Ela achava que todo mundo pode ter a sua. Quanto mais religiões e deuses, melhor. Quem estava certo nesse ponto? Não sei. Queria apenas contar uma história e já estou enredado em discussão.

    Luísa tinha outra estranheza. Quer dizer, que se considerava estranheza. Namorava negros e brancos. Não olhando a cor, se apaixonava dia sim, dia não. Tinha uma queda especial por sujeitos de mão cabeluda.

    - Beleza não põe mesa - dizia para as amigas.

    - Tem mão cabeluda? É meio caminho andado.

    Uma tarde veio à quitanda um certo Oliveira. Luísa o primeiro que viu foram as mãos. Servia. Uma hora que Luísa saiu do balcão para pegar uns tomates, Oliveira sapecou-lhe um beliscão no pescoço. Luísa respondeu com uma obrada que jogou Oliveira no chão. Era a paquera da época. Naquele mesmo dia começaram a namorar firme. Aí não tev mais beliscão nem ombrada.

    Não há mal que sempre dure. Nem bem. Luísa fazia parte de uma sociedade secreta de negros malês. Eram negros de religiões não-cristãs, que preparavam uma revolta pela liberdade de todos os escravos da Bahia.

    Religiões não-cristãs, na verdade, eram duas: a muçulmana e o candomblé. Luísa era muçulmana e simpatizava com o candomblé, de forma que era a pessoa ideal para o movimento. Em fevereiro de 1835, estourou a revolução dos malês. Luísa foi presa e comeu o pão que o diabo amassou. Castigada com duzentas chibatadas, teve hora que ela desejou ter morrido. Pensou que ia apodrecer na cadeia. Mas, um belo dia, quem veio soltá-la? Oliveira. Ele era branco e foi ao juiz com uma conversa comprida: ia se responsabilizar pela quitandeira e coisa e tal.

    Luísa, é claro, ficou muitíssimo agradecida. Foram andando pela rua e ela contou uma coisa para ele: estava grávida e tinha sido sorte não perder a criança. Oliveira também contou uma coisa: era jogador profissional de cartas. Estava vendo aquele chapéu de pissandó, aquela medalha de São Judas Tadeu de ouro trinta quilates? Tinha ganho no sete-e-meio.

    Quando fez nove meses, nasceu o menino. Batizaram-no Luís, mas não vou dizer o sobrenome. Era negro fosco como Luísa e tinha a testa alta e o nariz fino como Oliveira. Não sei se disse que ele era português. Oliveira gostava sinceramente de Luísa.

    Então, dando sorte no jogo, abriu uma loja para ela vender doces de alfenim. Luísa continuava agradecida. Jurou que não ia mais se meter em revolução. Em troca, Oliveira jurou que ia procurar trabalho honesto e largar os ases e os curingas.

    Nenhum dos dois cumpriu o prometido. Um dia estourou nova revolução dos malês. Luísa combateu e voltou a ser presa. Oliveira arrumou uma dívida grande no jogo. Aí, pegou o filho:

    - Vou te apresentar a um velho amigo, no cais da Ribeira.

    Quando se aproximaram desse amigo, falou: "Esse é meu filho, que te falei". Piscaram o olho. O homem, zaque! Botou algemas no garoto.

    - Pai, manda ele me soltar! - pediu Luisinho.

    Oliveira foi escapulindo de mansinho:

    - Perdão, meu filho. Mas foi tua mãe que mandou te vender. Você ainda vai ser feliz.

    Luisinho, acorrentado no porão, chorou até o Rio de Janeiro.

    Os anos se passaram. Do Rio, Luís foi vendido pra São Paulo. Subiu a pé, acorrentado pelo pescoço, a Serra do Mar. Era inteligente e determinado como a mãe - que, agora posso dizer, se chamava Luísa Mahin. O sofrimento da escravidão não o destruiu. Uma das suas tarefas era estudar com os filhos do senhor.

    Aproveitou para aprender o que eles tinham preguiça de aprender. Se tornou rábula, que quer dizer advogado sem diploma. Começou provando no tribunal que tinha direito à liberdade, pois era filho de mulher livre. Em seguida, iniciou - junto com outros estudantes e jornalistas - a Campanha Abolicionista. Conseguiu, ele sozinho, libertar mais de mil escravos, provando na Justiça que eles tinham direito à liberdade porque tinham sido escravizados depois da proibição do tráfico. Seu nome e sobrenome: Luís Gama.

    Um dia, voltou à Bahia e procurou o pai. Tinha morrido. Procurou a mãe. Não acreditou nunca que ela o tivesse vendido. Luísa tinha partido. Mas o nome de Luís Gama ficou, para sempre, na História do Brasil, como uma figura pioneira da Campanha Abolicionista.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Dezembro de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Bonsucesso dos Pretos

    No interior do Maranhão tem uma vila que se chama Bonsucesso. Ninguém, porém, a chama assim. Todos dizem Bonsucesso dos Pretos. Por quê? Vou contar.

    Há longo tempo, debaixo da escravidão, uma moleca desagradou ao senhor. Não sei o nome dela. Vamos chamá-la de Felipa, um nome que se usava muito antigamente. Gozado essa coisa de nome... No tempo do Onça, por aqui ninguém se chamava Simone, Mônica, Karen ou Roberta. Era Felipa, Anacleta, Jacinta, Jovina...

    Aborrecido, o senhor usou seu triste direito de castigar. Mandou levarem Felipa à floresta. Fosse amarrada num pé de pau, até morrer de fome e de sede. Isso se as onças e cobras não fizessem o serviço primeiro.

    A mãe da escravinha se ajoelhou aos pés do dono:

    - Perdoe, perdoe... - gemia.

    - Eu prometo ser sua escrava para o resto da minha vida.

    - Escrava você já - respondeu ele.

    - Não prometa o que não pode cumprir. Levante daí.

    A própria esposa dele se meteu:

    - Perdoa dessa vez. Dá outro castigo. No mato ela morre.

    - É pra morrer. Você é mulher, mas pode entender uma coisa: estamos cercados de escravos. Se não formos duros, eles não nos respeitam. Se não nos respeitam, estamos fritos. De brancos aqui só temos eu, você e o padre. Já pensou? É negro pra todo lado.

    Pois o padre também pediu:

    - Faça como Nosso Senhor. Perdoe.

    O dono fitou a batina com desprezo:

    - Nosso Senhor não viveu aqui, no meio dessa gente. Cuide de suas orações, que é melhor.

    O feitor passou a corda nos pulsos de Felipa. E saiu com ela. Andou, andou, até achar uma clareira:

    - Aqui está bom. Já verás, negra do diabo.

    Passada uma semana o dono chamou o feitor:

    - Vá ver a negrinha. Confirme se já morreu.

    O malvado viu os urubus e pensou: "O serviço acabou".

    Qual! Felipa continuava amarradinha. Mas inteira. Ao seu lado uma gamela de frutas e outra de água.

    - Quem te deu isso? - foi gritando.

    - Minha madrinha.

    - E tu lá tem madrinha? - e chutou as gamelas.

    Passada outra semana, o dono ordenou de novo:

    - Vá lá ver.

    Outra vez o feitor achou as gamelas. Dessa vez com favos de mel. Chutou tudo, como da primeira vez. Rogou uma praga:

    - Que este moleque que te protege o carregue o demo!

    - Não foi moleque. - respondeu Felipa.

    - Foi minha madrinha.

    O dono deixou passar um mês:

    - Vá buscar o esqueleto.

    Felipa estava melhor do que antes. Gordinha.

    O dono não acreditou:

    - Você não está me mentindo? Traga a sujeita aqui. Ou vai você pro tronco.

    Quando o feitor chegou, Felipa já estava solta. Achou estranho. Bateu o mato. Se houvesse alguém, ele achava. Nada. Botou Felipa na frente e veio pra fazenda. Imaginem a surpresa do povo quando cruzaram o terreiro. Na presença do amo, Felipa não baixou os olhos.

    - Se você tem parte com o capeta, vá dizendo - ordenou ele.

    - Quem te deu comida e água?

    - Minha madrinha.

    - Faz de conta que eu acredito. Quem é tua madrinha?

    - O senhor mande ver.

    - Vamos fazer o seguinte. O feitor volta lá contigo. Se encontrar essa tua madrinha, você está livre. Se não...

    O feitor afiou o facão e lá foram. No lugar em que Felipa ficou amarrada, estava agora uma Nossassenhorazinha de dois palmos de altura. Desconfiado, o feitor enganchou a imagem nas costas e lá veio.

    - Como prometi - falou o senhor -,  você está livre.

    Puseram a santinha numa capela com altar de madeira lavada. No outro dia quando foram ver, cadê ela? O senhor apertou Felipa.

    - Mande ver no pé de pau onde o senhor me prendeu.

    Trouxeram a imagem de volta. No outro dia, ela voltou ao mato. E assim diversas vezes. Na décima vez, o senhor trancou a imagem num cofre de ferro que comprou em São Luís. Era do Reino, que pra ele o ferro da terra não valia nada.

    A violência atraiu desgraças. Uma cobra mordeu o feitor e ele bateu as botas. Deu praga no algodoal e se perdeu tudo. A senhora teve erisipela e ficou com perna de elefante. Cosme, o quilombola, passou por perto da fazenda e vinte escravos fugiram pra se encontrar com ele. (Bom, esta última coisa foi desgraça somente pro senhor. Pros que fugiram foi felicidade.)

    O padre, que estava ali pra impedir desgraças, deu um conselho: botasse a imagem num prato, largasse no rio. Onde ela parasse, é que ela queria ficar. A senhora obrigou o marido a fazer promessa: se ficasse boa, libertava dez escravos. Pelo rio abaixo, a Nossassenhorazinha parou onde hoje é Bonsucesso dos Pretos, porque ali vivem até hoje, os descendentes do povo de Felipa.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Novembro de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


Bonsucesso dos Pretos é um dos inúmeros quilombos contemporâneos existentes no Brasil, espalhados por vários Estados. A origem dessas comunidades negras fechadas se perde na história da própria escravidão e das rebeliões escravas. Como são raros os registros sobre o surgimento dessas comunidades, em geral uma lenda ou um mito de criação explica tudo. Em Bonsucesso, a lenda é um exemplo típico de catolicismo popular, muito comum em todo o Brasil. Hoje, essas terras são protegidas pela Constituição como propriedade dos descendentes de escravos que nelas vivem. 

Episódios Transitórios

    Nas raízes profundas dos distúrbios e doenças que afligem a criatura humana, encontramos causas de natureza espiritual, muitas vezes escamoteadas, escondidas sob os escombros de diversos fatores degenerativos.

    Nunca será demasiado repetir-se que o Espírito é sempre o responsável pela carga de mazelas que lhe pesam no transcurso da reencarnação.

    Gerador de atos reprocháveis no passado, recolhe as suas consequências no presente, a se manifestarem em variadas expressões, com o objetivo de contribuir para o despertamento do equivocado ou para proporcionar-lhe recuperação dos erros.

    Seja como for, cada Espírito reencarna, na Terra, atrelado aos seus valores transatos, que lhe constituem motivo de ascensão, através dos sofrimentos e das realizações de enobrecimento.

    Simultaneamente, os desafetos então gerados não silenciam a animosidade no olvido ou no perdão, especialmente se se trata de pessoas vingativas, perversas ou atrasadas moralmente.

    Graças a isso, iremos encontrar, na gênese profunda de muitas enfermidades, especialmente naquelas denominadas mentais, a presença da obsessão como fator desencadeante do problema ou como agravante a complicar-lhe o quadro.

    Todos os pacientes que estertoram nas enfermidades físicas e mentais são, por sua vez, endividados que se enquadram nos severos dispositivos das Leis Divinas, a fim de que se retemperem na luta e se liberem das culpas que conduzem.

    Nesses indivíduos devedores existem matrizes que facilitam o intercurso psíquico com os seus parceiros de outrora, hoje em renhida oposição, e por cujo meio lhes descarregam as energias deletérias que terminam por desarmonizar-lhes o corpo, a mente e perturbar-lhes a alma.

    Não negando a gênese estudada pelos nobres pesquisadores terrestres, na fauna microbiana, nos fenômenos psicopatogênicos e outros, anotamos estes que são de natureza cármica.

    Não desconhecemos que, nas crises de identidade, nos conflitos, nos complexos e em muitas outras alienações mentais, estão embutidos os resultados das conturbações psicossociais, socioeconômicas, sociomorais; todavia, a percepção mediúnica em distonia responde pela vinculação com Entidades perturbadoras e ociosas, que ainda se comprazem na ignorância do dever e no desrespeito à harmonia que deve existir em todos e em toda parte.

    O processo terapêutico de recuperação depende principalmente do enfermo, a partir do momento em que este se resolva por mudar de atitudes moral e mental em relação à vida, a si próprio e ao seu próximo.

    O direcionamento mental e moral correto proporciona o reequilíbrio que, a pouco e pouco, se instala nos painéis do psiquismo e nos órgãos do corpo físico.

    Posteriormente, ou de forma simultânea, a orientação evangélica aos desencarnados que perseveram nas más inclinações auxiliá-los-á a despertar para a realidade na qual se encontram, alternando-lhes, por vontade própria, o comportamento.

    Sem desconsiderarmos os tratamentos compatíveis, nas áreas da ciência médica, o esforço pessoal e o cultivo do otimismo como a ação do bem, são de relevantes resultados para a cura necessária.

    Diante de qualquer alteração negativa no ritmo da tua saúde, faze um balanço dos teus atos e busca o fator desencadeante do processo enfermiço.

    Se o não encontrares nos dias atuais, conscientiza-te que vem de ontem...

    Ninguém sofre sem razão justificável, pois que, se tal ocorresse, estaríamos diante de uma aberração da justiça de Deus.

    De imediato, propõe-te à higiene moral e mental abrindo-te ao amor, que gera saúde, e à confiança em Deus, que a sustenta, prosseguindo em harmonia, durante o tratamento que se te faça necessário.

    Recorda que o estado ideal e normal do ser é o de saúde, sendo a doença, o desequilíbrio, o desconforto, apenas episódios transitórios a caminho da recuperação.


Retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis,  Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A Pérola Fosforescente

    O Rei dos Dragões vivia, muito tempo atrás, bem distante daqui, no mar Ocidental. Ele tinha uma filha muito linda e ajuizada, que só lhe dera satisfação e alegria. Mas agora, com quase dezoito anos, começava a lhe dar preocupações. O rei dos dragões queria lhe dar um esposo, as ela teimava em não querer se casar. Um pretendente era magro demais, o outro muito gordo, o terceiro muito tolo, e assim por diante.

    Um dia o Rei, que não aguentava mais todas aquelas recusas, disse à filha:

    - Minha filha querida, diga-me afinal: que tipo de homem você deseja para esposo?

    - Não quero um homem rico, nem um alto funcionário; o que desejo é um rapaz honesto e corajoso - respondeu a donzela, corando um pouco.

    O Rei dos Dragões ordenou então a seus conselheiros que começassem a procurar um noivo como a sua filha queria. O general Caranguejo apresentou-se, mas a moça não o aceitou; o ministro Rã veio lhe propor alguém, mas a princesa só fazia sacudir a cabeça em sinal de recusa, até que, finalmente, o general Lagosta veio anunciar, todo glorioso, que havia encontrado o noivo ideal: um órfão, chamado A-eul, que morava não muito longe dali, no golfo; pobre, sim, mas com um coração de ouro e que não tinha medo de nada.

    Um noivo assim não podia agradar exageradamente ao Rei dos Dragões. Ele mandou chamar a filha e lhe disse:

    - Minha filha, é verdade que esse noivo não me agrada nem um pouco. Quem sabe como é de fato essa famosa coragem dele? Além disso, ele não tem sangue real, e não convém à nossa família.

    Mas a moça cismou que era aquele o noivo que ela esperava. Fugiu para o seu quarto, recusando-se a sair de lá, e começou a se lamentar e a derramar tantas lágrimas que isso fez o nível do mar subir.

    O Dragão, seu pai, não sabia o que fazer. Mandou chamar os seus conselheiros mais fiéis e conversou demoradamente com eles. Finalmente o general Lagosta teve uma ideia.

    Naquela noite A-eul, que morava não muito longe de lá, bem na curva do golfo, teve um sonho. Viu surgir um ancião de cabelos brancos, que lhe disse:

    - A-eul, vá depressa até a margem do rio, pois a sua noiva o espera lá.

    Naquele instante, acordou e contou o sonho ao irmão, que dormia na mesma cama. Mas aquele irmão mais velho tinha um temperamento invejoso. Ele esfriou depressa o entusiasmo do caçula:

    - O que está pensando? Como se uma noiva pudesse estar esperando por você! Quem iria aceitá-lo como noivo, pobre como você é? Durma, é melhor.

    A-eul voltou a dormir e o irmão aproveitou para se levantar sem fazer barulho e ir depressa até a beira do rio. Mas A-eul acordou e sentiu o lugar vazio ao seu lado. Lembrou-se então da visão que tivera e, para tirar tudo a limpo, também correu até o rio. Seu irmão saíra primeiro, mas ele foi tão rápido que os dois chegaram ao mesmo tempo.

    A água do rio estava calma e parecia adormecida e sua superfície irradiava uma luz prateada que se espalhava ao longe. A lua estava suspensa bem alto no céu, brilhante como uma moeda de ouro. Nas ondinhas murmurantes que vinham tocar de leve na margem banhava-se uma linda jovem e seus longos cabelos flutuavam ao sabor das ondas que a embalavam.

    - Bela donzela, você me aceita como seu marido? - perguntou-lhe ousadamente A-eul.

    - Não, ele não; escolha a mim! - exclamou depressa o irmão mais velho.

    - Eu me casarei com aquele que me trouxer a pérola fosforescente - declarou a jovem.

    - E onde se encontra essa pérola? - perguntaram, ao mesmo tempo, os dois irmãos.

    - Está escondida no palácio do meu pai, o poderoso Rei dos Dragões. Vou dar a cada um de vocês um grampo que lhes permitirá acalmar as águas agitadas do mar - disse ela.

    E enquanto falava, tirou dos cabelos dois grampos de prata, deu um a cada um dos irmãos e desapareceu, mergulhando nas águas do rio.

    Juntos, os dois irmãos se inclinaram diante do lugar onde a princesa dos Dragões tinha desaparecido e se puseram a caminho na mesma hora. Um deles tomou emprestado do vizinho um cavalo veloz e foi a galope para o mar Ocidental. A-eul vestiu o seu grande chapéu de palha, calçou suas sandálias de fibra de cânhamo e se pôs a caminho ao longo do rio, rumo ao Oriente.

    Era longo o caminho até o mar Ocidental do Rei dos Dragões, um caminho difícil, cheio de emboscadas assustadoras. Depois de passar muitos dias galopando, o mais velho dos irmãos foi parar num vilarejo totalmente invadido pelas águas, com todas as suas casas inundadas; as pessoas tinham de se movimentar de barco. O cavaleiro perguntou o que tinha acontecido e lhe responderam:

    - Faz dez dias que fortes chuvas fizeram o rio sair do leito, e agora, apesar do bom tempo, ele não quer voltar para lá; pelo contrário, a água continua subindo. Que coisa horrível! Parece que existe um jeito de fazer o rio voltar ao seu leito: batendo nele com a vara de ouro que se encontra no palácio do Rei dos Dragões.

    - É justamente para lá que estou indo - respondeu, todo orgulhoso, o irmão mais velho. - Vou trazer-lhes essa vara de ouro.

    E A-eul, que estava a pé, chegou pouco depois àquele mesmo vilarejo inundado. Ao saber do desastre que havia atingido aquele infeliz povoado, também prometeu trazer a vara de ouro do palácio do Rei dos Dragões, se porventura conseguisse obtê-la. Em seguida, retomou o seu caminho e, finalmente, chegou à beira do mar Ocidental. Mas, e o que foi que viu? Seu irmão, que tinha saído bem à sua frente, lá estava, parado, olhando a água que rugia, as ondas que arrebentavam como se estivessem furiosas.

    - Não tenha medo! - disse A-eul ao irmão e atirou com força nas águas fervilhantes o grampo que a princesa lhe dera.

    No instante em que o grampo tocou na primeira onda, a água se acalmou como que por encanto e abriu-se um caminho no mar, para permitir que os dois irmãos penetrassem no reino das águas.

    No palácio, foram recebidos pelo Rei dos Dragões em pessoa. Os dois irmãos lhe apresentaram educadamente o pedido: desejavam levar a pérola fosforescente para obter a mão de sua filha.

    - Sei o que os traz aqui - disse-lhes o Rei. - E vou realizar o desejo de vocês. Mas, neste reino das águas, a lei só permite que um mortal leve consigo um único objeto, apenas um tesouro. Portanto, escolham bem!

    Depois de falar assim, o Rei os levou até a câmara dos tesouros. Quando lhes abriu a porta, os dois irmãos prenderam a respiração, de tão admirados. As paredes eram todas incrustadas de pedras preciosas, o chão era feito de jade, e por onde se olhasse só se viam mil cintilações de diamantes, de ouro e pérolas. No centro de todo aquele esplendor, um brilho superava todos os outros: o da pérola mais rara, da pérola que brilha na noite, a pérola fosforescente!

    A-eul contemplou aquela maravilha, que poderia lhe valer a mão da sedutora princesa, mas, infelizmente, não podia levar a pérola! Na aldeia inundada o aguardavam, cheias de esperança e confiança, as pessoas a quem ele havia prometido, se pudesse, levar a vara de ouro que faria o rio retornar ao seu leito. Sem hesitar mais, foi para ela que se dirigiu, pedindo educadamente ao Rei:

    - Se Vossa Majestade permitir, levarei esta vara de ouro.

    No mesmo instante, o irmão mais velho se precipitava sobre a pérola fosforescente, apossando-se dela e por nada deste mundo a soltaria!

    - Levem cada um de vocês o seu tesouro. Talvez ele lhes traga a felicidade! - disse o Rei dos Dragões, com um estranho sorriso.

    Com isso, os dois irmãos saíram juntos do palácio.

    Quando chegaram à margem, o mais velho pulou para a sela e retomou a galope o caminho de volta. Não demorou a chegar ao vilarejo inundado, onde foi logo cercado pelos seus infelizes habitantes.

    - A vara de ouro, - gritaram - trouxe a vara de ouro?

    - Não, o Rei dos Dragões não deixou que a trouxesse - respondeu o jovem, que incitou o cavalo a continuar o seu caminho.

    Nesse meio-tempo, A-eul vinha vindo. Estava a pé, teve de caminhar muitos dias e noites, mas finalmente chegou ao vilarejo, onde a água subia cada vez mais.

    - Meus amigos, - gritou de longe - eu lhes trouxe a vara de ouro, a abençoada vara de ouro que me foi dada pelo Rei dos Dragões!

    Enquanto falava, debruçou-se sobre a água e começou a chicoteá-la com a vara de ouro. E - milagre dos milagres! a água começou imediatamente a recuar, a descer para o seu leito, onde retomou tranquilamente o seu curso de antes. O reconhecimento da população não tinha limite.

    - Como poderemos lhe retribuir tamanho favor, nosso jovem amigo e protetor?

    Tinham lágrimas nos olhos, por estarem em tal estado de pobreza que nenhum deles tinha nem mesmo um pequenino presente para dar ao jovem. Mas um deles viu, no lodo deixado pelo rio, uma grande concha. Abrindo-a, descobriu uma pérola negra, toda suja, mas afinal de contas uma pérola.

    - Rapaz, não temos nada apropriado para lhe dar, mas lhe pedimos que leve esta pérola como uma lembrança nossa.

    A-eul recebeu a pérola, agradeceu, e retomou seu caminho, dizendo com seus botões que a pérola que a princesa queria não era uma pobre pérola como aquela. Apesar de tudo, o sentimento de ter praticado uma boa ação o consolava.

    Nesse meio-tempo, o irmão mais velho já havia chegado ao golfo, onde encontrara a princesa. Inclinando-se profundamente diante dela, disse:

    - Princesa, trago-lhe a pérola fosforescente. Peço-lhe, então, que seja a minha mulher.

    - Volte à noitinha - respondeu ela. - Somente  a noite pode decidir se esta que você me traz é realmente a pérola fosforescente ou apenas uma pérola comum.

    Quando veio a noite, o irmão mais velho voltou à beira do rio com seu tesouro. Mas - oh, espanto! - a pérola brilhante, a pérola de oriente luminoso, não emitia o menor raio na escuridão da noite.

    - A pérola que você me trouxe não é a verdadeira - zangou-se a princesa.

    - Mas isso é impossível - disse zangado o irmão mais velho.

    Pegou a pérola da mão da princesa, para vê-la melhor, e, de repente, a pérola estourou. Na palma da mão do moço havia agora apenas uma gota de água.

    Alguns dias depois foi a vez de A-eul chegar à beira do golfo. Ele disse logo à princesa:

    - Peço-lhe que não me queira mal, princesa, mas não pude trazer-lhe a pérola do palácio real.

    - E o que traz aí, amarrado na ponta do seu lenço? -  perguntou ela curiosa.

    - Não é grande coisa, princesa. Apenas uma pérola bem comum, que me foi dada por uma boa gente, a caminho daqui.

    - Dê-me a pérola - disse a princesa, que a pegou e a colocou delicadamente na mão dele, que ela lhe pedira que estendesse.

    A-eul arregalou os olhos como duas rodas de carroça. Sim, era a formosa pérola, a pérola que ilumina a noite, a pérola fosforescente! Parecia que a luz viera pousar na sua mão. Dela saíam raios luminosos, que iam se perder na distância, fazendo brilhar toda a superfície do golfo.

    A princesa dos Dragões pegou então a pérola e a atirou para o alto, bem alto nos ares. A-eul olhava o que estava acontecendo, não acreditando no que via, todo estupefato. Acima de suas cabeças, ergueu-se nos ares um palácio encantado e no seu ponto mais alto cintila a pérola fosforescente, que parece indicar-lhes o caminho.

    A princesa segurou A-eul pela mão, dizendo com voz suave:

    - Olhe lá, no alto, é o seu coração bom e corajoso que está resplendendo!

    E o levou consigo para o seu palácio aéreo.


Um conto chinês; texto retirado do livro Alguns Contos e Fábulas, Volume 3; tradução de Thereza Christina F. Stummer, Paulus Editora, São Paulo, 2002.

A Casa da Flor

    No ano de 1888 acabou a escravidão no Brasil. Muita gente que era escrava na cidade foi embora pra roça. E muita gente que era escrava na roça foi embora pra cidade.

    Era ótimo viver livre.

    Seu Benevenuto, por exemplo, foi para São Pedro D'Aldeia, no Estado do Rio de Janeiro, perto da formosa Cabo Frio. Tinha economizado um dinheirinho e comprou uma terrinha. Os filhos dele, que andavam espalhados, também foram para lá. Eram sete. Como depois ele teve mais cinco, ficaram doze.

    Trabalhavam em quê? Os filhos homens, na roça: milho, café, abóbora, batata... As mulheres, mais a mãe, fazendo panelas e potes de barro para vender. Antes do sol nascer você já as via queimando os objetos numa coivara de lenha.

    Um dos filhos se chamava Gabriel. Parecia com os irmãos em várias coisas. Tinha, como os outros, os olhos bem redondos, os beiços cheios, a testa alta. Era diferente, porém, numa coisa. Em quê? Com 4 anos de idade, Gabriel não falava.

    - É mudo - dizia seu Benevenuto.

    - Coitado do meu filho - suspirava a mãe. - Sem poder se explicar, vai sofrer muito.

    Aos 5 anos, quando ninguém mais esperava, Gabriel falou. Mas pouco, como se as palavras fossem de ouro. Só a madrinha compreendia:

    - Deixa estar. Gabriel não fala pra economizar a inteligência. Quer dizer: ele fala pra dentro.

    Quando fez 20 anos, Gabriel teve um sonho. Uma voz lhe dizia: "Gabriel, anda construir uma casa só pra você".

    Sem pressa, começou a juntar dinheiro pro cimento, a pedra e a areia lavada. Fez os alicerces, subiu as paredes, dispôs o telhado. Inventou uma maneira de recolher água da chuva, uma espécie de funil de telhas. Não era marceneiro, mas fabricou sozinho os móveis. Uma cama, uma mesa e um "altar de livros". Era assim que ele chamava a estante.

    Gabriel era agora trabalhador de salina, fábrica de sal, junto ao mar, onde a água cercada fica presa para evaporar. O que sobra é o sal. Trabalho duro. Curte a pele. Quebra a pele dos pés e das mãos. Cega.

    Mesmo cansado, Gabriel acendia um lampião para trabalhar à noite na construção da sua casa. Não tinha sábado nem domingo.

    A casa ficou pronta. Tanto esforço e era uma casinha de nada. Quem passava cá embaixo na estrada dizia: "É de boneca".

    Foi quando ele teve um novo sonho.

    Sonhou que dormia. Batiam à porta. Foi atender e não viu ninguém. Tornou a se deitar. Com pouco, novas batidas. Gabriel veio abrir e de novo não havia ninguém. Quando retornou à cama, lá estava uma mulher sentada. Vestia um vestido amarelo, vaporoso. Tinha um exagero de brincos e colares, mas um jeito suave. Se abanava com um leque cujo perfume tomava conta do quarto.

    - Quem é você? - ele quis saber.

    - Acho que você me conhece - ela respondeu. - Vim pra lhe dar uma ordem, Gabriel. Enfeite essa casa. Ela é só sua, mas não é bonita. Dia seguinte era feriado. Mal tomou café, Gabriel saiu atrás de enfeites. Só achou cacos. Naquele tempo, pobres não tinham nada inteiro. Quando os ricos deixavam quebrar alguma coisa, ou se cansando dela, jogavam no lixo, os pobres, que eram livres há pouco tempo, pegavam.

    Pois Gabriel enfeitou sua casa com cacos. Cacos de telhas, de ladrilhos de azulejos... Faróis de automóveis, lâmpadas queimadas, bibelôs mutilados... Seixos da beira do rio... Pedaços de espelhos, correntes partidas, ralos de chão, mariscos, tampinhas de lata, garrafas... Andando na praia, achou um osso estranho. Pegou.

    - É de baleia - garantiam os vizinhos.

    - É de dragão - afirmava ele.

    - Dragões só existem na imaginação - insistiam.

    - E então? Não é existir? - seu Gabriel encerrou a conversa.

    A casa de Gabriel começou a ser chamada "Casa da Flor". As paredes eram cobertas de flores. Flores de pedra, de cacos. Vinha gente de longe espiar. Se admiravam que um operário de salina, filho de seu Benevenuto, que foi escravo, fizesse coisa tão bela. Ele olhava as pessoas com mansidão. Não se incomoda de explicar:

    - Eu faço isso por pensamento e sonho.

    Vai que um dia apareceu por lá uma professora da cidade. Uma especialista em arte popular. Olhou, olhou... Puxou conversa com seu Gabriel:

    - Seu Gabriel, isso não tem igual no Brasil. Pode ter na Europa, nos Estados Unidos. Por que uma casa de cacos transformados em flor? Que ideia foi essa?

    Gabriel estava cego. O trabalho nas salinas criara nos seus olhos uma cortina que impedia a passagem da luz.

    - Olha, dona Amélia. Eu fico muito satisfeito trabalhando com os cacos porque as coisas modernas, coisas novas, ninguém vai ver. A gente entra nas cidades grandes, aquilo lá está tudo moderno, tudo bem organizado, tudo custa dinheiro. As pessoas veem a força da riqueza... Mas aqui elas gostam de ver porque é a força da pobreza.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Outubro de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


A história de Gabriel Joaquim dos Santos é uma alegoria à própria história do negro brasileiro, que após a abolição teve que colar os pedaços de sua cultura (das suas crenças, da sua personalidade) e construir algo novo, com o que sobrara dos 500 anos de senzalas. Gabriel nasceu em 1892 e morreu 92 anos depois. Aos 85 anos teve seu trabalho descoberto. Criou-se também uma Sociedade de Amigos da Casa da Flor, que tenta preservar a obra de Gabriel.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Projetos Iluminativos

    As sombras densas, que parecem teimar, em predomínio na consciência cultural da Terra, lentamente cedem lugar às claridades novas, que ensejam a compreensão profunda do homem na sua realidade intrínseca e gloriosa, a um passo da sua destinação triunfal.

    As estrelas luminíferas do saber ampliam-lhe os horizontes da existência, propiciando-lhe o encontro da sua identidade em perfeita consonância com a finalidade transcendente da sua experiência corporal.

    Espírito eterno, o homem se encontra, na atualidade, diante do grande e definitivo desafio existencial.

    Equipado pelo conhecimento, dispõe dos recursos adequados para solucionar os aparentes e antes perturbadores enigmas, que se lhe apresentavam em complexas expressões destruidoras.

    Com a contribuição valiosa do Espiritismo, ele descerra o véu da ignorância e compreende os objetivos da vida, estabelecendo programas que não se encerram no túmulo, por saber que o corpo é um instrumento transitório para alcançar a meta feliz a que está destinado.

    Antes, discordando da fé religiosa, diante das conquistas da inteligência e da razão, logra, na atualidade, colocar em perfeito equilíbrio estes valores, a serviço de uma fé que pode ser demonstrada no laboratório das experiências paranormais.

    Para este logro, Allan Kardec realizou a saga monumental de colocar a inteligência e os recursos da Ciência do seu tempo a serviço da investigação da sobrevivência, do interrelacionamento entre os Espíritos e os homens, da reencarnação e da Justiça Divina, em palavras últimas, da existência do Mundo Espiritual.

    Seu trabalho ímpar abriu espaço para novas investigações na área paranormal, que vieram apenas confirmar as suas excelentes conclusões.

    Lentamente, à medida que se aperfeiçoaram os métodos de investigações, foram criadas ciências com objetivos de aprofundar a sonda da pesquisa no organismo do ser, constatando que o homem não é somente a constituição celular, mas um complexo no qual o ser real é preexistente ao berço e sobrevivente à tumba.

    Ciência experimental, por sua vez, o Espiritismo faculta a contribuição das diversas ciências que se associam para a grande realização do ser imortal.

    A fim de dar prosseguimento ao elevado mister de libertar o homem das suas paixões primitivas, fazem-se necessários projetos iluminativos que atualizem os conceitos imortalistas, em face da extraordinária contribuição das doutrinas científicas contemporâneas.

    Penetrar o bisturi da investigação honesta no campo das revelações espíritas é o compromisso que assumiram os novos obreiros do Senhor, que reencarnaram com o objetivo de dar prosseguimento aos trabalhos que, momentaneamente, ficaram interrompidos com a sua desencarnação, relativamente em tempos próximos passados...

    Os anteriores investigadores psíquicos dos fenômenos paranormais, em variadas áreas, abriram portas, antes, para a comprovação do ser integral - Espírito, perispírito e corpo - agora se encontrando, de retorno, com os instrumentos da informação e da fé espírita, para enfrentar com segurança o cepticismo, a crueldade, a indiferença, a desonestidade e os seus fâmulos, que corrompem o indivíduo e perturbam a marcha do progresso da Humanidade.

    Apesar de adestrados para as tarefas do momento, surgem-lhes graves dificuldades que devem ser superadas, constituindo desafios-problemas. O amor ao ideal e a abnegação, que eliminam a presunção e o despotismo, dar-lhes-ão forças e valor moral para os enfrentamentos externos e a autos-superação da inferioridade e dos atavismos negativos.

    Serão caracterizados pelo espírito de serviço, pelo interesse sadio dos resultados dos trabalhos, colocados no campo de batalha por escolha pessoal, guardando a certeza do triunfo que lhes chegará.

    Não se farão discutidores ferrenhos e insensatos, porquanto o seu é o tempo para o estudo dos dados e das investigações.

    Não se imporão, porque reconhecem que o labor exige discernimento, maturidade psicológica e elevação de propósitos.

    Não se agastarão com os acusadores, nem desanimarão com os aparentes insucessos, que se lhes constituirão estímulo para o prosseguimento dos tentames.

    Abertos ao amor, planejam um mundo melhor para eles mesmos e para a sociedade em geral, porque reconhecem que estes são dias de transição, e a seleção dos Espíritos se faz natural, preparando o Mundo de Regeneração.

    Em vez de um cataclismo que ceife as vidas e aniquila a sociedade e a Terra, dá-se, neste momento, a renovação do planeta, graças à qualidade dos Espíritos que começam a habitá-lo, enriquecidos de títulos de enobrecimento e de interesse fraternal.

    Os campeões da maldade, os mercenários a serviço do crime, os fomentadores da guerra e da hediondez, os traficantes de vidas e de drogas alucinantes cederão espaço no orbe para os construtores do Bem e da Verdade em nome do Amor.

    Até esse momento, cabe, aos verdadeiros obreiros do Senhor, a tarefa de autoiluminação e constante investigação, que demonstre e confirme a excelência da vida, num comportamento ético pela verdade, que favorece com estímulos superiores a eclosão e a vigência do amor nos corações.

    Lutas e sofrimentos surgirão, não poucas vezes, não somente no campo externo de atividades; mas, e, sobretudo, na vida íntima, onde se hominizam os grandes inimigos da evolução espiritual.

    Reconfirmando a imortalidade e as suas várias expressões, na comunicação dos Espíritos e na reencarnação, estes valores impregnarão a criatura senciente, que alterará o seu comportamento, abraçando os postulados apresentados e vividos por Jesus, instalando-se na Terra o Reino de Deus pelo qual todos anelamos

    Investiguemos, estudemos, discutamos, de mente aberta à verdade, sempre dispostos a abraçar as conquistas da Ciência, realizando a sua aliança com a Religião, e, tornando o Espiritismo a verdadeira ponte entre as duas, divulguemo-lo com ardor, vivendo-o no dia a dia da existência como cristãos legítimos que pretendemos ser.


Texto retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 3ª Edição.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O Presente de Ossanha

    Essa história se passou há mais de cem anos, num tempo em que tudo era possível. Ninguém se espantava com nada

    Num engenho de açúcar viviam dois meninos. Um era filho do dono e se chamava Ricardo. O outro era escravo e tinham esquecido o seu nome. Só o chamavam de moleque. Moleque pra cá pra lá.

    O moleque fora comprado no mercado bem novinho. Seu trabalho ia ser brincar com o filho do dono. Brincar de todo jeito: jogar dama, soltar pipa, rodar arco, que era uma brincadeira muito apreciada naquele tempo... E de cavalinho. Ricardo montava e o moleque era montado. Saíam os dois pelo terreiro:

    - Upa, upa, cavalinho! - gritava Ricardo.

    O dono do engenho olhava aquilo e esfregava as mãos.

    - Esse moleque foi a melhor compra que eu já fiz! Olha o nosso filho, como está feliz!

    Vai que num domingo de manhã, estando de folga, o moleque entrou no mato para pegar passarinho. Ele pegava um pedaço de pau e passava visgo, para o coitado pousar e ficar preso.

    Naquele domingo, porém, o sol já estava no alto e nada.

    - Vou te ajudar - disse uma voz rouca.

    Tinham explicado ao moleque que se ouvisse uma voz rouca longe de casa, tomasse cuidado. Podia ser a onça-gomes, ou o quibungo, ou o ipupiara, ou o joão-do-mato. Essas criaturas horrendas tinham lá suas razões para não gostarem de gente.

    - Quem é você? - perguntou o moleque - Mostre sua cara.

    Quem apareceu foi Ossanha. Usava um cocar e um saiote de penas, mas não era índio. Sua pele era negra, quase azul. Não tinha uma perna e não tinha um olho, perdidos numa briga com Xangô. No começo de tudo, o criador, que se chama Olorum, tinha dado a cada filho uma parte do mundo. Pra Ossanha, a floresta:

    - Você cuida das plantas. Umas servem para comer, outras pra fazer remédio e outras pra enfeitar a casa. Quando alguém precisar, atenda.

    O que fez Ossanha? Guardou as plantas só pra si.

    - Está em falta - mentia, quando alguém o procurava.

    Seu irmão Xangô, quando soube, chamou Iansã, que cuidava dos ventos:

    - Onde já se viu? Dê um castigo pra esse egoísmo.

    Iansã se aproximou como quem não quer nada. Ossanha se distraiu e ela abanou com a saia o horto particular do orixá egoísta. Uma ventania. Quando acabou, as plantas tinham se espalhado pelo mundo.

    É por isso que Ossanha está em todo lugar que tem mato, recolhendo as plantas que Iansã espalhou.

    O moleque, que conhecia a história, não teve medo:

    - Como é que o senhor-senhora vai me ajudar? (Senhor-senhora porque Ossanha é as duas coisas.)

    Tome esse visgo. É da nossa terra. Com ele você vai fisgar um pássaro cora. Já viu um?

    - Não.

    E foi o que aconteceu.

    O pássaro cora era um espanto. Vinha gente de longe apreciar o seu canto. Criadores de pássaros, viajantes, naturalistas, gente de outros países, do governo, da igreja...

    O pássaro do moleque aprendia o que se ensinava. Bastava assoviar uma vez perto da gaiola e ele imitava.

    Começaram a botar preço na maravilha. O moleque recusava. Se aceitasse, teria dinheiro para jogar na cara do seu dono:

    - Olha aqui. Compro minha liberdade. E pode ficar com o troco.

    Mas dizia não:

    - Não vendo. Nem troco por todo o dinheiro do mundo.

    O senhor então partiu pra ameaça:

    - Se não me vender esse passarinho, te arranco a pele!

    O moleque sorria com o canto dos lábios.

    - Se não me vender esta porcaria, te aplico os anjinhos.

    Anjinhos eram uns aneizinhos de ferro para apertar os dedos. Doía como o diabo.

    - Se é uma porcaria, por que nhor quer comprar? - era só o que ele dizia.

    Quando o menino estava de castigo, o cora não cantava.

    Até que um dia o senhor perdeu a paciência. Resolveu vender o moleque pra outro senhor.

    - Vai ser bem longe daqui, que não quero mais te ver na minha frente. Nunca mais ouvir a voz desse passarinho.

    Ricardo, o filho do dono, ficou triste, ficou doente, pediu:

    - Não vende, pai. Há tempos que o escravo sou eu. Eu é que dependo dele pra tudo. Não sei mais brincar sozinho.

    O pai não escutou. Vendeu o moleque.

    O comprador veio buscá-lo à meia-noite. Ricardo estava tão triste que não teve coragem de se despedir do moleque:

    - Ele vai alegre - pensou, pois tem o cora. Eu fico triste, porque não tenho nada.

    No outro dia de manhã, quando se levantou e abriu a janela, o menino Ricardo teve uma surpresa. Do lado de fora tinha uma gaiola pendurada. Assim que viu o menino, o cora começou a cantar.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Setembro de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


De acordo com a mitologia Nagô - povo e cultura africanos da região do Sudão, onde hoje estão Nigéria, Benin, Gana, Senegal, dentro outros, Xangô castigou Ossanha por sua ambição, dispersando as folhas das árvores pelo mundo. Juntando o mito com um conto de José Lins do Rego (Meus Verdes Anos), nasceu O Presente de Ossanha.

Iyami Oxorongá

Iyami Oxorongá é o termo usado para designar as terríveis Ajés, feiticeiras africanas, isso porque ninguém conhece seus nomes reais. Elas são apenas as primeiras "mães" da espécie humana, e são ligadas às origens do mundo.


As Iyami simbolizam o aspecto sombrio das coisas, como a raiva, a inveja, o ciúme, a ambição, a dor, a fome, o caos e o descontrole. Apesar disso, quando são agradadas, podem realizar coisas boas.

Oxorongá é um pássaro africano que emite um som onomatopaico que deu origem ao seu nome. Tradicionalmente, o pássaro representa o poder da feiticeira, pois é ela quem levo os feitiços aos seus destinos.

As Iyami Oxorongá são as "Senhoras da Vida", pois quando cultuadas e reverenciadas são o ventre do mundo, fonte da criação. Quando são esquecidas, lançam toda sorte de maldição e se transformam em "Senhoras da Morte".

As Iyami eram conhecidas como mulheres velhas que possuíam uma cabaça na qual era guardado um pássaro. Por meio de seus feitiços, muitas vezes elas podiam se transformar em pássaros. Sabe-se que apreciam o sangue humano, se reúnem durante a noite nas matas e realizam trabalhos para o mal.

Elas representam os poderes místicos da mulher em seu duplo aspecto - protetor e generoso, perigoso e destrutivo. O caráter duplo das Iyami, de ancestrais e feiticeiras, é importante porque ressalta o papel feminino representado por elas. O conceito africano da maternidade ou mesmo da força espiritual torna as Iyami símbolo da luta e da adaptação entre as forças masculinas e femininas, fundamentais para a manutenção da vida.

As Iyami são as primeiras "mães" da espécie humana e são ligadas às origens do mundo. No princípio de tudo, o casal primordial viva apertado dentro de uma cabaça. Eles se separaram ao brigarem pelo poder. Essa luta representa os dois polos, um construtivo e o outro destrutivo. O mito também representa o jogo de poder entre o masculino e feminino pelo controle da comunidade.

O poder de Iyami é atribuído às mulheres mais idosas, mas também pode pertencer a mulheres mais jovens por herança da mãe ou avós. Uma mulher de qualquer idade pode adquirir o seu poder de forma voluntária ou sem que saiba.

As características de "velhas feiticeiras" está ligada ao conceito de que a sabedoria e o poder só vêm com a idade e com a experiência de vida. Dessa forma, as "Mães Ancestrais", por conhecerem os segredos da vida e por terem vivido muito tempo, podem manipular por meio da magia a vida e a morte.

A mulher na sociedade iorubá possui em si todas as qualidades e poderes de uma Iyami. Em diversas etapas de sua existência ela vive diferentes aspectos desse poder feminino dado pela natureza às mulheres. O poder feminino em seu duplo aspecto (criador e destrutivo) é a síntese da vida e fornece a energia, o axé necessário à continuação da existência na Terra.


Texto retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O Príncipe-Tatu

    Essa história se passou em Minas, no tempo de Tiradentes. Tinha ouro de ar com o pau. E moça bonita assim.

    Vai que um grande minerador estava na janela com a mulher tomando a fresca. Passou um caçador com um tatu às costas. A mulher, que não tinha filhos, cutucou o marido:

    - Ah, quem me dera ter um filho... Mesmo que fosse como aquele tatu.

    Nove meses passados, olha que lhe nasceu um filho. Era um tatu perfeito.

    Foi criado com todo luxo. Capa de seda, botas de Sevilha, chapéu com pena de avestruz. Par ir à missa, cadeirinha nas costas de quatro escravos.

    - Lá vai o príncipe-tatu - diziam nas esquinas.

    Com dezoito anos, o príncipe-tatu chamou o pai de lado:

    - Quero me casar com a filha do conde.

    O conde tinha três filhas e não se importou de dar uma. Obediente, a moça concordou. Pôs uma condição:

    - Meu quarto vai ser todo preto. De luto.

    Foi a maior festa da história de Minas. Veio Isidoro, o mártir, e Chica da Silva, com seu séquito. Terminado o baile, foram os noivos para seus aposentos. O príncipe-tatu ia de cara amarrada. Trancou a porta:

    - Querias que nosso casamento fosse de luto? Pois vai ser agora!

    Pulou em cima da moça e a estrangulou. Na manhã seguinte, mentiu:

    - Foi à cozinha no escuro e rolou da escada.

    Passados alguns anos, o príncipe-tatu mostrou desejo de casar com outra filha do conde. Este, louco para agradar ao ricaço pai do tatu, concordou. Marcado o dia, a moça exigiu:

    - Caso de bom grado. Mas as cortinas, a roupa de cama e o travesseiro serão pretos. De luto.

    A mesma coisa. Durante o baile, o tatu era todo risos. Quando os convidados se foram, trancou a porta e engrossou a voz:

    - Tu não querias luto? Vais ter!

    De manhã, com a cara lavada, mentiu:

    - Se assustou com um rato e despencou da escada.

    A terceira filha do conde, chamada Isolda, pediu ao pai:

    - Quero me casar com o príncipe-tatu.

    O pai primeiro recusou. Tanto porém Isolda insistiu, que lavou as mãos:

    - Sua cabeça é seu mestre. E quem avisa amigo é.

    Deixe estar que Isolda consultara um babalaô. Babalaô é um sacerdote da religião dos orixás. Ele joga búzios, uma espécie de contas, e lê o seu destino pela maneira como os búzios se colocam. Mistérios.

    Quando o príncipe-tatu perguntou como Isolda queria o quarto, ela respondeu:

    - Colorido e alegre.

    Quando ele trancou a porta, ela continuou sorrindo.

    Ao contrário das irmãs, que tinham feito cara de morte. Foi aí que ele tirou o casaco e veio a ser o homem bonito que era.

    Isolda não cabia em si de alegria. Contou às amigas, aos parentes, aos pais do príncipe-tatu. Com pouco, Minas Gerais inteira sabia do segredo do príncipe encantado.

    A mãe do príncipe veio, certa noite, espiar o filho com forma humana. Ele dormia, na calma da sua beleza.

    Ela teve uma ideia:

    - Onde ele guarda o casco?

    - No baú - informou Isolda.

    Acenderam o forno e puseram o casco lá dentro:

    - Assim ele não corre mais perigo de virar tatu.

    O cheiro de osso queimado tomou conta da casa. O príncipe despertou. Correu para a cozinha, com um pressentimento. Abriu o forno. Gemia:

    - O que vocês fizeram? O que vocês fizeram?!

    Com muito esforço, conseguiram acalmá-lo.

    Ele explicou:

    - Faltavam só cinco dias para o encantamento acabar.

    Isolda nada dizia. Chorava. A mãe do príncipe, se achando culpada, coitada, arranhava as paredes com as unhas. Tamanho arrependimento!...

    Lá pelas tantas, o príncipe-tatu se despediu:

    - A partir de hoje, se vocês quiserem me ver, só nas terras de Aruanda.

    Aruanda é o outro nome de Luanda, a capital de Angola. Fica na África, do outro lado do mar. Uma boa parte dos nossos avós veio de lá. Agora, se Isolda e a mãe do príncipe-tatu descobriram onde era, se foram visitá-lo, se ele se livrou para sempre do encantamento... Uma vez fiz essas perguntas à minha avó, que foi quem me contou essa história. Ela olhou pela janela, tirou uma baforada no cachimbo e me respondeu:

    - Ah, isso ninguém sabe...


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Agosto de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


Pertencente ao folclore mineiro, essa história foi aqui recontada pelo autor, da mesma forma que outras histórias pertencentes à cultura branca são incorporadas e recontadas pelos negros do Brasil. A terra de Aruanda é uma referência a Luanda, capital da Angola, vista no Brasil como o lugar post-mortem dos negros que foram para cá trazidos à força. Todos os personagens mencionados são negros e usam títulos de nobreza misturando seus próprios títulos de origem - reis, príncipes - com os da corte branca - condes. Essa mistura e a encenação do papel do branco da classe dominante (que aparece hoje nas alegorias das Escolas de Samba), eram comuns nas Minas Gerais, onde a lavra do ouro permitiu que muitos negros comprassem sua liberdade e passassem a adotar títulos de nobreza, mesmo que informalmente. Para entender mais esse período a que se refere a história, o filme 'Xica' da Silva, com Zezé Motta no papel principal, dá uma ideia estilizada.

Iroko

Iroko é o orixá tradicionalmente representado por uma suntuosa árvore e o guardião das matas. Representa a dinastia dos orixás e ancestrais.


    Iroko é uma árvore africana também conhecida como Rôco, Irôco. É também um orixá cultuado no Candomblé do Brasil pela nação Ketu e, como Loko, pela nação Jêje. Conhecido também como "Tempo", é um orixá muito antigo. De acordo com as lendas, Iroko foi a primeira árvore plantada e, por ela, os orixás desceram à Terra. Outros mitos narram que Iroko foi a única árvore que sobreviveu no planeta após uma grande devastação que aconteceu por causa de uma briga entre a Terra e o Céu.

    Algumas tradições ligam Iroko aos Orixás de Daomé (Nanã, Obaluaê, Oxumarê), e em outras ele é associado a Xangô. O seu culto é cercado de cuidados, mistérios e muitas histórias. Representa a ancestralidade, nossos antepassados. Além disso, é considerado o seio da natureza, a morada dos orixás.

    Para o povo iorubá, Iroko é uma das quatro árvores sagradas cultuadas onde se pratica a religião dos orixás. Representa a ancestralidade, os nossos antepassados, o seio da Natureza, a morada dos Orixás. Ela simboliza também a morada dos espíritos infantis, conhecidos como abiku. Dessa forma, desrespeitar Iroko, a grande e suntuosa árvore, é desrespeitar suas origens, sua própria dinastia e seu sangue.

    Iroko está sempre presente em todas as reuniões dos orixás. Geralmente fica em silêncio em um canto, anotando as decisões que envolvem sua ação. Embora seja um orixás pouco conhecido, toda a criação está sob seus propósitos.

    Governa o tempo e o espaço, o ciclo vital que não muda com o transcorrer da eternidade, as oportunidades que a natureza nos dá. Ele acompanha e cobra o cumprimento do carma de cada ser humano, determinando o início e o fim de tudo. As relações desse orixá sempre se baseiam na troca: um pedido feito, quando atendido, deve ser pago.

    É considerado um orixá raro, ou seja, possui poucos filhos e raramente se manifesta. Ao contrário de grande parte dos orixás, Iroko não costuma "baixar" nas festas de santo. Ele é reverenciado por meio de oferendas à árvore que o representa. No Brasil, diz-se que o orixá habita a gameleira branca. Ficus gomelleira ou Ficus doliaria. Seu dia da semana é quinta-feira e seus adeptos usam colares verde e marrom.


Arquétipo


    O arquétipo de Iroko é o de pessoas eloquentes, inteligentes, competentes, teimosos e generosos. Gostam de diversão e prazeres: dançar, cantar, cozinhar, pintar, comer e beber bem. São líderes naturais e se empenham na palavra dada. Dotados de senso de justiça, são amigos queridos e inimigos terríveis, reconciliando-se com facilidade. Possuem um profundo respeito pela família e sua origem. São exigentes com a palavra dada, cobrando as promessas que lhe são feitas. Na vida cotidiana são extremamente pacientes, pois consideram o tempo o seu maior aliado. No trabalho, são dedicados e, por isso, conseguem impor muito respeito.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.