sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O Presente de Ossanha

    Essa história se passou há mais de cem anos, num tempo em que tudo era possível. Ninguém se espantava com nada

    Num engenho de açúcar viviam dois meninos. Um era filho do dono e se chamava Ricardo. O outro era escravo e tinham esquecido o seu nome. Só o chamavam de moleque. Moleque pra cá pra lá.

    O moleque fora comprado no mercado bem novinho. Seu trabalho ia ser brincar com o filho do dono. Brincar de todo jeito: jogar dama, soltar pipa, rodar arco, que era uma brincadeira muito apreciada naquele tempo... E de cavalinho. Ricardo montava e o moleque era montado. Saíam os dois pelo terreiro:

    - Upa, upa, cavalinho! - gritava Ricardo.

    O dono do engenho olhava aquilo e esfregava as mãos.

    - Esse moleque foi a melhor compra que eu já fiz! Olha o nosso filho, como está feliz!

    Vai que num domingo de manhã, estando de folga, o moleque entrou no mato para pegar passarinho. Ele pegava um pedaço de pau e passava visgo, para o coitado pousar e ficar preso.

    Naquele domingo, porém, o sol já estava no alto e nada.

    - Vou te ajudar - disse uma voz rouca.

    Tinham explicado ao moleque que se ouvisse uma voz rouca longe de casa, tomasse cuidado. Podia ser a onça-gomes, ou o quibungo, ou o ipupiara, ou o joão-do-mato. Essas criaturas horrendas tinham lá suas razões para não gostarem de gente.

    - Quem é você? - perguntou o moleque - Mostre sua cara.

    Quem apareceu foi Ossanha. Usava um cocar e um saiote de penas, mas não era índio. Sua pele era negra, quase azul. Não tinha uma perna e não tinha um olho, perdidos numa briga com Xangô. No começo de tudo, o criador, que se chama Olorum, tinha dado a cada filho uma parte do mundo. Pra Ossanha, a floresta:

    - Você cuida das plantas. Umas servem para comer, outras pra fazer remédio e outras pra enfeitar a casa. Quando alguém precisar, atenda.

    O que fez Ossanha? Guardou as plantas só pra si.

    - Está em falta - mentia, quando alguém o procurava.

    Seu irmão Xangô, quando soube, chamou Iansã, que cuidava dos ventos:

    - Onde já se viu? Dê um castigo pra esse egoísmo.

    Iansã se aproximou como quem não quer nada. Ossanha se distraiu e ela abanou com a saia o horto particular do orixá egoísta. Uma ventania. Quando acabou, as plantas tinham se espalhado pelo mundo.

    É por isso que Ossanha está em todo lugar que tem mato, recolhendo as plantas que Iansã espalhou.

    O moleque, que conhecia a história, não teve medo:

    - Como é que o senhor-senhora vai me ajudar? (Senhor-senhora porque Ossanha é as duas coisas.)

    Tome esse visgo. É da nossa terra. Com ele você vai fisgar um pássaro cora. Já viu um?

    - Não.

    E foi o que aconteceu.

    O pássaro cora era um espanto. Vinha gente de longe apreciar o seu canto. Criadores de pássaros, viajantes, naturalistas, gente de outros países, do governo, da igreja...

    O pássaro do moleque aprendia o que se ensinava. Bastava assoviar uma vez perto da gaiola e ele imitava.

    Começaram a botar preço na maravilha. O moleque recusava. Se aceitasse, teria dinheiro para jogar na cara do seu dono:

    - Olha aqui. Compro minha liberdade. E pode ficar com o troco.

    Mas dizia não:

    - Não vendo. Nem troco por todo o dinheiro do mundo.

    O senhor então partiu pra ameaça:

    - Se não me vender esse passarinho, te arranco a pele!

    O moleque sorria com o canto dos lábios.

    - Se não me vender esta porcaria, te aplico os anjinhos.

    Anjinhos eram uns aneizinhos de ferro para apertar os dedos. Doía como o diabo.

    - Se é uma porcaria, por que nhor quer comprar? - era só o que ele dizia.

    Quando o menino estava de castigo, o cora não cantava.

    Até que um dia o senhor perdeu a paciência. Resolveu vender o moleque pra outro senhor.

    - Vai ser bem longe daqui, que não quero mais te ver na minha frente. Nunca mais ouvir a voz desse passarinho.

    Ricardo, o filho do dono, ficou triste, ficou doente, pediu:

    - Não vende, pai. Há tempos que o escravo sou eu. Eu é que dependo dele pra tudo. Não sei mais brincar sozinho.

    O pai não escutou. Vendeu o moleque.

    O comprador veio buscá-lo à meia-noite. Ricardo estava tão triste que não teve coragem de se despedir do moleque:

    - Ele vai alegre - pensou, pois tem o cora. Eu fico triste, porque não tenho nada.

    No outro dia de manhã, quando se levantou e abriu a janela, o menino Ricardo teve uma surpresa. Do lado de fora tinha uma gaiola pendurada. Assim que viu o menino, o cora começou a cantar.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Setembro de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


De acordo com a mitologia Nagô - povo e cultura africanos da região do Sudão, onde hoje estão Nigéria, Benin, Gana, Senegal, dentro outros, Xangô castigou Ossanha por sua ambição, dispersando as folhas das árvores pelo mundo. Juntando o mito com um conto de José Lins do Rego (Meus Verdes Anos), nasceu O Presente de Ossanha.

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