segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

A dama pé de cabra

    Conta a lenda que nada detinha D. Diogo Lopes, infatigável caçador: nem neve, nem o frio, nem a chuva. Em seu cavalo branco, corria pelos montes em busca de javalis, veados, lobos e ursos.

    Certo dia, perseguindo um javali no monte agreste, ouviu um lindo cantar. Levantou os olhos e viu uma mulher de extraordinária beleza: cabelos louros, face gentil e mãos brancas como a neve. Aproximou-se e perguntou:

    - Senhora, quem sois vós, que logo me cativaste?

    Seu riso puro e cristalino saltitava nas dobras do vento.

    - Sou uma dama tão nobre como tu.

    O coração de D. Diogo parecia querer estourar de amor dentro do peito.

    - Se casares comigo, senhora, terás as minhas terras e os meus castelos.

    - Deles não preciso. Guarda tuas terras, que delas precisas para cavalgar.

    - Que queres, então, para que sejas minha?

    Fingindo-se envergonhada, ela baixou os olhos e, quando respondeu, sua voz fez com que D. Diogo perdesse de vez a cabeça.

    Só tens que me jurar uma coisa: jamais tornar a fazer o sinal-da-cruz que tua mãe te ensinou desde pequeno.

    Apaixonadíssimo, já não conseguia resistir aos encantos da mulher e tratou de sossegar a própria consciência. "As benzedeiras não me servem para nada mesmo. Na próxima oportunidade mato duzentos mouros e meus pecados serão perdoados."

    E, enfim, exclamou:

    - Será como queres. Faço tua vontade. Arrebatou-a nos braços e partiram velozes para o castelo.

    À noite, quando se deitaram, notou que a dama tinha pés de cabra. Em compensação seu corpo era esbelto e esguio, sua pele escorregadia como seda e ele não perguntou mais nada.

    O casal viveu feliz por alguns anos e dessa união nasceram dois filhos: um menino, chamado Inigo, e uma menina, chamada Sol.

    D. Diogo amava a mulher e os filhos. Não trocava nada por um bom lume e um jantar no aconchego da família.

    Certa noite, conversavam alegremente sentados à mesa quando D. Diogo reparou que o seu melhor cão de caça dormitava junto à lareira. A cachorra, que pertencia à bela dama, farejava o aposento muito inquieta.

    D. Diogo pegou um pedaço de osso com bastante carne e atirou-o ao seu cão, gritando:

    - Silvano, precisas te alimentar. À cachorra não dou nada, porque não para quieta.

    O cão satisfeito dispunha-se a saborear o osso quando, de repente, soltou horrendo uivo de dor. A cachorra abocanhara-lhe a garganta.

    D. Diogo correu imediatamente até ele, que tinha o pescoço coberto de feridas.

    - Meu Deus, nunca vi uma coisa assim, parece coisa de belzebu! - E, esquecendo-se do juramento feito há anos, benzeu-se repetidas vezes.

    Foi o suficiente: a mulher começou a berrar, como se a estivessem trespassando com um ferro em brasas.

    Assombrado, D. Diogo olhou para ela e o que viu foi um animal horrendo. De boca torta e olhos revirados, erguia-se no ar, levando debaixo do braço esquerdo a filha Sol. Soltou um último grito e desapareceu por uma fresta junto ao teto.

    Só então D. Diogo compreendeu: sua mulher era o diabo em forma de gente! Desconsolado, partiu para a guerra. Foi lutar contra os mouros, no sul da Espanha.


Uma lenda portuguesa adaptada por Sylvia Manzano. Retirado da Revista Nova Escola, Março de 1994. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


Esta lenda foi contada por Alexandre Herculano, um grande escritor português. É uma história muito antiga, do tempo em que a Península Ibérica estava dividida entre cristãos ao norte e mouros ao sul. Nesse tempo, toda a gente acreditava em demônios, magia, forças do bem e do mal. O diabo resistia a tudo, menos ao sinal-da-cruz.

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