terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O Leão de Mali

    Esta história me foi contada por Ismail Mamadu, o griô. Ela traz, de forma simbólica, o mito da fundação do reino de Mali, hoje República do Mali, na África Ocidental. País de onde veio grande parte dos antepassados dos brasileiros de hoje - os mandingas. O mito também mostra o sincretismo entre a religião islâmica (os djins são como duendes para o muçulmano) e as crenças tribais (os babalaôs, que eram os guardiões das muralhas e hoje são os adivinhos). Esse mito, como tantos outros de outros povos, trata do conflito entre o homem e seus limites naturais. Concretamente, ele conta como uma tribo, entre tantas outras daquela região, ergueu-se e se sobrepôs às outras, fundando um reino. Um mito semelhante à leda do Rei Arthur, só que faz parte da herança cultural africana. Aconteceu centenas de anos atrás.

    Um búfalo imenso e horroroso assolava as terras de Do, no país dos mandingas. Não se podia ir à fonte sozinho, não se podia dormir sem o fogo aceso e sem sentinelas. O monstro não escolhia idade. Entre uma colheita e outra, matou cento e sete caçadores e feriu setenta e sete! Apareciam estraçalhados no meio da savana, o embornal das flechas vazio.

    Até que vieram de muito longe dois irmãos caçadores, Oulamba e Oulani. Tinham o cabelo fofo como a flor do algodão e seu andar era rápido como o dos filhos da tribo Traoré. Iam atravessar um rio para chegar às terras de Do, quando viram uma velha mendiga.

    - Em nome de Alá, o Todo-Poderoso, me deem um pouco de comida - pediu.

    Eles não tiveram dúvida. Abriram a mochila e dividiram o que tinham. Ela comeu em silêncio. Limpou as mãos e olhou fixamente para eles.

    - Eu sei que vocês vieram caçar o búfalo assassino. Como foram bons comigo, tenho uma coisa a lhes dizer: eu sou o búfalo que vocês estão procurando! Matem-me e vão receber o prêmio prometido pelo rei. Só peço uma coisa.

    - O que é? - perguntaram os dois irmãos.

    - O prêmio é a moça mais linda de Do. Peço que escolham a mais feia de todas.

    Mataram a mulher-búfalo. Ao último suspiro, ela se transformara no horrendo animal. O rei de Do mandou juntar no mercado todas as jovens que havia, algumas de pele macia como o veludo da noite, outras, medrosas como a lua crescente. Iam esquecendo o prometido, quando o irmão mais novo viu uma corcundinha com caroços por todo o corpo. Era tão feia, mas tão feia, que cobria o rosto com um véu de pano grosso.

    - É essa! - disseram ao mesmo tempo.

    O povo de Do teve uma pena enorme dos dois heróis. Eles pegaram Sogolon (assim se chamava ela) pela mão e voltaram para a tribo dos Traoré. Mas qual dos dois se casaria com Sogolon? O babalaô jogou búzios e não encontrou resposta. Resolveram então presenteá-la ao rei de outra tribo mandinga, Naré Maghan. Encontraram-no debaixo de um baobá, à entrada da cidade. Ali sentava toda tarde com seus ministros para atender o povo. Naré Maghan aceitou o estranho presente e mandou marcar as bodas. Nunca se saberá por quê.

    Não demorou a se arrepender. Sogolon não aceitava dormir na mesma cama. Uma noite ele forçou e o corpo dela se encheu de pelos, de cima a baixo. Arranhado, ele se desesperou:

    - Essa mulher não é humana.

    Até que uma noite um djim - anjo da guarda dos muçulmanos - o visitou em sonho. Naré Maghan acordou Sogolon.

    - Meu djim me explicou tudo. Você entrou na minha vida para ser sacrificada aos deuses. Levanta que vou buscar minha faca.

    Sogolon desmaiou de medo. Mais tarde, quando voltou a sí, estava grávida.

    O filho de Sogolon e Naré Maghan se chamou Sundiata Mari Djata. Babalaôs de todo país foram chamados para dizer que futuro teria. Uns não viram nada, outros preferiram calar.

    Sundiata não era feio como a mãe. Mas tinha um problema: com 3 anos não aprendera a andar. Engatinhava pelo palácio como um cãozinho. Tinha também uma fome enorme e os criados começaram a chamá-lo de príncipe-leão. A mãe parecia não se importar com a desgraça mas o rei não escondia as lágrimas:

    - Quem vai me suceder? Nunca houve no mundo um rei de quatro!

    Sogolon engravidou outra vez. Nasceu uma menina, Kolonkan, feia como a mãe. O pobre Naré Maghan perdeu a paciência. Construiu uma cabana no fundo do quintal e mandou para lá a esposa e os dois filhos.

    - Perdão. Não sei onde estava com a cabeça quando aceitei Sogolon em casamento. Não posso deixar o trono para o aleijadinho. E duvido que haja na Terra quem queira casar com minha filha.

    Então, Naré Maghan casou-se com uma belíssima princesa e teve com ela um filho. Era normal e de pernas fortes. Andou ao completar 1 ano de idade. Naré Maghan se sentia orgulhoso e podia morrer descansado.

    Em Niani havia muitas forjas, pequenas e grandes. A maior era a forja real, onde se faziam as armas do reino. O mestre guardava uma vara comprida e muito antiga de ferro. Dizia a tradição que seria rei dos mandingas quem dobrasse, em sonho, o mestre das forjas:

    - Leve a vara para o aleijadinho.

    De manhã, ele bateu na cabana de Sogolon. Sundiata, como sempre, se arrastava pelos cantos. Tinha então 7 anos e nunca ficara de pé. Ele se apoiou nela, rangeram as juntas e as cartilagens. Conseguiu ficar de pé. Com o peso, a vara dobrou-se e virou um arco. Com ele, Sundiata fez a guerra contra os parentes invejosos e os inimigos dos mandingas. Fundou um país, que até hoje se chama Mali. Ele é o Leão de Mali.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da revista Nova Escola, Abril de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

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