sábado, 30 de abril de 2022

O Significado da Vida

    Na grande mola humana, cada pessoa dá à vida um significado especial.

    Esta, objetiva a aquisição da cultura; essa busca o destaque social, aquela, anela pela fortuna; estoura, demanda o patamar da glória...

    Uma quer a projeção pessoal; outra anseia pela construção de uma família ditosa, cada qual se empenhando mais afanosamente para atingir o que estabelece como condição de meta essencial.

    Tal planificação, que varia de indivíduo para indivíduo, termina por estimular à luta, à competição insana, ao desespero.

    Conseguido, porém, o que significou como ideal, ou reprograma o destino ou tomba em frustração, descobrindo-se irrealizado ou vítima de saturação do que haja conseguido, sem plenificar-se interiormente.

    A vida, entretanto, possui um significado especial que reside no autodescobrimento do homem, que passa a valorizar o que é ou não importante no seu peregrinar evolutivo.

    Este desafio se torna individual, unindo, sem embargo, no futuro, os seres numa única família, que entrelaça os ideais em sintonia perfeita com a energia que emana de Deus e é o élan vitalizador da vida.

    Os meios da tua sobrevivência orgânica emulam-te para avançar ao encontro da finalidade da existência.

    O azeite sustenta a chama, porém a finalidade desta não é crepitar, mas derramar luz e aquecer.

    Enquanto não te empenhes, realmente, na busca da tua realidade espiritual, seguirás inseguro, instável, sem plena satisfação.

    Todas as aquisições que exaltam o ego, terminam por entediar.

    A maneira mais eficiente para o cometimento de real significado da vida é a experiência do amor.

    Amor que doa e liberta.

    Amor que renuncia e faz feliz.

    Amor que edifica, espalhando esperança e bênçãos.

    Amor que sustenta vidas e favorece ideais de enobrecimento.

    Amor que apazigua quem o sente e dulcifica aquele a quem se doa.

    O amor é conquista muito pessoal, que necessita do combustível muito pessoal, que necessita do combustível da disciplina mental e da ternura do sentimento para expandir-se.

    O significado essencial da vida repousa, pois, no esforço que cada criatura deve encetar para anular as paixões dissolventes, colocando nos seus espaços emocionais o divino hálito, o amor que se origina em Deus.


Texto retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

África Reinventada

    Trazidas com a diáspora forçada pela escravidão nas Américas, as crenças de origem africana fincaram raízes na nova terra. Aqui foram reformuladas a partir do encontro das diferentes "nações" negras que misturaram em diversos cantos do país suas divindades, lendas e rituais: batuque no Sul, tambor no Norte, umbanda no Sudeste, xangô em alguns estados do Nordeste, candomblé em outros mais. Ao rever a construção dessa tradição de fé, vemos a perseguição ao calundu ainda no século XVIII, a fama de curandeiros derrubando barreiras sociais na capital do Império, voduns e orixás se confundindo em terreiros, objetos de feitiçaria apreendidos pela polícia, mas ainda impondo respeito, mesmo sob a guarda da lei.

    A história das religiões afro-brasileiras revela muito de nossas crenças e também de nossos preconceitos. Revela, sobretudo a mistura entre raças, etnias e grupos sociais que deu forma a uma cultura de incorporações e resistência. Ainda hoje, essas manifestações rituais são o testemunho vivo, marcado na gira de um orixá, no toque do atabaque ou no canto em iorubá, do universo cultural africano assentado desse lado de cá do Atlântico.

    Os atabaques começam o ijiká, o toque que reverencia todos os orixás. Quem for de paz pode entrar.


Texto de Renato da Silveira. Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutor em Antropologia pela École de Hautes Études em Sciences Sociales de Paris. Introdução da matéria publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano I, nº 6, Dezembro de 2005. Ministério da Cultura.

sábado, 23 de abril de 2022

Ante o Tempo

    Generaliza-se o hábito de adiar realizações, sob justificativas sem cabimento, ocultando-se mecanismos neuróticos da personalidade em processo de destruição do homem.

    Neste sentido, as pessoas parecem detestar o tempo e procuram anulá-lo, utilizando-se de fórmulas escapistas, mediante as quais tudo transferem para depois, em um amanhã de difícil logro.

    Subitamente, porém, dão-se conta do acúmulo de compromissos a atender, afligindo-se, e, precipitadamente, intentam dar cumprimento ao que já deveria estar realizado há muito tempo.

    O velho brocado que afirma, "o tempo passa", encontra-se decadente, já que, eterno, é sempre o mesmo, sendo as pessoas que o atravessam, qual ocorre com os acontecimentos que nele se manifestam.

    Tentar tornar-se insensível ao tempo é fórmula neurotizante, em busca ingênua de ignorar uma realidade iniludível.

    Esse mecanismo se manifesta através das fugas psicológicas expressas nos axiomas "passar o tempo", "matar o tempo", qual se este fosse algo indesejável, mortificante, devastador.

    Há uma preocupação muito grande em gastar-se ou não o tempo, tornando-o uma coisa de fácil consumpção. Noutras vezes, diz-se "encher as horas", para delas ver-se livre. E são tomadas providências para tal: bebidas alcoólicas, drogas alucinógenas, tabagismo, sexo, desportos variados, jogos, divertimentos...

    Antecipando-se, porém, a todas essas escapadas emocionais, o tempo se apresenta imutável aguardando...

    Com isto, não há, conforme pretendem os ociosos e neuróticos, como adiar os mecanismos de ação da vida ou ignorá-los.

    Há quem planeje anular os tempos maus através de esperanças que, talvez, não se concretizem, afirmando: mais tarde este panorama se modificará, ou quando eu conseguir um trabalho, ou assim que eu recuperar a saúde...

    Não te facultes as transferências de tempo através de fórmulas anestesiantes em relação à atualidade, omitindo-se quanto aos deveres que te cabe assumir neste momento.

    O tempo é a tua oportunidade de realização, que deves aproveitar com empenho.

    Períodos haverá mais difíceis, nos quais viverás desafios mais severos.

    Quem busca viver bem no futuro, desperdiçando o presente, não alcançará esse porvir ambicionado.

    Da mesma forma, viver parado nas evocações do pretérito, é maneira inditosa de perder a ocasião e produzir felicidade.

    Certamente, o tempo te proporciona  variações emocionais curiosas: na dor, uma hora se estende indefinidamente, enquanto na alegria ela tem a celeridade de um relâmpago.

    Viver intensamente é a melhor maneira de o enfrentar, quando ele passará a brindar-te uma dimensão agradável, rápida e feliz.

    Cria os teus momentos fecundos, vivendo a realidade conforme se expresse.

    O presente é a única dimensão que tens ao alcance.

    O que sucedeu existe apenas durante o período que o recordes.

    O que virá é incerto.

    Jesus ensinou-nos esta conduta fazendo tudo quanto pretendia, e emulando-nos a valorizar o hoje em face da sua grandiosa significação.


Retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora; Salvador, 2015, 4ª Edição.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Desenredo (G.R.E.S Unidos do Pau Brasil)

 No dia em que o jovem Cabral chegou por aqui ô ô

Conforme diversos anúncios na televisão

Havia um corro afinado da tribo tupi

Formado na beira do cais cantando em inglês

Caminha saltou no navio assoprando

Um apito em free bemol

Atrás vinha o resto empolgado da tripulação

Usando as tamancas no acerto da marcação

Tomando garrafas inteiras de vinho escocês

Partiram num porre infernal por dentro das matas ô ô

Ao som de pandeiros, chocalhos e acordeom

Tamoios, Tupis, Tupiniquins, Acarajés ou Carijós, sei lá

Chegaram e foram formando aquele imenso cordão

Meu Deus, "quibão"

E então de repente invadiram a avenida central, mas que legal!

E meu povo vestido de tanga adentrou ao coral

Um velho cacique baiano sacou do pistom

E deu como aberto em decreto mais um carnaval

E assim a 22 daquele mês de abril

Fundaram a Escola de Samba

Unidos do Pau Brasil


Música de Gonzaguinha gravada por ele no então LP Gonzaguinha da Vida, lançado pela Gravadora Odeon em 1979 e relançado em CD posteriormente. Leila Pinheiro em 2000 lançou o CD Reencontro, com músicas de Ivan Lins e Gonzaguinha regravando essa canção em um arranjo muito bonito. Em 2016 a cantora gaúcha Mirianês Zabot também lançou um CD em homenagem a Gonzaguinha intitulado Pegou Um Sonho e Partiu - Mirianês Zabot Canta Gonzaguinha, em Produção Independente e, também, incluiu essa música... Lindo!!

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Toda Vez

Meu coração

Toda vez que te vê

Quer gritar, se arriscar

Sair cantando

Me delatando pra todo mundo

Pensa que está

Fora do alcance

E sai me anunciando

Quando leve você passa

Me entregando assim

De graça

Nesse estado inevitável

Da paixão

Mas fecho os olhos então

E ele fica mudo

Meu escuro é meu escudo

E silencioso

É meu coração...


Música de Zélia Duncan e Christiaan Oyens que faz parte do CD Acesso, lançado por ela em 1998 pela Gravadora WEA.

Vou te roubar um beijo

 Você me atrai

Seduz o meu coração

E eu sei que preciso me embriagar numa paixão

Você tocou as curvas de minha mão

E eu senti no corpo o sinal da tentação

Se você me disser que é real esse olhar

Essa luz, esse seu desejo

Vou seguir a paixão que há em mim

Baby, baby, vou te roubar um beijo


Quero beber teu vinho

Nos teus lábios me embriagar

Sinto que estou no cio

E por um fio pra te amar

Já não suporto a força da paixão a me chamar

Pra oração que o nosso corpo quer rezar

Se você me disser que é real esse olhar

Essa luz

Baby, vou te roubar um beijo


Música de Altay Veloso que faz parte do primeiro LP da cantora goiana Maria Eugênia. Na gravação, o compositor divide os vocais com ela. Em 1994, ela lança o CD Dois Gumes, em Produção Independente e, além do repertório do atual, inclui seis canções do LP original.

O que é que há

O que é que há

O que é que está se passando com esta cabeça

O que é que está me faltando pra que eu te conheça melhor

Pra que eu te receba sem choque

Pra que eu te perceba no toque das mãos

Em teu coração

Por que que há tanto tempo

Você não procura meu ombro

Por que será

Por que será que esse fogo

Não queima o que tem pra queimar

Que a gente não ama o que tem pra se amar

Que o sol está se pondo

E a gente não larga essa angústia do olhar

Telefona, não deixa que eu fuja

Me ocupa os espaços vazios

Me arranca dessa ansiedade, me acolhe, me acalma

Em seus braços macios


Música de Sérgio Sá e Fábio Júnior lançada por este em seu então LP de 1982 gravado pela Gravadora Som Livre. O selo Discobertas lançou uma Caixa com os três primeiros LPs do Fábio em CD no ano de 2015. Entre 2000 e 2001, a cantora e compositora carioca Mylene gravou seu primeiro CD e que foi lançado em 2003 em uma parceria das Gravadoras MCD e Lua Music com o título "O que é que há". O disco é parcialmente autoral, contendo apenas duas regravações: a já citada faixa-título e uma canção dos Beatles. 

Um Certo Alguém

Quis evitar teus olhos

Mas não pude reagir

Fico à vontade então


Acho que é bobagem

A mania de fingir

Negando a intenção


Quando um certo alguém

Cruzou o seu caminho

E te mudou a direção


Chego a ficar sem jeito

Mas não deixo de seguir

A sua aparição


Quando um certo alguém

Desperta o sentimento

É melhor não resistir

E se entregar


Me dê a sua mão

Vem ser a minha estrela

Complicação tão fácil de entender

Vamos dançar

Luzir a madrugada

Inspiração pra tudo que eu viver


Música de Lulu Santos e Ronaldo Bastos gravado no então LP O Ritmo do Momento, relançado em CD em 1994 pela Gravadora WEA.

É Ouro pra Mim

Tudo junto

No meu caso rolou

De uma vez só


De repente

O que era já não era mais

Mudou tudo no amor

Outra cara

Outra forma de ver e sentir

O que antes eu não entendia

Agora é ouro pra mim


A cabeça mudou

Outra cara

Eu tô fora e não vou mais sair

O que eu não precisava

Agora é preciso

Amor é assim


Lindo

Tô que nem criança

Tô de alma limpa

Com você por perto

Sou mais longe ainda

Hoje eu quero luz de sol e mar


Nova

Renovada a força

Tô feliz da vida

Sob o seu domínio

Tô mais forte ainda

Não tem nada fora de lugar


Música de Peninha que faz parte do 2º CD da cantora paraibana Renata Arruda lançado em 1999 pela Gravadora BMG/Ariola RCA.

sábado, 16 de abril de 2022

Desafios e Vitórias

    Respira-se, no planeta terrestre, uma atmosfera saturada de fluidos deletérios.

    Uma imensa vaga de alucinação varre esse orbe, de um a outro quadrante, sob os impulsos da insatisfação, que gera violência; da frustração, que fomenta desencanto; e dos desejos insaciados, que conduzem à beligerância, ao crime, ao desespero desenfreado.

    As aspirações espirituais parecem soterradas sob os escombros das doutrinas falidas pela invigilância dos que as predicavam.

    O homem e a mulher, em si mesmos aturdidos, de súbito perdem o significado e o sentido da existência moral, considerando ultrapassados os valores éticos ante o contubérnio da insensatez, na volúpia dos prazeres inconcebíveis.

    O desespero galopa, e mesmo os temperamentos dóceis deixam-se contagiar, desvairando, na busca ininterrupta de novidades que não lhes preencham os sentimentos.

    As estatísticas negativas avolumam-se.

    Os altos índices de criminalidade  aparvalham, e a derrocada moral prossegue inexorável.

    Em uma análise perfunctória, tem-se a impressão e são irrelevantes os propósitos superiores da dignidade, da boa postura e da ação correta.

    Ante a avalanche que aumenta, cresce a modesta barreira que se levanta para obstaculizar a imensa derrocada final...

    Poder-se-ia crer que as criaturas estão entregues a si mesmas, e nenhuma providência superior tenha planificado uma alteração profunda neste suceder de despautério e desequilíbrio.

    Como consequências mais imediatas, as enfermidades grassam, inexoráveis, dizimando multidões inermes, insaciadas e tristes.

    Os acidentes ceifam milhões de vidas, a cada ano, que parecem nada valer no cômputo geral, mas, em meio ao pandemônio, surgem os esforços do amor e da virtude, conclamando os que têm ouvidos e olhos para registrar a Divina Presença, ao prosseguimento dos seus ideais e à preservação da sua paz.

    Chegados, sim, os tempos da grande e inevitável seleção natural. Não mais a pequeno passo, porém de maneira abrupta, instalando na Terra - que dentro de pouco tempo se encontrará exaurida pelo cansaço das utopias - o período do bem, da verdade e do amor.

    Saturados, logo mais, pelos excessos extenuantes, os seres humanos se voltarão para Deus com saudades da pureza, do equilíbrio, do respeito e dos valores da solidariedade e da fraternidade que devem viger como molas mestras do progresso.

    Poupa-te à grande derrocada.

    Mantém-te na liça abençoada dos compromissos, mesmo que pareças, de um momento para outro, uma personalidade exótica no meio dos alucinados, porque portador de uma conduta saudável nos exotismos do desequilíbrio.

    Conserva, a qualquer preço, as fronteiras do teu domicílio e as paisagens dos teus sentimentos, não permitindo que aí se instalem os vírus da decomposição, que arrastam ao aniquilamento e consomem os ideais de beleza.

    Foste chamado, nesta hora grave, para a  preservação da verdade cristã porque, de alguma forma, ontem contribuíste para este desenfrear de paixões atuais. Cooperaste com a avassaladora onde de desequilíbrio e agora sofres as suas imediatas consequências.

    Cultiva o Bem de qualquer forma, e sê cordeiro nos rebanhos de lobos, tendo a consciência de que o Pastor saberá preservar-te das ciladas do mal.

    (...) E com a consciência tranquila, estribada no dever cumprido, experimentarás a felicidade que muitos buscam pelos corredores alucinados, e viverás a plenitude que anelas.


Retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 3ª Edição.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Pressentimento

 "Ai ardido peito

Quem irá entender o seu segredo

Quem irá pousar em teu destino

E depois morrer de teu amor

Ai mas quem virá

Me pergunto a toda hora

E a resposta é o silêncio

Que atravessa a madrugada

Vem meu novo amor

Vou deixar a casa aberta

Já escuto os teus passos

Procurando o meu abrigo

Vem que o sol raiou

Os jardins estão florindo

Tudo faz pressentimento

Que este é o tempo ansiado

De se ter felicidade"


Música de Elton Medeiros e Hemínio Bello de Carvalho gravada por Virgínia Rosa em seu CD A Voz do Coração, Lua Music, 2001.

domingo, 10 de abril de 2022

Seminário dos Ratos

    O Chefe das Relações Publicas, um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes, ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de leve na porta do Secretário do Bem-Estar Público e Privado:

    - Excelência?

    O Secretário do Bem-Estar Público e Privado pousou o copo de leite na mesa e fez girar a poltrona de couro. Suspirou. Era um homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas. Lançou um olhar comprido para os próprios pés, o direito calçado, o esquerdo metido num grosso chinelo de lã com debrum de pelúcia.

    - Pode entrar - disse ao Chefe das Relações Públicas que já espiava pela fresta da porta. Entrelaçou as mãos na altura do peito: - Então? Correu bem o coquetel?

    Tinha voz branda, com um leve acento lamurioso. O jovem empertigou-se. Um ligeiro rubor cobriu-lhe o rosto bem escanhoado:

    - Tudo perfeito, Excelência. Perfeito. Foi no salão Azul, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima mas muito agradável. Fiz as apresentações, bebericou-se e - consultou o relógio - veja, Excelência, nem seis horas e já se dispersaram. O Assessor da Presidência da RATESP está instalado na ala norte, vizinho do Diretor das Classes Conservadoras Desarmadas e Armadas que está ocupando a suíte cinzenta. Já a Delegação Americana achei conveniente instalar na ala sul. Por sinal, deixei-os há pouco na piscina, o crepúsculo está deslumbrante, Excelência, deslumbrante!

    - O senhor disse que o Diretor das Classes Conservadoras Desarmadas e Armadas está ocupando a suíte cinzenta. Por que cinzenta?

    O jovem pediu licença para se sentar. Puxou a cadeira mas conservou uma prudente distância da almofada onde o secretário pousara o pé metido no chinelo. Pigarreou:

    - Bueno, escolhi as cores pensando nas pessoas - começou com certa hesitação. Animou-se: - A suíte do Delegado Americano, por exemplo, é rosa-forte, eles gostam de cores vivas. Para o de Vossa Excelência escolhi este azul-pastel, mais de uma vez vi Vossa Excelência de gravata azul... Já para a suíte norte me ocorreu o cinzento, Vossa Excelência não gosta da cor cinzenta?

    O Secretário moveu com dificuldade o pé estendido na almofada. Levantou a mão. Ficou olhando a mão

    - É a cor deles. Rattus Alexandrius.

    - Dos conservadores?

    - Não, dos ratos. Mas enfim, não tem importância, prossiga por favor. O senhor dizia que os americanos estão na piscina, por que os? Veio mais de um?

    - Pois com o Delegado de Massachusetts veio também a secretária, uma jovem. E veio ainda um ruivo de terno xadrez, tipo um pouco de boxer, meio calado, está sempre ao lado dos dois. Suponho que é um guarda-costas mas é simples suposição, Excelência, o cavalheiro em questão é uma incógnita. Só falam inglês. Aproveitei para conversar com eles, completei há pouco meu curso de inglês para executivos, se os debates forem em inglês, conforme já aventado, darei minha colaboração. Já o castelhano eu domino perfeitamente, enfim, Vossa Excelência sabe, Santiago, Buenos Aires...

    - Fui contra a indicação. Desse americano - atalhou o Secretário num tom suave mas infeliz. - Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que botar todo mundo a par das nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade mas da nossa família. De nós mesmos -  acrescentou apontando para o pé em cima da almofada: - Por que não apareci ainda, por quê? Porque simplesmente não quero que me vejam indisposto, de pé inchado, mancando. Amanhã calço o sapato para a instalação, de bom grado faço esse sacrifício. O senhor que é candidato em potencial desde cedo precisa ir aprendendo essas coisas, moço. Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos.

    - Mas Vossa Excelência me permite, esse americano é um técnico em ratos, nos Estados Unidos também tem muito, ele poderá nos trazer sugestões preciosas. Aliás, estive sabendo que é um expert em jornalismo eletrônico.

    - Pior ainda. Vai sair buzinando por aí - suspirou o Secretário tentando mudar a posição do pé. - Enfim, não tem importância. Prossiga, prossiga, queria que me informasse sobre a repercussão. Na imprensa, é óbvio.

    O Chefe das Relações Públicas pigarreou discretamente, murmurou um "bueno" e apalpou os bolsos. Pediu licença para fumar.

    - Bueno, é do conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local: por que instalar o VII Seminário do Roedores numa casa de campo, completamente isolada? Essa a primeira indagação geral. A segunda, é que gastamos demais para tornar esta mansão habitável, um desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos. O noticiarista de um vespertino, marquei bem a cara dele, Excelência, esse chegou a ser insolente quando rosnou que tem tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta ruína...

    O Secretário passou o lenço na calva e procurou se sentar mais confortavelmente. Começou um gesto que não se completou.

    - Gastando milhões? Bilhões estão consumindo  esses demônios, por acaso ele ignora as estatísticas? Estou apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou então amigo dos ratos. Enfim, não tem importância, prossiga, por favor.

    - Mas são essas as críticas mais severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e aquela eterna tecla que não cansam de bater, que já estamos no VII Seminário e até agora, nada de objetivo, que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do primeiro Seminário, que temos agora cem ratos para cada habitante, que nas favelas não são as Marias mas as ratazanas que andam de lata d'água na cabeça - acrescentou contendo uma risadinha. - O de sempre... Não se conformam é de nos reunirmos em local retirado, que devíamos estar lá no centro, dentro do problema. Nosso Assessor de Imprensa já esclareceu o óbvio, que este Seminário é o Quartel-General de uma verdadeira batalha! E que traçar as coordenadas de uma ação conjunta deste porte exige meditação. Lucidez. Onde poderiam os senhores trabalhar senão aqui, respirando um ar que só o campo pode oferecer? Nesta bendita solidão, em contato íntimo com a natureza... O Delegado de Massachusetts achou genial essa ideia do encontro em pleno campo. Um moço muito gentil, tão simples. Achou excelente nossa piscina térmica, Vossa Excelência sabia? E ele foi campeão de nado de peito, está lá se divertindo, adorou nossa água de coco! Contou-me uma coisa curiosa, que os ratos do Polo Norte têm pelos deste tamanho para aguentar o frio de trinta abaixo de zero, se guarnecem de peliças, os marotos. Podiam viver em Marte, uma saúde de ferro!

    O Secretário parecia pensar em outra coisa quando murmurou evasivamente um "enfim". Levantou o dedo pedindo silêncio. Olhou com desconfiança para o tapete. Para o teto:

    - Que barulho é esse?

    - Barulho?

    - Um barulho esquisito, não está ouvindo?

    O Chefe das Relações Públicas voltou a cabeça, concentrado.

    - Não estou ouvindo nada...

    - Já está diminuindo - disse o Secretário abaixando o dedo almofadado. - Agora parou. Mas o senhor não ouviu? Um barulho tão esquisito, como se viesse do fundo da terra, subiu depois para o teto... Não ouviu mesmo?

    O jovem arregalou os olhos de um azul inocente.

    - Absolutamente nada, Excelência. Mas foi aqui no quarto?

    - Ou lá fora, não sei. Como se alguém... - Tirou o lenço, limpou a boca e suspirou profundamente. - Não me espantaria nada se cismassem de instalar aqui algum gravador. O senhor se lembra? Esse Delegado americano...

    - Mas Excelência, ele é convidado do Diretor das Classes Desarmadas e Armadas!

    - Não confio em ninguém. Em quase ninguém - corrigiu o Secretário num sussurro. Fixou o olhar suspeitoso na mesa. Nos baldaquins azuis da cama. - Onde essa gente está, tem sempre essa praga de gravador. Enfim, não tem importância, prossiga, por favor. E o Assessor de Imprensa?

    - Bueno, ontem à noite ele sofreu um pequeno acidente, Vossa Excelência sabe como anda o nosso trânsito! Teve que engessar um braço, só pode chegar amanhã, já providenciei o jatinho - acrescentou o jovem com energia. - Na retaguarda fica toda uma equipe armada para a cobertura. Nosso Assessor vai pingando o noticiário por telefone, criando suspense até o encerramento, quando virão todos em jato especial, fotógrafos, canais de televisão, correspondentes estrangeiros, uma apoteose. Finis coronat opus, o fim coroa a obra!

    - Só sei que ele já deveria estar aqui, começa mal - lamentou o Secretário inclinando-se para o copo de leite. Tomou um gole e teve uma expressão desaprovadora: - Enfim, o que me preocupava muito é ficarmos incomunicáveis. Não sei mesmo se essa ideia do Assessor da Presidência da RATESP vai funcionar, isso de deixarmos os jornalistas longe. Tenho minhas dúvidas.

    - Vossa Excelência vai me perdoar, mas penso que a cúpula se valoriza ficando assim inacessível. Aliás, é sabido que uma certa distância, um certo mistério excita mais do que o contato diário com os meios de comunicação. Nossa única fonte vai soltando notícias discretas, influindo sem alarde até o encerramento, quando abriremos as baterias! Não é uma boa tática?

    Com dedos tamborilantes o Secretário percorreu vagamente os botões do colete. Entrelaçou as mãos e ficou olhando as unhas polidas.

    - Boa tática, meu jovem, é influenciar no começo e no fim todos os meios de comunicação do país. Esse é o objetivo. Que já está prejudicado com esse assessor de perna quebrada.

    - Braço, Excelência. O antebraço, mais precisamente.

    O Secretário moveu penosamente o corpo, para a direita e para a esquerda. Enxugou a testa. Os dedos. Ficou olhando para o pé em cima da almofada.

    - Hoje mesmo o senhor poderia lhe telefonar para dizer que estrategicamente os ratos já se encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto, que os ratos já estão sob inteiro controle. A ligação é demorada?

    - Bueno, cerca de meia hora. Peço já, Excelência?

    O Secretário foi levantando o dedo. Abriu a boca. Girou a cadeira em direção da janela. Com o mesmo gesto lento, foi se voltando para a lareira.

    - Está ouvindo? Está ouvindo? O barulho, ficou mais forte agora!

    O jovem levou a mão à concha da orelha. A testa ruborizou-se no esforço da concentração. Levantou-se e andou na ponta dos pés:

    - Vem daqui, Excelência? Não consigo perceber nada!

    - Aumenta e diminui, olha aí, em ondas, como um mar... Agora parece um vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha aí...

    - Tombou para o espaldar da poltrona, exausto. Enxugou o queixo úmido. - Quer dizer que o senhor não ouviu nada?

    O Chefe das Relações Públicas arqueou as sobrancelhas perplexas. Espiou dentro da lareira. Atrás da poltrona. Levantou a cortina da janela e olhou para o jardim.

    - Tem dois empregados lá no gramado, motoristas, creio... Ei! vocês aí!... - chamou estendendo o braço para fora. Fechou a janela. - Sumiram. Pareciam agitados, talvez discutissem mas suponho que nada tenham a ver com o barulho. Não ouvi coisa alguma, Excelência, escuto tão mal deste ouvido!

    - Pois eu escuto demais, devo ter um ouvido suplementar. Tão fino. Quando fiz a revolução, em 32 e depois em 64, era sempre o primeiro do grupo a pressentir qualquer anormalidade. O primeiro!  Lembro que uma noite avisei meus companheiros, o inimigo está aqui com a gente e eles riram, bobagem, você bebeu demais, tínhamos tomado no jantar um vinho delicioso. Pois quando saímos para dormir, estávamos cercados.

    O Chefe das Relações Públicas teve um olhar de suspeita para a estatueta de bronze em cima da lareira, uma opulenta mulher de olhos vendados, empunhando a espada e a balança. Estendeu a mão até a balança. Passou o dedo num do pratos empoeirados. Olhou o dedo e limpou-o com um gesto furtivo no espaldar da poltrona.

    - Vossa Excelência quer que eu vá fazer uma sondagem?

    O Secretário estendeu doloridamente a perna. Suspirou:

    - Enfim, não tem importância. Nestas minhas crises sou capaz de ouvir alguém riscando um fósforo na sala.

    Entre consternado e tímido, o jovem apontou para o pé do enfermo:

    - É algo... Grave?

    - A gota.

    - E dói, Excelência?

    - Muito

    - Pode ser a gota d'água! Pode ser a gota d'água! - cantarolou ele ampliando o sorriso que logo esmoreceu no silêncio taciturno que se seguiu à sua intervenção musical. Pigarreou. Ajustou o nó da gravata: - Bueno, é uma canção que o povo canta por aí.

    - O povo, o povo - disse o Secretário do Bem-Estar Público entrelaçando as mãos. A voz ficou um brando queixume: - Só se fala em povo e no entanto o povo não passa de um abstração.

    - Abstração, Excelência?

    - Que se transforma em realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas. Ou roer os pés das crianças da periferia, então sim, o povo passa a existir nas manchetes da imprensa de esquerda. Da imprensa marrom, enfim, pura demagogia. Aliada às bombas dos subversivos, não esquecer esses bastardos que parecem ratos - suspirou o Secretário percorrendo languidamente os botões do colete. Desabotoou o último: -  No Egito Antigo resolveram esse problema aumentando o número de gatos. Não sei  por que aqui não se exige mais da iniciativa privativa, se cada família tivesse em casa um ou dois gatos esfaimados...

    - Mas Excelência, não sobrou nenhum gato na cidade, já faz tempo que a população comeu tudo. Ouvi dizer que dava um ótimo cozido!

    - Enfim - sussurrou o Secretário esboçando um gesto que não completou: - Está escurecendo, não?

    O jovem levantou-se para acender as luzes. Seus olhos sorriam intensamente:

    - E à noite, todos os gatos são pardos! - Depois, sério: - Quase sete horas, Excelência. O jantar será servido às oito, a mesa decorada só com orquídeas e frutas, a mais fina cor local, encomendei do norte abacaxis belíssimos! E as lagostas, então? O Cozinheiro-Chefe ficou entusiasmado, nunca viu lagostas tão grandes. Bueno, eu tinha pensado num vinho nacional que anda de primeiríssima qualidade, diga-se de passagem, mas me veio um certo receio: e se der alguma dor de cabeça? Por um desses azares, Vossa Excelência já imaginou? Então achei prudente encomendar vinho chileno.

    - De que safra?

    - De Pinochet, naturalmente.

    O Secretário do Bem-Estar Público e Privado baixou o olhar ressentido para o próprio pé.

    - Para mim um caldo sem sal, uma canjinha rala. Mais tarde talvez um... - Emudeceu. A cara pasmada foi-se voltando para o jovem: - Está ouvindo agora? Está mais forte, ouviu isso? Fortíssimo!

    O Chefe das Relações Públicas levantou-se de um salto. Apertou entre as mãos a cara ruborizada:

    - Mas claro, Excelência, está repercutindo aqui no assoalho, o assoalho está tremendo! Mas o que é isso?!

    - Eu não disse, eu não disse? - perguntou o Secretário. Parecia satisfeito: - Nunca me enganei, nunca! Já faz horas que estou ouvindo coisas mas não queria dizer nada, podiam pensar que fosse delírio, olha aí agora! Parece até que estamos em zona vulcânica, como se um vulcão fosse irromper aqui embaixo...

    - Vulcão?

    - Ou uma bomba, tem bombas que antes de explodir dão avisos!

    - Meu Deus - exclamou o jovem. Correu para a porta. - Vou verificar imediatamente, Excelência, não se preocupe, não há de ser nada, com licença, volto logo. Meu Deus, zona vulcânica?!...

    Quando fechou a porta atrás de si, abriu-se a porta em frente e pela abertura introduziu-se uma carinha louramente risonha. Os cabelos estavam presos no alto por um laçarote de bolinhas amarelas.

    - What is that?

    - Perhaps nothing... perhaps something... - respondeu ele abrindo o sorriso automático. Acenou-lhe com um frêmito de dedos imitando asas. - Supper at eight, Miss Gloria!

    Apressou o passo quando viu o Diretor das Classes Conservadoras Desarmadas e Armadas que vinha com seu chambre de veludo verde. Encolheu-se para lhe dar passagem, fez uma mesura, "Excelência"... e quis prosseguir mas teve a passagem barrada pela montanha veludosa:

    - Que barulho é esse?

    - Bueno, também não sei dizer, Excelência, é o que vou verificar, volto num instante, não é mesmo estranho? Tão forte!

    O Diretor das Classes Conservadoras Desarmadas e Armadas farejou o ar:

    - E esse cheiro? O barulho diminuiu mas não está sentindo um cheiro? - Franziu a cara: - Uma maçada! Cheiros, barulhos... E o telefone que não funciona, por que o telefone não está funcionando? Preciso me comunicar com a Presidência e não consigo, o telefone está mudo!

    - Mudo? Mas fiz dezenas de ligações hoje cedo... Vossa Excelência já experimentou o do Salão Azul?

    - Venho de lá, também está mudo, uma maçada! Procure meu motorista, veja se o telefone do meu carro está funcionando, tenho que fazer esse ligação urgente.

    - Fique tranquilo, Excelência. Vou tomar providências e volto em seguida, com licença, sim? - fez o jovem, esgueirando-se numa mesura rápida. Enveredou pela escada. Parou no primeiro lance: - Mas o que significa isso? Pode me dizer o que significa isso?

    Esbaforido, sem o gorro e com o avental rasgado, o Cozinheiro-Chefe veio correndo pelo saguão. O jovem fez um gesto enérgico e precipitou-se ao seu encontro:

    - Como é que o senhor entra aqui neste estado?

    O homem limpou no peito as mãos sujas de suco de tomate:

    - Aconteceu uma coisa horrível, doutor! Uma coisa horrível!

    - Não grita, o senhor está gritando, calma - e o jovem tomou o Cozinheiro-Chefe pelo braço, arrastou-o a um canto: - Controle-se, mas o que foi? Sem gritar, não quero histerismo, vamos, calma, o que foi?

    - As lagostas, as galinhas, as batatas, eles comeram tudo! Tudo! Não sobrou nem um grão de arroz na panela, comeram tudo e o que não tiveram tempo de comer, levaram embora!

    - Mas quem comeu tudo? Quem?

    - Os ratos, doutor, os ratos!

    - Ratos? ... Que ratos?

    O Cozinheiro-Chefe tirou o avental, embolou-o nas mãos:

    - Vou-me embora, não fico aqui nem mais um minuto, acho que a gente está no mundo deles, pela alma da minha mãe, quase morri de susto quando entrou  aquela nuvem pela porta, pela janela, pelo teto, só faltou me levar e mais a Euclídea! Até os panos de parto eles comeram, só respeitaram a geladeira que estava fechada, mas a cozinha ficou limpa, limpa!

    - Ainda estão lá?

    - Não, assim como entrou, saiu tudo guinchando feito doido, eu já estava ouvindo fazia um tempinho aquele barulho, me representou um veio d'água correndo forte debaixo do chão, depois martelou, assobiou, a Euclídea que estava batendo maionese pensou que fosse um fantasma quando começou aquela tremedeira e na mesma hora entrou aquilo tudo pela janela, pela porta, não teve lugar que a gente olhasse que não desse com o monte deles, guinchando! E cada ratão, viu! Deste tamanho! A Euclídea pulou em cima do fogão, eu pulei em cima da mesa, ainda quis arrancar uma galinha que um deles ia levando assim no meu nariz, taquei o vidro de suco de tomate com toda força e ele botou a galinha de lado, ficou de pé na pata traseira e me enfrentou feito um homem, pela alma da minha mãe, doutor, me representou um homem vestido de rato!

    - Meu Deus, que loucura... E o jantar?!

    - Jantar? O senhor disse jantar? Não ficou nem uma cebola! Uma trempe deles virou o caldeirão de lagostas e a lagostada se espalhou no chão, foi aquela festa, não sei como não queimaram na água fervendo, cruz-credo, vou-me embora e é já!

    - Espera, calma! E os empregados? Ficaram sabendo?

    - Empregados, doutor? Empregados? Todo mundo já foi embora, ninguém é louco e se eu fosse vocês também me mandava, viu? Não fico aqui nem que me matem!

    - Um momento, espera! O importante é não perder a cabeça, está me compreendendo? O senhor volta lá, abre as latas que as latas ainda ficaram, não ficaram? A geladeira não estava fechada? Então, deve ter alguma coisa, prepare um jantar com o que puder, evidente!

    - Não, não! Não fico nem que me matem!

    - Espera, eu estou falando: o senhor vai voltar e cumprir sua obrigação, o importante é que os convidados não fiquem sabendo de nada, disso me incumbo eu, está me compreendendo? Vou já até a cidade, trago um estoque de alimentos e uma escolta de homens armados até os dentes, quero ver se vai entrar um mísero camundongo nesta casa, quero ver!

    - Mas o senhor vai como? Só se for a pé, doutor.

    O Chefe das Relações Públicas empertigou-se. A cara se tingiu de cólera. Apertou os olhinhos e fechou os punhos para soquear a parede mas interrompeu o gesto quando ouviu vozes no andar superior. Falou quase entre dentes:

    - Covardes, miseráveis! Quer dizer que os empregados levaram todos os carros? Foi isso, levaram os carros?

    - Levaram nada, fugiram a pé mesmo, nenhum carro está funcionando, o José experimentou um por um, viu? Os fios foram comidos, comeram também os fios. Vocês fiquem aí que eu vou pegar a estrada e é já!

    O jovem encostou-se na parede, a cara agora estava lívida. "Quer dizer que o telefone..." - murmurou e cravou o olhar estatelado no avental que o Cozinheiro-Chefe largou no chão. As vozes no andar superior começaram a se cruzar. Uma porta bateu com força. Encolheu-se mais no canto quando ouviu seu nome: era chamado aos gritos. Com olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no tapete: o chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápido como se tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível. Foi a última coisa que viu porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus alicerces. As luzes se apagaram. Então deu-se a invasão, jorrando espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados na treva dura de músculos, guinchos e centelhas de olhos luzindo negríssimos. Quando a primeira dentada lhe arrancou um pedaço da calça, ele correu sobre o chão enovelado, entrou na cozinha com os ratos despencando na sua cabeça e abriu a geladeira. Arrancou as prateleiras que foi encontrando na escuridão, jogou as latarias para o ar, esgrimou com uma garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras, expulsou-os e num salto, pulou lá dentro. Fechou a porta mas deixou o dedo na fresta, que a porta não batesse. Quando sentiu a primeira agulhada na ponta do dedo que ficou de fora, substituiu o dedo pela gravata.

    No rigoroso inquérito que se processou para se apurar os acontecimentos daquela noite, o Chefe das Relações Públicas jamais pôde precisar quanto tempo teria ficado dentro da geladeira, enrodilhado como um feto, a água gelada pingando na cabeça, as mãos endurecidas de câimbra, a boca aberta no mínimo vão da porta que de vez em quando algum focinho tentava forcejar. Lembrava-se, isso sim, de um súbito silêncio que se fez no casarão: nenhum som, nenhum movimento. Nada. Abriu a porta da geladeira, espiou. Um tênue raio de luar era a única presença na cozinha esvaziada. Foi andando pela casa completamente oca, nem móveis, nem cortinas, nem tapetes. Só as paredes. E a escuridão. Começou então um murmurejo secreto, rascante, que parecia vir da Sala de Debates e teve a intuição de que estavam todos reunidos ali, de portas fechadas. Não se lembrava sequer como conseguiu chegar até o campo, não poderia jamais reconstituir a corrida, correu quilômetros. Quando olhou para trás, o casarão estava todo iluminado.


Conto de Lygia Fagundes Telles retirado do livro Seminário dos Ratos, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 7ª Edição, 1984.

sábado, 9 de abril de 2022

Insegurança e Medo

    O homem é as suas memórias, o somatório das experiências que se lhe armazenam no inconsciente, estabelecendo as linhas do seu comportamento moral, social, educacional.

    Essas memórias constituem-lhe o que convém e o que não é lícito realizar.

    Concorrem para a libertação ou a submissão aos códigos estabelecidos, que propõem o correto e o errado, o moral, o legal, o conveniente e o prejudicial.

    Em face de tais impositivos desencadeiam-se, no seu comportamento, as fobias, as ansiedades, as satisfações, o bem ou o mal-estar.

    Neste momento social, o medo assume avantajadas proporções, perturbando a liberdade pessoal e comunitária do indivíduo terrestre.

    Procurando liberar-se desse terrível algoz, as suas vítimas intentam descobrir-lhe as causas, as raízes que alimentam a sua proliferação. Todavia, essas são facilmente detectáveis. Estão constituídas pela insegurança gerada pela violência, pelo desequilíbrio social vigente, pela fragilidade da vida física - saúde em deterioramento, equilíbrio em dissolução, afetividade sob ameaça, receio de serem desvelados ao público os engodos e erros praticados às escondidas, e, por fim, a presença invisível da morte...

    Mais importante do que pensar e repensar as causas do medo é a atitude saudável, ante uma conduta existencial tranquila, pelo fruir cada momento em plenitude, sem memória do passado - evitando o padrão atemorizante - nem preocupação com o futuro.

    A existência humana deve transcorrer dentro de um esquema atemporal, sem passado, sem futuro, num interminável presente.

    Não transfiras para depois a execução de tarefas ou decisões nenhumas.

    Toma a atitude natural do momento e age conforme as circunstâncias, as possibilidades.

    Cada instante, vive-o, totalmente, sem aguardar o que virá ou lamentar o que se foi.

    Descobrirás que assim agindo, sem constrições, nem pressas ou postergações, te sentirás interiormente livre, pois que somente em liberdade o medo desaparece.

    Não aguardes, nem busques a liberdade. Realiza-a na consciência plena, que age de forma responsável e tranquiliza os sentimentos.

    O medo desfigura e entorpece a realidade. Agiganta e avoluma insignificâncias, produzindo fantasmas onde apenas suspeitas se apresentam.

    É responsável pela ansiedade - medo de perder isto ou aquilo - sem dar-te conta que somente se perde o que se não tem, portanto, o que não faz falta.

    A ação consciente, prolongando-se pelo fio das horas, anula o medo, por não facultar a medida do comportamento nas memórias pessoais ou sociais.

    Simão Pedro, por medo dos poderosos do seu tempo, negou o Amigo que o amava e a Quem amava

    Judas, por medo que Ele não levasse a cabo os compromissos assumidos, vendeu o Benfeitor.

    Os beneficiários das mãos misericordiosas de Jesus, por medo se omitiram, quando Ele foi levado ao sublime holocausto.

    Pilatos, por medo, indeciso e pusilânime, lavou as mãos quanto à vida do Justo.

    (...) E Anás, Caifás, a turbamulta, com medo do Homem Livre, resolveram crucificá-lO, mediante o hediondo e covarde conciliábulo da própria miséria moral que os caracterizava.

    Ele, porém, não teve medo.

    Pensa e busca-O, libertando-te do medo e seguindo-O, em consciência tranquila, por cujo comportamento te sentirás pleno, em harmonia.


Retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 5ª Edição.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

As Pérolas

    Demoradamente ele a examinava pelo espelho. "Está mais magra, pensou. Mas está mais bonita." Quando a visse, Roberto também pensaria o mesmo: "Está mais  bonita assim".

    Que iria acontecer? Tadeu desviou o olhar para o chão. Pressentia a cena e com que nitidez: com naturalidade Roberto a levaria para a varanda e ambos se debruçariam no gradil. De dentro da casa iluminada, os sons do piano. E ali fora, no terraço deserto, os dois muito juntos se deixariam ficar olhando a noite. Conversariam? Claro que sim, mas só nos primeiros momentos. Logo atingiriam aquele estado em que as palavras são demais. Quietos e tensos, mas calados na sombra. Por quanto tempo? Impossível dizer, mas o certo é que ficariam sozinhos uma parte da festa, apoiados no gradil dentro da noite escura. Só os dois, lado a lado, em silêncio. O braço dele roçando no braço dela. O piano.

    - Tadeu, você está se sentindo bem? Que é, Tadeu?

        Ele estremeceu. Agora Lavínia o examinava pelo espelho.

    - Eu? Não se preocupe - disse ele, passando as pontas dos dedos pelo rosto. - Preciso fazer a barba...

    - Tadeu, você não me respondeu - insistiu ela. - Você está bem?

    - Claro que estou bem.

    A ociosidade, a miserável ociosidade daqueles interrogatórios. "Você está bem?" O sorriso postiço. "Estou bem." A insistência era necessária. "Bem mesmo?" Oh Deus. "Bem mesmo." A pergunta exasperante: " Você quer alguma coisa?" A resposta invariável: "Não quero nada".

    "Não quero nada, isto é, quero viver. Apenas viver, minha querida, viver..." Com um movimento brando, ele ajeitou a cabeça no espaldar da poltrona. Parecia simples, não? Apenas viver. Esfregou a face na almofada de cretone. Relaxou os músculos. Uma ligeira vertigem turvou-lhe a visão. Fechou os olhos quando as tábuas do teto se comprimiram num balanço de onda. Esboçou um gesto impreciso em direção à mulher.

    - Sinto-me tão bem.

    - Pensei que você estivesse com alguma dor.

    - Dor? Não. Eu estava mas era pensando.

    Lavínia penteava os cabelos. Inclinara-se mais sobre a mesinha, de modo a poder ver melhor o marido que continuava estirado na sua poltrona, colocada um pouco atrás e à direita da banqueta na qual ela estava sentada.

    - Pensando em coisas tristes?

    - Não, até que não... - respondeu ele. Seria triste pensar, por exemplo, que enquanto ele ia apodrecer na terra ela caminharia ao sol de mãos dadas com outro? Hem?...

    Era verdadeiramente espantosa a nitidez com que imaginava a cena: o piano inesgotável, o ar morno da noite de outubro, tinha ainda que ser outubro com aquele perfume indefinível da primavera. A folhagem parada. E os dois, ombro a ombro, palpitantes e controlados, olhos fixos na escuridão. "Lavínia e Roberto já foram embora?" - perguntaria alguém num sussurro. A resposta sussurrante, pesada de reticências: "Estão lá fora na varanda".

    Cruzando os braços com um gesto brusco, ele esfregou o pijama nas axilas molhadas. Disfarçou o gesto e ali ficou alisando as axilas, como se sentisse uma vaga coceira. Cerrou os dentes. Por que nenhum convidado entrava naquele terraço? Por que não se rompiam, com estrépito, as cordas do piano? Ao menos - ao menos! - por que não desabava uma tempestade?

    - A noite está firme?

    - Firmíssima. Até lua tem.

        Ele riu:

    - Imagine, até isso.

        Lavínia apoiou o queixo nas mãos entrelaçadas. Lançou-lhe um olhar inquieto.

    - Tadeu, que mistério é esse?

    - Não tem mistério nenhum, meu amor. Ao contrário, tudo me parece tão simples! Mas vamos, não se importe comigo, estou brincando com minhas ideias, aquela brincadeira de ideias conexas, você sabe... - Teve uma expressão sonolenta. - Mas você não vai se atrasar? Me parece que a reunião é às nove. Não é às nove?

    - Ai! Essa reunião. Estou com tanta vontade de ir como de me enforcar naquela porta. Vai ser uma chatice, Tadeu, as reuniões lá sempre são chatíssimas, tudo igual, os sanduíches de galinha, o uísque ruim, o ponche doce demais...

    - E Chopin, o Bóris não falha nunca. De Chopin você gosta.

    - Ah, Tadeu, não começa. Queria tanto ficar aqui com você.

    Era verdade, ela preferia ficar, ela ainda o amava. Um amor meio esgarçado, sem alegria. Mas ainda amor. Roberto não passava de uma nebulosa imprecisa e que só seus olhos assinalaram a distância. No entanto, dentro de algumas horas, na aparente candura de uma varanda... Os acontecimentos se precipitando com uma rapidez de loucura, força de pedra que dormiu milênios e de repente estourava na avalancha. E estava em suas mãos impedir. Crispou-as dentro do bolso do roupão.

    - Quero que você se distraia, Lavínia, sempre será mais divertido do que ficar aqui fechada. E depois, é possível que desta vez não seja assim tão igual. Roberto deve estar lá.

    - Roberto?

    - Roberto, sim.

        Ela teve um gesto brusco:

    - Mas Roberto está viajando! Já voltou?

    - Já, já voltou.

    - Como é que você sabe?

    - Ele telefonou outro dia, tinha me esquecido de dizer. Telefonou, queria nos visitar. Ficou de aparecer uma noite dessas.

    - Imagine... - murmurou ela, voltando-se de novo para o espelho. Com um fino pincel, pôs-se a delinear os olhos. Falou devagar, sem mover qualquer músculo da face. - Já faz mais de um ano que ele sumiu.

    - É, faz mais de um ano.

        Paciente Roberto. Pacientíssimo Roberto.

    - E não se casou por lá?

    Ele tentou vê-la através do espelho, mas agora ela baixara a cabeça. Mergulhava a ponta do pincel no vidro. Repetiu a pergunta:

    - Ele não se casou por lá? Hem?... Não se casou, Tadeu?

    - Não, não se casou.

    - Vai acabar solteirão.

    Tadeu teve um sorriso lento. Respirou penosamente, de boca aberta. E voltou o rosto para o outro lado. "Meu Deus". Apertou os olhos que foram se reduzindo, concentrados no vaso de gerânios no peitoril da janela. "Eles sabem que nem chegarei a ver este botão desabrochar". Estendeu a mão ávida em direção à planta, colheu furtivamente alguns botões. Esmigalhou-os entre os dedos. Relaxou o corpo. E cerrou os olhos, a fisionomia em paz.

    - Você vai chegar atrasada.

    - Melhor, ficarei menos tempo.

    - Vai me dizer depois se gostou ou não. Mas tem que dizer mesmo.

    - Digo, sim.

    Depois ela não lhe diria mais nada. Seria o primeiro segredo entre os dois, a primeira névoa baixando densa, mais densa, separando-os como um muro embora caminhassem lado a lado. Viu-a perdida em meio da cerração, o rosto indistinto, a forma irreal. Encolheu-se no fundo da poltrona, uma mão escondida na outra, caramujo gelado rolando na areia, solidão. "Lavínia, não me abandone já, deixe ao menos eu partir primeiro!" A boca salgada de lágrimas. "Ao menos eu partir primeiro..."Retesou o tronco, levantou a cabeça. Era cruel. "Não podem fazer isso comigo, eu ainda estou vivo, ouviram bem? Vivo!"

    - Ratos.

    - Que ratos?

    - Ratos, querida, ratos - disse e sorriu da própria voz aflautada. - Já viu um rato bem de perto? Tinha muito rato numa pensão onde morei. De dia ficavam enrustidos, mas de noite se punham insolentes, entravam nos armários, roíam o assoalho, roque-roque... Eu batia no chão para eles pararem e nas primeiras vezes eles pararam mesmo, mas depois foram se acostumando com minha batidas e no fim eu podia atirar até uma bomba que continuavam roque-roque-roque-roque... Mas aí eu também já estava acostumado. Uma noite um deles andou pela minha cara. As patinhas são frias.

    - Que coisa horrível, Tadeu!

    - Há piores.

    A varanda. Lá dentro, o piano, sons melosos escorrendo num Chopin de bairro, as notas se acavalando no desfibramento de quem pede perdão, "estou tão destreinado, esqueci tudo"! O incentivo ainda mais torpe, "ora, está tão bom, continue"! Mas nem de rastos os sons penetravam realmente no silêncio da varanda, silêncio conivente isolando os dois numa aura espessa, de se cortar com faca. Então Roberto perguntaria naquele tom interessado, tão fraterno: "E o Tadeu?" O descarado. À espera da resposta inevitável, o crápula. À espera da confissão que nem a si mesma ela tivera coragem de fazer: "Está cada vez pior". Ele pousaria de leve a mão no seu ombro, como a lhe dizer: "Eu estou ao seu lado, conte comigo". Mas não lhe diria isso, não lhe diria nada, ah, Roberto era oportuno demais para dizer qualquer coisa, ele apenas pousaria a mão no ombro dela e com esse gesto estaria dizendo tudo, "eu te amo, Lavínia, eu te amo".

    - Vou molhar os cabelos, estão secos como palha. - E voltou-se para o homem: - Tadeu, que tal um copo de leite?

        Leite. Ela lhe oferecia leite. Contraiu os maxilares.

    - Não quero nada.

    Diante do espelho, ela deslizou os dedos pelo corpo, arrepanhando o vestido nos quadris. Parecia desatenta, fatigada.

    - Está largo demais, quem sabe é melhor ir com o verde?

    - Mas você fica melhor de preto - disse ele passando a ponta da língua pelos lábios gretados.

    Roberto gostaria de vê-la assim, magra e de preto, exatamente como naquele jantar. Ela nem se lembrava mais, pelo menos ainda não se lembrava, mas ele revia como se tivesse sido na véspera, aquela noite há quase dez anos.

    Dois dias antes do casamento. Lavínia estava assim mesmo, toda vestida de preto. Como única joia, trazia seu colar de pérolas, precisamente aquele que estava ali na caixa de cristal. Roberto fora o primeiro a chegar. Estava eufórico: "Que elegância, Lavínia! Como lhe vai bem o preto, nunca te vi tão linda. Se eu fosse você, faria o vestido de noiva preto. E estas pérolas? Presente do noivo?" Sim, parecia satisfeitíssimo, mas no fundo do seu sorriso, sob a frivolidade dos galanteios, lá no fundo, só ele, Tadeu, adivinhava qualquer coisa de sombrio. Não, não era ciúme nem propriamente mágoa, mas qualquer coisa assim com o sabor sarcástico de uma advertência: "Fique com ela, fique com ela por enquanto. Depois, veremos". Depois era agora.

    A varanda, floreios de Chopin se diluindo no silêncio, vago perfume de folhagem, vago luar, tudo vago. Nítidos, só os dois, tão nítidos. Tão exatos. A conversa fragmentada, mariposas sem alvo deixando aqui e ali o pólen de prata das asas, "e aquele jantar, hem, Lavínia?" Ah, aquele jantar. "foi há mais de dez anos, não foi?" Ele demoraria para responder. "No final, você lembra? recitei Geraldy. Eu estava meio bêbado, mas disse o poema inteiro, não encontrei nada melhor para te saudar, lembra?" Ela ficaria séria. E um tanto perturbada, levaria a mão ao colar de pérolas, gesto tão seu quando não sabia o que dizer: tomava entre os dedos a conta maior do fio e ficava a rodá-la devagar. Sim, como não? Lembrava-se perfeitamente, só que o verso adquiria agora um novo sentido, não, não era mais o cumprimento galante para arreliar o noivo. Era a confissão profunda, grave: "Se eu te amasse, se tu me amasses, como nós nos amaríamos!"

    - Podia usar o cinto - murmurou ela, voltando a apanhar o vestido nas costas. Dirigiu-se ao banheiro. - Paciência, ninguém vai reparar muito em mim.

    "Só Roberto", ele quis dizer. Esfregou vagarosamente as mãos. Examinou as unhas. "Têm que estar muito limpas", lembrou, entrelaçando os dedos. Levou as mãos ao peito e vagou o olhar pela mesa: a esponja, o perfume, a escova, os grampos, o colar de pérolas... Através do vidro da caixa, ele via o colar. Ali estavam as pérolas que tinham atraído a atenção de Roberto, rosadas e falsas, mas singularmente brilhantes. Voltando ao quarto, ela poria o colar, distraída, inconsciente ainda de tudo quanto a esperava. No entanto, se lhe pedisse, "Lavínia, não vá", se lhe dissesse isto uma única vez, "não vá, fica comigo!"

    Vergou o tronco até tocar o queixo nos joelhos, o suor escorrendo ativo pela testa, pelo pescoço, a boca retorcida, "meu Deus!" O quarto rodopiava e numa das voltas sentiu-se arremessado pelo espaço, uma pedra sumindo aguda até o limite do grito. E a queda desamparada no infinito, "Lavínia, Lavínia!..." Fechou os olhos e tombou no fundo da poltrona, tão gelado e tão exausto que só pôde desejar que Lavínia não entrasse naquele instante, não queria que ela o encontrasse assim, o boca ainda escancarada na convulsão da náusea. Puxou o xale até o pescoço. Agora era o cansaço atroz que o fazia sentir-se uma coisa miserável, sem forças sequer para abrir os olhos. "Meu Deus." Passou a mão na testa, mas a mão também estava úmida. " Meu Deus meu Deus meu Deus" - ficou repetindo meio distraidamente. Esfregou as mãos no tecido esponjoso da poltrona, acelerando o movimento. Ninguém podia ajudá-lo, ninguém. Pensou na mãe, na mulherzinha raquítica e esmolambenta que nada tivera na vida, nada a não ser aqueles olhos poderosos, desvendadores. Dela herdara o dom de pressentir. "Eu já sabia", ela costumava dizer quando vinham lhe dar as notícias. "Eu já sabia", ficava repetindo obstinadamente, apertando os olhos de cigana. "Mas, se você sabia, por que então não fez alguma coisa para impedir?! - gritava o marido, a sacudi-la como um trapo. Ela ficava menorzinha nas mãos do homem, mas cresciam assustadores os olhos de ver na distância. "Fazer o quê? Que é que eu podia fazer senão esperar?"

    "Senão esperar", murmurou ele, voltando o olhar para o fio de pérolas enrodilhadas na caixa. Ficou ouvindo a água escorrendo na torneira.

    - Você vai chegar atrasada!

    O jorro foi interceptado pelo dique do pente.

    - Não tem importância, amor.

    Num movimento ondulante, ele se pôs na beirada da poltrona, o tronco inclinado, o olhar fixo.

    - Está se esmerando, hem?

    - Nada disso, é que não acerto com o penteado.

    - Seus grampos ficaram aqui. Você não quer os grampos? - disse ele. E num salto, aproximou-se da mesa, apanhou o colar de pérolas, meteu-o no bolso e voltou à poltrona. - Não vai precisar de grampos?

    - Não, já acabei, até que ficou melhor do que eu esperava.

    Ele respirou de boca aberta, arquejante. Sorriu quando a viu entrar.

    - Ficou lindo. Gosto tanto quando você prende o cabelo.

    - Não vejo é o meu colar - murmurou ela, abrindo a caixa de cristal. Franziu as sobrancelhas: - Parece ainda agora estava por aqui...

    - O de pérolas? Parece que vi também. Mas não está dentro da caixa?

    - Não, não está. Que coisa mais misteriosa! Eu tinha quase certeza...

        Agora ela revolvia as gavetas. Abriu caixas, apalpou os bolsos das roupas.

    - Não se preocupe com isso, meu bem, você deve ter esquecido em algum lugar. Já é tarde, procuraremos amanhã - disse ele, baixando os olhos. Brincou com o pingente da cortina. - Prometi te dar um colar verdadeiro, lembra, Lavínia? E nunca pude cumprir a promessa.

    Ela remexia as gavetas da cômoda. Tirou a tampa de uma caixinha prateada, despejou-a e ficou olhando para o fundo de veludo da caixa vazia.

    - Eu tinha ideia que... - Voltou até a mesa, abriu pensativa o frasco de perfume, umedeceu as pontas dos dedos. Tapou o frasco e levou a mão ao pescoço. - Mas não é mesmo incrível?

    - Decerto você guardou noutro lugar e esqueceu.

    - Não, não, ele estava por aqui, tenho quase a certeza de que há pouco... - Sorriu voltando-se para o espelho. Interrogou o espelho. - Ou foi mesmo noutro lugar? Ah! Já sei - suspirou, apanhando a carteira. Escovou com cuidado a seda já puída. - Que pena, o colar faz falta quando ponho este vestido, nenhum outro serve, só ele.

    - Faz falta, sim - murmurou Tadeu, segurando com firmeza o colar no fundo do bolso. E riu. - Que loucura.

    - Hum? Que foi que você disse?

    Tudo ia acontecer como ele previra, tudo ia se desenrolar com a naturalidade do inevitável, mas alguma coisa ele conseguira modificar, alguma coisa ele subtraíra da cena e agora estava aí na sua mão: um acessório, um mesquinho acessório mas indispensável para completar o quadro. Tinha a varanda, tinha Chopin, tinha o luar, mas faltavam as pérolas.

    - Como pode ser, Tadeu? Posso jurar que vi por aqui mesmo!

    - Vamos, meu bem, não pense mais nisso. Umas pobres pérolas. Ainda te darei pérolas verdadeiras nem que tenha que ir buscá-las no fundo do mar!

    Ela afagou-lhe os cabelos. Ajeitou o xale para cobrir-lhe os pés e animou-se também.

    - Pérolas da nossa ilha, hem, Tadeu?

    - Da nossa ilha. Um colar compridíssimo, milhares e milhares de voltas.

    Baixando os olhos brilhantes de lágrimas, ela inclinou-se para beijá-lo.

    - Não demoro.

    Quando a viu desaparecer, ele tirou o colar do bolso. Apertou-o fortemente, tentando triturá-lo, mas ao ver que as pérolas resistiam, escapando-lhe por entre os dedos, sacudiu-as com violência na gruta da mão. O entrechocar das contas produzia um som semelhante a uma risada. Sacudiu-as mais e riu: era como se tivesse prendido um duendezinho que agora se divertia em soltar risadinhas rosadas e falsas. Ficou sacudindo as pérolas, levando-as junto do ouvido. "Peguei-o, peguei-o" - murmurou, soprando malicioso pelo vão das mãos em concha. Ergueu-se e ficou sério, os olhos escancarados, voltando para o ruído do portão de ferro se fechando.

    - Lavínia! Lavínia! - ele gritou, correndo até a janela. Abriu-a. - Lavínia, espere!

    Ela parou no meio da calçada e ergueu a cabeça, assustada. Retrocedeu. Ele teve um olhar tranquilo para a mulher banhada de luar.

    - Que foi, Tadeu? Que foi?

    - Achei seu colar de pérolas. Tome - disse, estendendo o braço. Deixou que o fio lhe escorresse por entre os dedos.


Conto de Lygia Fagundes Telles retirado do livro/coletânea Oito Contos de Amor, Editora Ática, 1996.