segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O Príncipe-Tatu

    Essa história se passou em Minas, no tempo de Tiradentes. Tinha ouro de ar com o pau. E moça bonita assim.

    Vai que um grande minerador estava na janela com a mulher tomando a fresca. Passou um caçador com um tatu às costas. A mulher, que não tinha filhos, cutucou o marido:

    - Ah, quem me dera ter um filho... Mesmo que fosse como aquele tatu.

    Nove meses passados, olha que lhe nasceu um filho. Era um tatu perfeito.

    Foi criado com todo luxo. Capa de seda, botas de Sevilha, chapéu com pena de avestruz. Par ir à missa, cadeirinha nas costas de quatro escravos.

    - Lá vai o príncipe-tatu - diziam nas esquinas.

    Com dezoito anos, o príncipe-tatu chamou o pai de lado:

    - Quero me casar com a filha do conde.

    O conde tinha três filhas e não se importou de dar uma. Obediente, a moça concordou. Pôs uma condição:

    - Meu quarto vai ser todo preto. De luto.

    Foi a maior festa da história de Minas. Veio Isidoro, o mártir, e Chica da Silva, com seu séquito. Terminado o baile, foram os noivos para seus aposentos. O príncipe-tatu ia de cara amarrada. Trancou a porta:

    - Querias que nosso casamento fosse de luto? Pois vai ser agora!

    Pulou em cima da moça e a estrangulou. Na manhã seguinte, mentiu:

    - Foi à cozinha no escuro e rolou da escada.

    Passados alguns anos, o príncipe-tatu mostrou desejo de casar com outra filha do conde. Este, louco para agradar ao ricaço pai do tatu, concordou. Marcado o dia, a moça exigiu:

    - Caso de bom grado. Mas as cortinas, a roupa de cama e o travesseiro serão pretos. De luto.

    A mesma coisa. Durante o baile, o tatu era todo risos. Quando os convidados se foram, trancou a porta e engrossou a voz:

    - Tu não querias luto? Vais ter!

    De manhã, com a cara lavada, mentiu:

    - Se assustou com um rato e despencou da escada.

    A terceira filha do conde, chamada Isolda, pediu ao pai:

    - Quero me casar com o príncipe-tatu.

    O pai primeiro recusou. Tanto porém Isolda insistiu, que lavou as mãos:

    - Sua cabeça é seu mestre. E quem avisa amigo é.

    Deixe estar que Isolda consultara um babalaô. Babalaô é um sacerdote da religião dos orixás. Ele joga búzios, uma espécie de contas, e lê o seu destino pela maneira como os búzios se colocam. Mistérios.

    Quando o príncipe-tatu perguntou como Isolda queria o quarto, ela respondeu:

    - Colorido e alegre.

    Quando ele trancou a porta, ela continuou sorrindo.

    Ao contrário das irmãs, que tinham feito cara de morte. Foi aí que ele tirou o casaco e veio a ser o homem bonito que era.

    Isolda não cabia em si de alegria. Contou às amigas, aos parentes, aos pais do príncipe-tatu. Com pouco, Minas Gerais inteira sabia do segredo do príncipe encantado.

    A mãe do príncipe veio, certa noite, espiar o filho com forma humana. Ele dormia, na calma da sua beleza.

    Ela teve uma ideia:

    - Onde ele guarda o casco?

    - No baú - informou Isolda.

    Acenderam o forno e puseram o casco lá dentro:

    - Assim ele não corre mais perigo de virar tatu.

    O cheiro de osso queimado tomou conta da casa. O príncipe despertou. Correu para a cozinha, com um pressentimento. Abriu o forno. Gemia:

    - O que vocês fizeram? O que vocês fizeram?!

    Com muito esforço, conseguiram acalmá-lo.

    Ele explicou:

    - Faltavam só cinco dias para o encantamento acabar.

    Isolda nada dizia. Chorava. A mãe do príncipe, se achando culpada, coitada, arranhava as paredes com as unhas. Tamanho arrependimento!...

    Lá pelas tantas, o príncipe-tatu se despediu:

    - A partir de hoje, se vocês quiserem me ver, só nas terras de Aruanda.

    Aruanda é o outro nome de Luanda, a capital de Angola. Fica na África, do outro lado do mar. Uma boa parte dos nossos avós veio de lá. Agora, se Isolda e a mãe do príncipe-tatu descobriram onde era, se foram visitá-lo, se ele se livrou para sempre do encantamento... Uma vez fiz essas perguntas à minha avó, que foi quem me contou essa história. Ela olhou pela janela, tirou uma baforada no cachimbo e me respondeu:

    - Ah, isso ninguém sabe...


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Agosto de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


Pertencente ao folclore mineiro, essa história foi aqui recontada pelo autor, da mesma forma que outras histórias pertencentes à cultura branca são incorporadas e recontadas pelos negros do Brasil. A terra de Aruanda é uma referência a Luanda, capital da Angola, vista no Brasil como o lugar post-mortem dos negros que foram para cá trazidos à força. Todos os personagens mencionados são negros e usam títulos de nobreza misturando seus próprios títulos de origem - reis, príncipes - com os da corte branca - condes. Essa mistura e a encenação do papel do branco da classe dominante (que aparece hoje nas alegorias das Escolas de Samba), eram comuns nas Minas Gerais, onde a lavra do ouro permitiu que muitos negros comprassem sua liberdade e passassem a adotar títulos de nobreza, mesmo que informalmente. Para entender mais esse período a que se refere a história, o filme 'Xica' da Silva, com Zezé Motta no papel principal, dá uma ideia estilizada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário