quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Psicologia Humanista

Para grande parte dos psicólogos, "a Psicologia Humanista resgata a individualidade, a subjetividade, as emoções próprias e particularidades de cada ser humano". Ideias defendidas por vários profissionais e, com maior veemência, por Carl Rogers.


"O Humanismo não é uma Escola de Pensamento, mas sim um aglomerado de diversas correntes teóricas", destaca uma das maiores comunidades de psicólogos do Brasil, reunida no site www.psicoloucos.com . Ao explicarem a origem desta corrente da psicologia, os profissionais declaram que foi fundada por Abraham Maslow, mas foi o psicanalista americano Carl Rogers, o maior expoente da obra humanista. "Depois de anos a finco praticando psicanálise, ele notou que seu estilo de terapia se diferenciara muito da psicanalítica formal. Ele utilizava outros métodos, como a fala livre, com poucas intervenções, e o aspecto do sentimento, tanto do paciente, como do terapeuta. Deu-se conta de que o paciente era detentor de seu tratamento", esclarecem. Eles acrescentam que Rogers apresentou três conceitos, que seriam agregados posteriormente para toda a Psicologia: "a congruência (ser o que se sente, sem mentir para si e para os outros), a empatia (capacidade de sentir o que o outro quer dizer, e de entender o seu sentimento), e a aceitação incondicional (aceitar o outro como este é, seus defeitos, angústias, etc.)."

Os acadêmicos e autores Adriana Furtado Holanda, William Barbosa Gomes e Gustavo Gauer, em Psicologia Humanista no Brasil (www.ufrgs.br), confirmam o sentido amplo do humanismo que transcende a psicologia. Segundo eles, este termo não sintetiza apenas a teoria, ou método, filosofia, e nem mesmo só uma vertente da psicologia. "É um movimento implícito na historicidade das ideias que aflora com maior ou menor intensidade de tempos em tempos. Enquanto mensagem, alcança uma variedade de grupos, dos mais diferentes modos, em função de um estado de opressão individual e social. Enquanto força de mobilização, pode estar na base da busca individual por mudança de sentido de vida, ou na mobilização de grandes massas por justiça e reformas sociais", destacam. 

Os autores acrescentam que "os humanismos têm em comum a ênfase no valor da individualidade. O humanismo individual, mais claramente identificado com o que se reconhece como psicologia humanista, tem como meta a promoção de revoluções individuais, isto é, o rompimento com um estilo de vida e com uma maneira de pensar. Em, contraste, o humanismo social, mais claramente identificado com uma psicologia sócio-histórica, é anti-individualista e enfatiza a união de forças em grandes movimentos solidários na promoção de mudanças sociais. Ambos os humanistas estão comprometidos com a melhoria da qualidade de vida".

Segundo os professores, "o aparecimento dos estudos da personalidade, como um esforço integrativo diante da dispersão e fragmentação das pesquisas em processos básicos, recuperou a centralidade da experiência  consciente para a Psicologia. A tendência foi representada pelos trabalhos de Eduard Spranger (1882-1963) e William Stern (1871-1938), na Alemanha; e de Gordon Allport (1897-1967), Abraham Maslow (1908-1970), Rollo May (1909-1994), Charlotte Bühler (1893-1974), e Carl Rogers (1902-1987), nos EUA". Eles esclarecem que esses autores, de várias formas, mas com muitos pontos em comum, sugeriram uma psicologia compreensiva capaz de "enxergar" o ser humano em sua particularidade e totalidade. "A repercussão destas ideias nos EUA deu origem a uma nova orientação no campo psicológico, que se tornou conhecida como a Terceira Força ou Psicologia Humanista. Em suma, os esforços dos experimentalistas na retomada das questões cognitivas, e dos compreensivistas na retomada das questões fenomenais e vivenciais trouxeram de volta o lugar da consciência na pesquisa e na prática psicológica", enfatizam.

Já Eugene T. Gendlin, Ph.D. da University of Chicago em "Celebrações e Problemas da Psicologia Humanista" (www.gruposerbh.com.br), conta que foi treinado por Carl Rogers e seu grupo (John Shlien, Jack Butler, Don Grummond entre outros) com quem trabalhou por onze anos. De acordo com ele, "Rogers pensava que a saúde ideia consistia na ausência de bloqueios, o funcionamento desimpedido de cada aspecto da experiência em relação com todos os demais". Ele lembra que, nos anos 50, Rogers escreveu um artigo sobre "A Pessoa em Funcionamento Pleno". O texto foi aceito, mas o editor insistiu na inserção de um parágrafo seu no início, explicando a sua discordância. Rogers retirou o artigo. Esta e outras experiências levaram Gendlin a iniciar uma nova revista, Psicoterapia: Teoria, Pesquisa e Prática. Ele diz que em 1963 publicou o texto de Rogers em seu primeiro volume.

O companheiro do revolucionário psicólogo norte-americano destaca que Rogers foi contrário a praticamente tudo o que parecia conhecido no campo da psicoterapia. "Ele modificou o papel do terapeuta, que não deveria impor as suas interpretações. (Qualquer pessoa pode pensar em duas ou mais interpretações das coisas humanas). Já não se pensava mais em 'bons' terapeutas que olhavam para os seus pacientes 'doentes' de cima para baixo. O paciente deixava de ser um objeto passivo de 'tratamento'. Rogers mudou o próprio termo 'paciente' para 'cliente'. Eliminou o modelo médico e tirou o novo termo do campo do Direito. 'O advogado é um especialista e um ponto de apoio, mas não quem toma as decisões que concernem à vida do cliente".

Além disso, conta Gendlin, os clientes foram convidados a irem fundo em suas próprias experiências. "O terapeuta estava à disposição para ouvir e partilhar cada nuance da experiência dos clientes. Rogers eliminou o divã. Isso era tão incomum, que um manual daquela época dedicou uma de suas poucas figuras a uma foto de duas pessoas sentadas, separadas por uma mesa. Tratava-se de uma figura da Terapia Centrada no Cliente! Ele eliminou o diagnóstico, a história do paciente, a tomada de notas durante a sessão, o distanciamento clínico, e todas as frias atitudes clássicas. Alguém que se graduava por intermédio de seus programas, tornava-se um novo tipo de psicólogo. Rogers criou um ponto de partida completamente renovado. Isso requereu uma imensa coragem", conclui.


Texto de Denise Berto retirado da Revista/Encarte Grande Ícones do Conhecimento, número 07, Mythos Editora, São Paulo.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Negrume da Noite

 O negrume da noite

Reluziu o dia o perfil azeviche

Que a negritude criou

Constitui o universo de beleza

Explorado pela raça negra

Por isso o negro lutou

E acabou invejado e se consagrou

Ilê, Ilê, Ilê,

Tu és o senhor dessa grande nação

E hoje os negros clamam

A bênção, a bênção, a bênção


Odé comorodé

Ode are re odé

Comorodé ode ode are re


Música Paulinho do Reco e Cuiuba gravada por Virgínia Rodrigues em seu CD de estreia intitulado Sol Negro, lançado em 1997 pela Gravadora Natasha Records.

domingo, 19 de novembro de 2023

Carl Rogers 2

Carl Rogers é um dos grandes nomes da Psicologia. Cabe a ele o desenvolvimento de um método psicoterapêutico centralizado na pessoa. Possuía também preocupações com as situações de opressão política e conflitos sociais.


Carl Rogers é um dos eminentes psicólogos norte-americanos de sua geração. Com uma concepção pouco comum sobre a  natureza humana, elaborou uma psicoterapia original, que mais tarde deu origem a uma visão muito pessoal sobre a educação.

Rogers é um dos fundadores da abordagem humanista da psicologia com ênfase na pesquisa em psicoterapia. Ele ficou famoso por desenvolver um método psicoterapêutico centrado no próprio indivíduo. Segundo o seu pensamento, o terapeuta deveria desenvolver uma relação de confiança com o paciente, para que ele encontrasse sozinho a sua própria cura.

Fred Zimring, em Carl Rogers (Editora Massangana), descreve que "seu procedimento terapêutico provocou muitas controvérsias. Seu método correspondia à ideia que ele tinha da natureza humana. Considerava que cada pessoa possui a capacidade de se autoatualizar, a qual, uma vez liberada, lhe permitiria resolver os seus problemas. O terapeuta, segundo ele, mais do que agir como um especialista que compreende o problema e decide sobre a maneira de resolvê-lo, deve liberar o potencial que o paciente possui para resolver, por si mesmo, os seus problemas. Rogers prefere utilizar a palavra "cliente", em vez de paciente. É uma concepção de terapia que não poderia deixar de suscitar controvérsia, porque ela caminhava no sentido contrário da ideia, geralmente disseminada no seio da profissão, segunda a qual o paciente, ou o cliente, necessita de um especialista para resolver os seus problemas".

Rogers desenvolveu os seus conceitos humanísticos quando trabalhou com crianças problemáticas e abusadas. Assim, ele tentou mudar o panorama do mundo da psicoterapia, afirmando de forma corajosa e inovadora que psicanalistas, terapeutas experimentais e comportamentais estavam impedindo seus clientes de nunca atingir a autorrealização e o autocrescimento, devido à sua análise autoritária. Para ele, os terapeutas deveriam permitir que os pacientes descobrissem as suas soluções pessoais.

Por meio de esforços extensivos em expressar a sua teoria da personalidade por meio da publicação de livros e palestras, ele ganhou muita atenção e seguidores. Entretanto, o seu trabalho também teve a oposição de muitos estudiosos.

Quando Carl Rogers começou a exercer o seu trabalho como terapeuta, a psicoterapia nos Estados Unidos era uma atividade reservada exclusivamente aos médicos. Entretanto, ele era contra esta situação, pois considerava que a atividade deveria ser exercida por aqueles que tivessem formação em Psicologia.


Vida


Carl Ransom Rogers nasceu em 1902, em Oak Park, Illinois, subúrbio de Chicago; era o quarto dos seis filhos do casal Walter A. Rogers, um engenheiro civil bem sucedido e Julie Cushing, uma dona de casa dedicada. Sua família era extremamente unida, religiosa (cristianismo protestante) e fechada.

De acordo com os seus biógrafos, seus pais controlavam o comportamento dos filhos de uma forma sutil. Entretanto, apesar das restrições sociais, Rogers e seus irmãos recebiam incentivos intelectuais dos pais. Assim, Rogers foi criado em um ambiente religioso ético, e se tornou uma pessoa independente, disciplinada, porém muito isolado socialmente.

Aos doze anos, mudou-se com a família para uma fazenda a cerca de 30 km de Chicago, onde passou a adolescência. A mudança para o campo se deu porque seu pai pretendia afastar os filhos das más influências da vida na cidade. Foi ali que Rogers desenvolveu um interesse pelos métodos experimentais e passou a sentir atração e respeito pelo desenvolvimento do conhecimento e pela forma científica de se abordar um problema.

Diante desses fatos, é perfeitamente natural compreender que Rogers inclinou-se para trabalhos voltados à agricultura. Em 1919, ingressou no curso de Agronomia, na Universidade de Wisconsin. Pouco depois se interessou pelos meios evangélicos e mudou para o curso de História, com o intuito de dedicar-se posteriormente à carreira religiosa.

Nessa época, ele foi escolhido para participar, em Pequim, do Congresso Internacional da Federação Mundial de Estudantes Cristãos. Rogers permaneceu seis meses na cidade, onde viveu experiências inovadoras que ampliaram o seu pensamento. Ele passou a duvidar e a questionar algumas de suas ideias religiosas básicas. Assim, abandonou parte de suas convicções. Em sua obra Tornar-se Pessoa (Martins Fontes) ele diz: "fui forçado a admitir e a compreender como é que pessoas sinceras e honestas podiam acreditar em doutrinas religiosas muito divergentes. Emancipei-me pela primeira vez da atitude religiosa dos meus pais e vi que já não os podia seguir (...) compreendi que foi nesse momento, mais do que em qualquer outro, que me tornei uma pessoa independente".

Quando concluiu sua graduação em História, em 1924, ele frequentou o Seminário da União Teológica em Nova Iorque, conhecido por suas concepções liberais e, ao mesmo tempo, academicamente bem conceituado. "Lá, Rogers tem contato com disciplinas do curso de Psicologia e decide transferir-se para o Teachers College da Universidade da Columbia para frequentar o curso de Psicologia Clínica e Psicopedagogia", diz Mariana Tavares em Carl Ransom Rogers - Uma trajetória de vida inspiradora (carlrogers.org.br). "Foi influenciado pela filosofia de Dewey e pela psicóloga Leta Hollingworth. Obteve seu grau de mestre em 1928 e doutor em 1931. Suas primeiras experiências clínicas e psicoterápicas ocorreram no Instituto de Aconselhamento Infantil de Nova Iorque, de forte orientação psicanalítica. Rogers pôde perceber uma clara incompatibilidade entre o pensamento freudiano e as ideias fortemente estatísticas do Teachers' College. Segundo Rogers: 'nesse tempo tinha a impressão de viver em dois mundos diferentes e nunca os dois iriam se encontra'".

Rogers tornou-se especialista em psicologia clínica e, notadamente, em terapia infantil, profissão que exerceu durante doze anos, na Rochester Child Guidance Clinic. De 1935 a 1940, foi professor na Universidade de Rochester. Nessa época, lançou O Tratamento Clínico da Criança Problema, baseado em suas experiências profissionais com crianças. Em 1940, passou a lecionar Psicologia clínica na Universidade de Ohio. Dois anos depois lançou seu segundo livro Psicoterapia e Consulta Psicológica.

Atendendo a um convite, criou em 1945 um centro de aconselhamento da Universidade de Chicago. Tavares descreve que o período de 1945 a 1957 foi muito rico em experiências para Rogers, o que resultou na publicação de uma vasta bibliografia, "com destaque para a publicação do livro Terapia Centrada no Cliente (1951), que continha a sua teoria formal sobre a terapia, a sua teoria da personalidade e algumas pesquisas que corroboraram com a sua abordagem. Rogers obteve reconhecimento profissional, sendo eleito presidente da Associação Americana de Psicologia (1946) e da Academia Americana de Psicoterapeutas (1956). Recebeu um prêmio da Associação Americana de Psicologia, em 1956, por ter desenvolvido um método original para descrever e analisar o processo terapêutico, por ter formulado uma teoria da psicoterapia e dos seus efeitos na personalidade e no comportamento, susceptível de ser testada, pela extensa e sistemática pesquisa para explicitar o valor do método e explorar e testar as implicações da teoria".

De 1957 a 1963, lecionou na Universidade de Wisconsin, Madison. Nesse período escreveu a sua obra mais célebre Tornar-se Pessoa. De acordo com Tavares, o livro vendeu mais de um milhão de cópias. O sucesso se deve ao fato de não ter sido escrito exclusivamente para terapeutas, mas para todos os interessados em relacionamentos humanos, independentemente da profissão. Na obra, ele "explora a aplicação dos princípios da Terapia Centrada no Cliente em outros domínios humanos como a educação, as relações impessoais, familiares e criatividade. Rogers aproxima a sua abordagem de uma filosofia de vida, uma maneira de ser".

Em 1964, mudou-se para La Jolla, Califórnia, devido a um trabalho no Western Behavioral Studies Institute (Instituto de Estudos Comportamentais do Oeste. Ele ficou ali até sua morte, em 1987.


Método


Carl Rogers é considerado um inovador no ramo da psicologia. No início de sua carreira, ele acreditava ser capaz de resolver os problemas das pessoas. Da mesma forma que seus colegas de profissão, ele deveria controlar a relação com o paciente, analisando-o e tratando-o como se fosse um objeto. Entretanto, percebeu a ineficácia deste método, pois o avanço do tratamento dependia da profundidade do entendimento e da sinceridade entre os dois indivíduos sentados em um consultório. Assim, concluiu que os resultados eram mais positivos quando ele permitia que os pacientes dirigissem o processo, dando início à forma de Terapia Centrada na Pessoa.

Segundo Tom Butler-Bowdon, em 50 Grandes Mestres da Psicologia (Universo dos Livros), no lugar de tentar "consertar" as pessoas, Rogers considerou ser mais importante escutar completamente o que eles tinham a dizer. Essa postura dava aos pacientes a oportunidade de aceitarem os seus pensamentos e, após diversas sessões, curarem a si próprias. Rogers resumia a sua filosofia em "simplesmente ser eu mesmo e deixar a outra pessoa ser ela mesma".

Outra inovação criada por Rogers está relacionada à postura do terapeuta que tradicionalmente deveria ser sempre a de uma pessoa calma e controlada que escutava os seus pacientes. "Ele afirmou o direito dos terapeutas a ter personalidade e a expressar as suas próprias emoções. Se, por exemplo, ele se sentisse hostil ou irritado não fingiria ser um médico agradável, desconectado. Se não tivesse uma resposta, não alegaria que tinha. Se a relação com o paciente deveria se apoiar na franqueza, ele pensou, deveria incluir os humores e sentimentos do profissional", explica Butler-Bowdon.

Na elaboração de seus conceitos e ideias, Rogers sofreu influências do filósofo existencialista Martins Buber e o seu conceito de "confirmar" o outro. Na verdade, Rogers tinha a ideia de que a vida é um processo fluído e que o indivíduo realizado deveria, antes de qualquer coisa, aceitar a si mesmo como um fluxo de "tornar-se" e não como alguma coisa terminada.

Assim, segundo o estudioso, cada pessoa possui em si mesmo as respostas para as suas próprias inquietações, assim como as habilidades necessárias para a resolução de seus problemas. Neste contexto, considera-se que o sentimento de pena e o determinismo seriam apenas maneiras de negar a capacidade de realização de cada pessoa.

Butler-Bowdon considera que o impacto das ideias de Carl Rogers foi muito além da psicologia. A ênfase dada à necessidade de as pessoas enxergarem a si mesmas como um processo fluído em constante transformação no lugar de uma "coisa fixa" fez parte das ideias que cercaram e envolveram a revolução da contracultura, da década de 1960. Sua influência ainda pode ser percebida nos dias de hoje em diversos trabalhos e obras de sucesso.

Atualmente é possível perceber a existência de muitos nomes para a Abordagem Baseada na Pessoa (ACP). Orientadores educacionais, pedagogos, psicólogos e até mesmo professores utilizam outros termos como, por exemplo Orientação Não Diretiva, Psicoterapia Humanista-Existencial, Terapia Centrada no Cliente, Pedagogia Centrada no Aluno, Abordagem Experiencial, Gestão Humana Existencial de Recursos Humanos, Mediação de Conflitos Sociais pela ACP, Políticos ou Raciais Centrados na Pessoa, etc.


Em nome da Paz


Carl Rogers foi muito mais que um psicólogo famoso ou um estudioso que criou teorias que marcaram profundamente o pensamento humano. Seu trabalho não ficou restrito aos meios da psicologia. Durante a década de 1950, por exemplo, foi uma das pessoas que questionou o macartismo, criticando muitos acontecimentos dessa época, considerando-os retrógrados e inadmissíveis para uma sociedade do século 20.

Suas experiências religiosas, que se iniciaram na juventude, se expandiram. Ele acreditava na possibilidade de um mundo melhor para as pessoas, sem ignorar que momentos de dor e sofrimento poderiam estar presentes na vida de qualquer um.

Zimring explica que o pensamento do psicólogo é melhor compreendido quando se considera que nasceu em uma família do meio oeste americano, onde os valores rurais eram prezados. Alguns deles, por exemplo, incentivaram a autonomia. Provavelmente devido a estas influências, ele criou a ideia de que o indivíduo agirá sempre para o seu próprio bem se ele não for obrigado a se conformar com alguma aprendizagem determinada pela sociedade. "A experiência adquirida por Rogers no meio rural o convencera sobre o vigor e sobre o caráter inelutável do crescimento, ou da germinação dos elementos naturais", diz Zimring.

Rogers, nos últimos anos de sua vida, propôs soluções para situações de opressão política e conflito social. Para tanto, realizou workshops em diversas regiões do mundo. Ele esteve com católicos e protestantes na Irlanda do Norte, Belfast, com brancos e negros na África do Sul e com os sobreviventes da ditadura. Aos 85 anos, realizou sua última viagem para a União Soviética, onde realizou palestras vivenciais com o intuito de promover a comunicação e a criatividade.

Em 1987, foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz, pouco tempo depois da sua morte que ocorreu em consequência de uma queda e uma fratura da pélvis. Este acidente deu origem a complicações no pâncreas e em poucos dias ele morreu. Seus biógrafos relatam que ele se encontrava nessa época, apesar da idade, lúcido e extremamente ativo.


Texto de Ana Elizabeth Cavalcanti retirado da Revista Grandes Ícones do Conhecimento, número 07, Mythos Editora, São Paulo.

sábado, 18 de novembro de 2023

Carl Rogers

Reconhecido como um dos mais proeminentes psicoterapeutas do século 20, o norte-americano Carl Rogers criou a Terapia Centrada na Pessoa, na qual o paciente é detentor de seu tratamento, portanto não passivo, como passa a ideia do termo paciente. Por isso, ele passou a chamá-los de "clientes". Seus métodos foram usados em várias áreas, inclusive na Educação.


Carl Rogers é a figura central na orientação humanista. Para ele, o conceito de "autorrealização" é o mais importante.

Em entrevista à Revista Veja (número 441, 1977), Rogers declarou: "O ser humano, como todos os organismos, tende a crescer e a se atualizar. É claro que todos os fatores sociais, econômicos e familiares podem interromper esse crescimento, mas a tendência fundamental é em direção ao crescimento, ao seu próprio preenchimento ou satisfação. Costumo exemplificar esse processo lembrando batatas que guardávamos no porão da nossa casa, na fazenda. Elas criaram brotos porque havia uma janelinha no quarto. Era uma tentativa inútil, mas parte da tentativa do organismo de se satisfazer. Você consegue um produto muito diferente quanto planta uma batata na terra, e comparo esse processo ao que pode ser encontrado em delinquentes e em pessoas que são tidas como doentes mentais: o modo como as suas vidas se desenvolveram pode ser muito bizarro, anormal; no entanto, tudo o que elas estão fazendo é uma tentativa para crescer, para atualizar os seus potenciais. O fato de essa tentativa causar maus resultados situa-se mais no meio ambiente do que na tendência básica do indivíduo. A pedra fundamental da psicologia humanista pelo menos como eu vejo, é, portanto essa crença de que o ser humano tem um organismo positivo e construtivo".

Ao ser questionado sobre a maneira como a psicologia humanista poderia ajudar a sociedade a resolver os seus problemas, Rogers, destacou que ela não é uma solução para todos os problemas do mundo, mas pode ajudar muito na solução dos problemas psicológicos e sociais. Pode auxiliar o indivíduo a crescer em direção a uma personalidade mais normal, mais expansiva. A psicologia humanista tem os instrumentos para reconciliar diferenças, para ajudar as pessoas a observarem os pontos de vista dos outros.


Texto de Denise Berto retirado da Revista/Encarte Grande Ícones do Conhecimento, número 07, Mythos Editora, São Paulo.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

As razões do "brasileiro"

Como o gentílico prevaleceu sobre outras formas, como "brasiliense", "brasiliano" e até "brasilês"


Por que são "brasileiros" os que nasceram neste país? De fato, não é comum que o sufixo -eiro  indique procedência, papel desempenhado, preferencialmente pelos sufixos -ense (piauiense, maranhense, brasiliense), -ês (francês, inglês, chinês, e por que não brasilês?), -ano (italiano, boliviano, peruano, e por que não brasiliano?), e -ino (argentino, nordestino, belo-horizontino, e por que não brasilino?). O sufixo -eiro geralmente designa pessoas que exercem determinadas profissões e atividades, como barbeiro, a costureira, o padeiro, o pipoqueiro, o livreiro, o sapateiro, o boiadeiro, o vaqueiro etc.

"Brasileiro" foi palavra cunhada pelos portugueses no século 16, referindo-se ao trabalhador que cortava e comercializava o pau-brasil na Colônia. Por volta de 1817, às vésperas da independência, enxergavam-se duas possibilidades para nomear o habitante da futura nação. Poderíamos nos chamar "brasilienses" ou "brasilianos".

Era aos índios, no entanto, desde o século 16, que estava reservado o gentílico "brasiliano" (bem como "brasílico"), e os nossos patrícios que viviam na Europa, minoria porém, preferiam ser chamados de "brasilienses". Assim, por falta de opção ou talvez por necessidade de autoafirmação nacionalista, assumimos o nome que nascera num clima de certo desdém: venceu a "brava gente brasileira", como cantamos no hino nacional.

Em suma, o adjetivo pátrio "brasileiro", ao lado de "mineiro", que trabalhava nas minas de Minas Gerais, e de "campineiro" (relativo à cidade de Campinas), que atuava nos descampados existentes, no século 18, entre as Vilas Jundiaí e Mogi-Mirim, significa que somos, em nossa origem, verdadeiros trabalhadores. Se quisermos adotar o tom romântico... nossa profissão mais profunda é trabalhar o Brasil, recriá-lo.


Texto de Gabriel Perissé retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Etimologia nº 2, Editora Segmento, São Paulo, Ano II, Março 2007.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Razões de Estado

Acidentes geográficos e peso da religião no cotidiano das regiões determinaram a origem dos nomes das Unidades Federativas do Brasil


Num país marcado por êxodos e migrações, em que todas as regiões estão em contínua permuta de falantes do idioma, os Estados federativos marcam suas diferenças por fronteiras mais político-econômicas do que  propriamente geográficas e linguísticas.

Das capitanias hereditárias à Constituição de 1988, que estabeleceu a  configuração moderna do país, até as divisões territoriais que geraram Tocantins e Mato Grosso do Sul, o Brasil sacramentou divisões regionais que estimularam maneiras diferentes de falar. Mas que parecem pesar menos entre duas pessoas de mesmo nível cultural de regiões distintas do que entre uma pessoa  analfabeta e outra culta de um mesmo Estado.

As contradições sociais não apagam as divisões de origem, no entanto, marcada por uma riqueza etimológica própria. Os Estados da federação têm nomes motivados po circunstâncias as mais variadas, mas em geral ligadas a acidentes geográficos ou à cultura religiosa. São ao todo 26 nomes, cada um com sua peculiaridade e sua história.


ACRE - O nome origina-se de "aqri" e "acri", formas pelas quais os exploradores da região, no século 19 transcreveram a palavra uwakuru (rio verde), do dialeto dos índios ipurinã, que designava o rio de águas barrentas e piscosas que atualmente marca a fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru.

ALAGOAS - Contam-se mais de 30 lagoas na região, motivo pelo qual é conhecido como o "paraíso das águas". O nome do Estado é uma decorrência. Do latim lacus, significando diferentes tipos de reservatório de água (cisterna, tina, bacia etc). Lagoa é uma "lacuna" (um buraco) na terra, cheia de água. Houve a prótese da sílaba "a", sem alterar o significado.

AMAPÁ - Há pelo menos duas hipóteses. Uma delas é amapá, palavra do tupi que indica "lugar de chuva" (lugar, paba, chuva, amana). A outra possibilidade é que se tratasse do nome de uma árvore da região, de cuja casca se pode extrair um látex medicinal para tratar asma e outras afecções pulmonares, bem como cicatrizar feridas.

AMAZONAS - Diz a lenda que o explorador espanhol Francisco Orellana, em meados do século 16, encontrou uma tribo de mulheres na confluência do grande rio com o rio Madeira, e as comparou com as amazonas da mitologia grega. Segundo a etimologia popular, a palavra grega amazón deriva de a("sem") mazós (seio). Imaginava-se que essas guerreiras amputassem o seio direito para manejar melhor o arco-e-flecha. O nome foi transmitido ao grande rio e deste, ao Estado.

BAHIA - Baía é trecho de litoral (maior do que enseada e menor do que golfo) em que se pode aportar com segurança. O nome "Baía de Todos os Santos" foi criado pelo cartógrafo Américo Vespúcio, em 1501, na festa católica de 1º de novembro, ao chegar na caravela comandada por Gaspar de Lemos. Especula-se que "baía" provenha do latim tardio batare, isto é, "abrir". Do antigo francês baie ("abertura") proveio a forma ibérica baya (século 15), que levou à palavra "Bahia".

CEARÁ - No século 16, foi criada a capitania do Siará. O rio Siará emprestará seu nome ao Estado. Uma das explicações para que a palavra é que proveio do tupi siará, "onde canta a jandaia", pássaro da mesma família dos papagaios. Em Iracema, José de Alencar escreve que essa ave cantava ali, com voz plangente: "E foi assim foi que um dia veio a chamar-se Ceará o rio onde crescia o coqueiro, e os campos onde serpeia o rio."

ESPÍRITO SANTO - A capitania do Espírito Santo foi doada ao fidalgo português Vasco Fernandes Coutinho, que chegou à região do domingo de Pentecostes do ano de 1535. "Espírito" vem do latim spiritus, "sopro de vento", que recebeu a conotação metafísica de "sopro vital", "alma". Teologicamente falando, o Espírito Santo é a terceira Pessoa da Santíssima Trindade.

GOIÁS - A origem para esse nome, ao que tudo indica, vincula-se à denominação da nação tupi goiaiase, que ocupava a região no final do século 16. Os índios goiás eram os "amigáveis". O termo gwa ya queria dizer "indivíduo igual", e, portanto, capaz de ser amigo.

MARANHÃO - Uma origem falsa, mas inventiva, é a frase "mar non", atribuída a supostos exploradores espanhóis ao constatarem que o rio, embora de grandes dimensões, não era mar. Uma possibilidade mais verossímil: o rio Maranhão, que passou a nomear o Estado, era chamado pelos indígenas de mara-rana, "semelhante ao mar.

MATO GROSSO (E MATO GROSSO DO SUL) - O povoamento colonial da região só começou, efetivamente, no século 17. No século seguinte, bandeirantes paulistas que percorriam a região em busca de índios e ouro, dirigindo-se para o oeste, encontraram 40 quilômetros de mato alto e espesso, quase impenetrável. O emaranhado da vegetação impressionava, por isso o apelido "mato grosso", que se tornou o nome da capitania e depois do Estado, desmembrado em dois em 1977.

MINAS GERAIS - Em oposição às minas particulares, localizadas na região dos rios das Velhas, das Mortes e dos Caetés, as minas gerais seriam aquelas encontradas em lugares longínquos, e daí o nome do Estado. Outra possibilidade é que as minas gerais eram as minas de ouro que pareciam brotar em todo lugar: Sabarabuçu, Itambé, Itabira, Ouro Preto, Ouro Branco, etc.

PARÁ - Para, em tupi, significa "rio caudaloso", e era como os índios denominavam o braço direito do Rio Amazonas. No início do século 17, os portugueses que fundaram o forte do Presépio, origem da cidade de Belém, batizaram a capitania de Feliz Lusitânia. O nome não vingou e foi substituído pelo de Grão-Pará (grande rio). Mais tarde, simplesmente Pará.

PARAÍBA - O Rio Paraíba recebeu esse nome do tupi: para, "rio caudaloso" + iba, "ruim", "feio", "impraticável". Rio ruim é aquele que não se presta à navegação. A capitania e depois o Estado herdaram o nome.

PARANÁ - Do tupi-guarani para e rana - parana, isto é, rio semelhante a um "rio caudaloso", muitas vezes equiparado à noção de mar.

PERNAMBUCO - Paranampuko, em tupi, significa "o mar furando". Em sua composição, temos parana, em referência ao mar, e puka, "rebentando", "furando". O mar "fura" a barreira de recifes e chega a terra. A capitania de Pernambuco também era chamada Nova Lusitânia, mas esse nome acabou sendo esquecido.

PIAUÍ - Rio cheio de piaus, "peixes grandes", na língua tupi, com boca pequena e fortes dentes. O i significa "água", "rio". Nomeando primeiramente o rio, um dos principais da região, passou a designar a capitania, a província e finalmente o Estado.

RIO DE JANEIRO - Em 1º de janeiro de 1502, os portugueses chegaram à tual Baía da Guanabara e batizaram a região de Rio de Janeiro, em referência ao mês, e por pensarem estar diante da foz de um grande rio. "Janeiro" provém do latim janua. "Janela", também. A janela é abertura para fora e para dentro de uma casa, e o mês de janeiro é o último adeus ao ano anterior e a primeira saudação ao novo ano.

RIO GRANDE DO NORTE - O Rio Potengi, por seu porte, era chamado de "rio grande" e sua forte presença deu nome à capitania e à província. O acréscimo "do Norte" se deveu à existência do Rio Grande do Sul. Potengi, em tupi-guarani, significa rio (i) dos campeões (poti).

RIO GRANDE DO SUL - A cidade de Rio Grande, litoral sul da região, fica às margens do estuário que une a Lagoa dos Patos ao Atlântico. Os primeiros colonizadores portugueses, no século 16, imaginando que o canal de entrada da lagoa fosse um grande rio, chamaram de "Rio Grande" o povoado que ali nasceu. Por seu a cidade mais antiga da região, daí surgiu o nome do Estado.

RONDÔNIA - Chamado, na década de 1940, Território Federal de Guaporé, recebeu o nome de "Rondônia" em 1956, em homenagem a Cândido Mariano da Silva Rondon (1865 - 1958), militar sertanista e indigenista, responsável pela integração da região ao restante do país.

RORAIMA - Até 1962, chamava-se Território Federal de Rio Branco. O nome Roraima origina-se das palavras rora, "verde", e imã, "monte", "serra", no idioma indígena ianomâmi. As belezas naturais da paisagem da região se refletem neste nome: "monte verde".

SANTA CATARINA - Conta-se que, no século 17, estabeleceu-se na ilha dos Patos (onde se localiza hoje a cidade de Florianópolis) o paulista Francisco Dias Velho, a quem se atribui a mudança do nome para ilha de Santa Catarina, em homenagem à santa italiana e, ao que consta, a uma de suas filhas, também assim chamada. O nome estendeu-se ao Estado.

SÃO PAULO - Os padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, fundando o seu colégio em 25 de janeiro de 1554 para catequizar os índios, deram início, no local, à Vila de São Paulo de Piratininga. Piratininga significava em tupi-guarani "peixe seco". Os jesuítas escolheram como protetor de sua missão um santo conhecido por ter desbravado os territórios pagãos.

SERGIPE - Provém do tupi cirigype, que significa "no rio dos siris". É o nome do rio cuja foz encontra-se a região metropolitana de Aracaju.

TOCANTINS - O Estado de Tocantins foi criado em julho de 1988. O nome provém do Rio Tocantins, que por sua vez provinha de uma tribo indígena da região, a tribo tocantin, que significa, em tupi, "bico/nariz de tucano", ave típica do local.


Texto de Gabriel Perissé retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Etimologia nº 2, Editora Segmento, São Paulo, Ano II, Março 2007.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Muito além do "parabéns"

Em ocasiões alegres e festivas, como aniversários e promoções no emprego, por exemplo, é comum felicitar alguém com um "parabéns", às  vezes dito de forma quase automática. Mas o que as raízes dos votos de felicitação têm a dizer sobre a maneira como encaramos a felicidade alheia?


Uma das metáforas mais frequentes nos meios culturais é "resgatar". Fala-se em resgatar não só reféns ou vítimas de enchentes, mas também as raízes culturais, a autoestima etc. Modismos à parte, parece-nos oportuno esse uso do "resgatar" quando se descreve algo que ocorre no filosofar. Pois a tarefa de filosofar é, em boa medida, um resgatar.

Pelo menos essa é a posição de tantos filósofos que, de Platão a Heidegger, voltam-se para a linguagem comum, procurando recuperar as grandes experiências humanas que "desceram" a ela e nela acabaram por se depositar.

Pois essas expectativas, vívidas intuições que o homem tem sobre si mesmo e o mundo, brilham por um momento na consciência e depois vão se desvanecendo, desaparecem. Ficam invisíveis, como que escondidas num depósito: são "raptadas" pela linguagem, a linguagem comum: essa que falamos e ouvimos todos os dias.

Assim, frequentemente, as palavras têm um potencial expressivo muito maior do que supomos à primeira vista, tão familiar e quase automático é o uso que delas fazemos. Daí a atenção do filósofo para os modos de dizer, as sutilezas da linguagem comum e, em particular, a etimologia, como caminho "de volta", de ascensão para o sentido originário da experiência, que em linguagem se depositou.

Como é bem sabido, é nessa linha - a de buscar - "o que dizem as palavras na experiência originária de pensamento", levando ao extremo as análises etimológicas (entre outras) - que se situam as análises de Heidegger, que chega a afirmar: "o acesso à essência de uma coisa nos advém da linguagem" (Ensaios e Conferências, Petrópolis, Vozes, 2001, p.126).

Quando transcendemos o âmbito protocolar das formalidades e da praxe, os votos de felicitação: "Parabéns!" (e seus irmãos em outras línguas: em espanhol ¡Enhorabuena!, o inglês Congratulations!, o italiano Auguri!), vemos que eles trazem em si diferentes e complementares indicações sobre o mistério do ser e o do coração humano. O que significam exatamente essas formulações? O que realmente queremos dizer, quando dizemos parabéns ou congratulations etc? Todas essas expressões trazem em si um profundo significado, por assim dizer, "invisível a olho nu".


Felicitações


Comecemos pela fórmula castelhana: ¡Enhorabuema!, literalmente "em boa hora". Enhorabuena indica que um determinado caminho (os anos de estudo que desembocaram numa formatura, o árduo trabalho de montar um empresa que se inaugura etc) chega, nesta hora, em que se dão as felicitações, a seu termo: está é que é a hora boa, ¡enhorabuena! Precisamente o fato de ser a hora da conclusão é que a torna uma boa hora. A sabedoria dos antigos fala-nos da "hora de cada um", de horas boas é más. Mas a hora boa, a hora melhor é a da conclusão, a da consumação da obra, a do bom termo do caminho, a hora do fim, que é melhor do que a do começo: "Melior est finis quan principium" (Ecl. 7,8), diz a Bíblia.

Já a formulação inglesa,  também presente no alemão e em outras línguas, congratulations, expressa a alegria compartilhada pelo bem do outro, com quem nos con-gratulamos, isto é, nos co-alegramos. Essa comunhão na alegria é sugerida também pela forma depoente dos verbos latinos gratulor e congratulor. A forma depoente está a indicar que a ação descrita no verbo não é ativa nem passiva: mas uma ação que, exercida pelo sujeito, repercute nele mesmo. Ou seja, no caso, que a alegria que externamos ao felicitar tal pessoa é também, a título próprio, muito nossa.

O árabe mabruk lembra o caráter de bênção daquele dom pelo qual felicitamos alguém. O italiano, auguri, auguri tanti!, anuncia (ou enseja) que este bem celebrado é só prenúncio, prefiguração, augúrio de outros ainda maiores que estão por vir. E o mesmo se dá com a forma americana mais recente: Way to go!

Com a encantadora forma nossa, "Parabéns!", estamos expressando precisamente isto: que o bem conquistado, que a meta atingida seja usada "para bens". Em nossa herança cultural do cristianismo medieval (em séculos de acirradas disputas sobre o tema do mal), o mal não tem existência própria, por si; ele é antes uma distorção do bem. Pois, qualquer bem obtido pode , como todo mundo sabe, ser empregado para o bem ou para o mal, para a autorrealização ou para autodestruição: pensemos no caso de um amigo que ganha a medalha de ouro de tiro ao alvo, ou se elege deputado, ou tira a carta de motorista, ou obtém o diploma de advogado. É evidente que essas conquistas - em si boas - podem também ocasionar-lhe muito mal, podem ser para males.

Como também, o dom fundamental da vida (que pode muito bem ser pervertido em oprimir, explorar e prejudicar o próximo...) e que é precisamente celebrado com votos de para-béns...


Texto de Jean Lauand retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Etimologia 2011, Editora Segmento, São Paulo.

A paixão pelo verbo

Palavras ligadas à vida amorosa mostram a reviravolta de sentidos por que os sentimentos passam ao longo da história


Amor que é amor, só com maiúscula intensidade. E não só quando expresso pela paixão mais descabelada e o desejo sexual transbordante. A ideia de amor envolve afetos superlativos mesmo quando é centrado e sereno, como o carinho, a saudade ou o cuidado com quem se ama. Esses são estados de ânimo que só fazem sentido porque vividos de forma intensa.

Parece que sempre foi assim. Mas nem sempre foi. É ideia recente na humanidade essa do amor idílico, romântico e sutil, o amor galante, dos folhetins rasgados, de Hollywood e das telenovelas.

O amor idílico surgiu na aristocracia provençal do século 12, lá no sul da França. Num dos ensaios de Os Sentidos da Paixão, organizado por Adauto Novaes para a Companhia das Letras/Funarte, em 1991, Paulo Leminski comenta que essa ideia de amor doeria os ouvidos antigos, em Roma, na Grécia ou nos países árabes. Não que os casais da Antiguidade não sentissem nada um pelo outro. Mas, naqueles tempos, esse sentimento era uma sensação incômoda que deveria ser, senão abolida, controlada ao máximo possível.

Se esse sentimento superlativo é histórico, se a humanidade não nasceu com ele, então "amor" é palavra que ganhou corpo cultural e flutuou ao sabor dos contextos. Por isso, talvez dê pano pra manga chamar a atenção para outra escala de grandeza do ato de amar. Em particular, as reviravoltas de linguagem, as revelações de afeto que são comunicadas num nível mais atômico, mais concentrado, o grau zero do relacionamento humano, que é a palavra.

A história das palavras usadas no amor é cheia de imprecisões e reviravoltas de sentido, de voz ativa, passiva e média. Em mais de 20 séculos de uso, a própria palavra "amor" se reconfigurou, dançou conforme a música, deu nome a sensações diferentes e muito mais intensas do que caberiam em suas quatro letras. Talvez por isso todo mundo fale de amor com propriedade, mas ninguém sabe dizer direito o que é.


Amores Romanos


Os romanos antigos por muito tempo deram um sentido passivo a palavras relacionadas ao afeto. "Amor" por muito tempo significou "qualidade de ser amado". Quando um romano dizia "amor", só lhe vinha à cabeça "ser amado", nada mais. Dizem que, por influência externa, talvez germânica, a palavra ganhou teor ativo, como "sentimento de amar".

Não sabemos ao certo em que momento da história essa mutação ocorreu. É como se o verbo "receber", atributo de quem recebe, começasse a valer também como sinônimo de algo oposto, que é "entregar". De pista com mão-única, virou pista dupla, ação mútua, com vai-e-vem.

Seja qual for o sentido de origem, foram os latinos que nos legaram a forma sintética "amor", um significante com mil e uma utilidades, aplicado a várias situações. Mas mesmo os romanos devam a "amor" um sentido diferente do atual.


Paixões Gregas


Os gregos tinham quatro verbos para "amor", mas só um correspondia ao de casais. Todos os outros recebiam nomes diferentes. Platão mostra Sócrates no Fedro narrando duas origens para o afeto sensualizado. Para os homens, o amor seria eros (alado), aquele que tem asas. Para os deuses, seria muito mais complexo, seria ptérôs (alante), aquele que doa asas. O amor é "menos o que voa do que o que faz voar", como diria H. Joly (citado por José Américo Pessanha, em Os Sentidos da Paixão). âo é só autossuficiente, porque tem asas, como é incapaz de bastar a si mesmo, daí querer compartilhar. O amor a dois talvez não esteja num ou noutro campo, não seja alado nem alante, eros ou ptérôs, mas viva na encruzilhada, na intersecção.

Amar não tem sentido só passivo, muito menos ativo, ocupa o meio-campo, conjuga-se em voz média. Dizer que amo alguém é dizer o quanto me amo também. É como quem diz "eu me confesso": no momento mesmo em que me revelo, a revelação é feita a mim também. No momento em que falo a alguém, o que falo me afeta. Sou sujeito da ação e seu alvo. Sou voz média. O mundo dos deuses e dos homens numa só expressão. Amor, humor.


Texto de Luiz Costa Pereira Júnior retirado da Edição Especial Etimologia, Revista Língua Portuguesa, Editora Segmento, São Paulo, Janeiro 2006.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Com os olhos para o céu

Astronomia no Brasil está em expansão e abre campo de pesquisa para futuros profissionais


As pessoas que estudam as estrelas são mais do que a visão romântica de cientistas solitários observando os céus com uma luneta. Também não são os esquisitões que muitos acreditam. Na verdade, os astrônomos são, essencialmente, indivíduos com um amor especial pelo espaço e pelos livros.

A astronomia se destaca das demais ciências pela constante renovação. Teorias espaciais estão sempre em revisão e há constantes fatos novos a serem verificados. No Brasil, a área tem avançado muito recentemente. O país participa de dois consórcios internacionais de construção e utilização de supertelescópios, o Gemini e o Soar (sigla em inglês para "Pesquisa Astrofísica do Sul"). Isso aumentará bastante o campo de pesquisa de nossos cientistas.

Além do trabalho de observação de dados, os astrônomos também podem se dedicar à pesquisa teórica, por meio do estudo de modelos, e à instrumentação, cuidando dos diversos equipamentos utilizados, como telescópios e lunetas.

Quem quer trabalhar na área tem duas opções. A primeira é fazer o único curso de graduação em astronomia do Brasil, na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que existe desde 1958 no Observatório do Valongo. A outra, é fazer um curso de física comum, mas com habilitação em astronomia, como o que existe na USP (Universidade de São Paulo). A grande diferença entre as duas opções é que na primeira o aluno já tem um contato mais próximo com a área desde cedo. "A habilitação não tem o conteúdo tão forte de astronomia", afirma a coordenadora de graduação da UFRJ, Sueli Aparecida Guirlens. Jane Gregório-Hetem, da USP, concorda. "Nosso objetivo principal é formar físicos. Quem quer ser astrônomo vai precisar fazer um mestrado e um doutorado", diz.

Partir para uma pós-graduação é obrigatório também para quem tem a graduação na área se a pessoa quiser se dedicar à pesquisa científica. "Para seguir na vida acadêmica é preciso estudar por mais sete anos após a graduação", explica Guirlens. Além dessa opção, os astrônomos também podem trabalhar com divulgação científica, em planetários e escolas, e em empresas particulares, como a Embratel.


Texto de Marília Juste retirado da Revista Galileu, Janeiro 2004, nº 150, Editora Globo, São Paulo.

Grato pela Compreensão

Obrigado, thank you, gracías, grazie. As diferentes palavras e expressões utilizadas ao redor do mundo para agradecer indicam diferentes graus de gratidão. Saber o que cada agradecimento significa ao pé da letra pode ser uma forma de compreender como os povos lidam com esse sentimento


A preocupação pela etimologia é um dos legados do pensamento medieval. Quando S. Isidoro de Sevilha escreve, em torno do ano 600, a primeira enciclopédia da história, ela é precisamente os 20 livros das Etimologias. Lá se diz que, sem a etimologia, não se conhece a realidade e, com ela, mais rapidamente atinamos com a força expressiva das palavras.

Exageros medievais à parte, o fato é que as palavras têm um potencial expressivo muito maior do que nós - tão familiar e automático é o uso que delas fazemos - possamos imaginar. Quando a filosofia se volta para a linguagem comum, não está praticando um procedimento periférico, mas atingindo algo de muito essencial, pertencente ao próprio núcleo da reflexão filosófica.

Não é de estranhar, portanto, que num clássico medieval como Tomás de Aquino encontremos uma filosofia comprometida com a linguagem; no século 13, quando estão se consolidando as línguas nacionais.

Relacionemos o pensamento de Tomás com as formas de gratidão em diversas línguas: thanks, gracias, obrigado, etc. Essas formas remetem a aspectos e níveis diferentes de agradecimento: o próprio Tomás chama a tenção para o fato de que nossas palavras só alcançam fragmentariamente (divisim) a realidade, que, além de complexa, supera em muito nossa capacidade intelectual. E é diferente o gancho, o aspecto, o caminho pelo qual cada língua acessa uma determinada realidade: o mesmo objeto que me protege contra a água ("guarda-chuva") produz uma sombrinha (umbrella).

Daí que, diz Tomás na Suma Teológica, "línguas diferentes expressam a mesma realidade de modo diverso." E, prossegue, referindo-se à gratidão: "A gratidão se compõe de diversos graus. O primeiro consiste em reconhecer (ut recognoscat) o benefício recebido; o segundo, em louvar e dar graças (ut gratias agat); o terceiro, em retribuir (ut retribuat) de acordo com suas possibilidades e segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e lugar" (II-II, 107, 2, c).


Graus de Gratidão


Assim, há línguas que expressam a multifacética realidade da gratidão, tomando-a no nível 1: o do reconhecimento do agraciado. Aliás "reconhecimento" é mesmo um sinônimo de gratidão. Etimologicamente, na língua inglesa to thank (agradecer) e to think (pensar) são a mesma palavra. Ao definir a etimologia de thank o Oxford English Dictionary é claro: "The primary sense was therefore thought". E, do  mesmo modo, em alemão, zu danken (agradecer) é originariamente zu denken (pensar).

Muito compreensível. Só é agradecido quem pensa, pondera, considera a liberalidade do benfeitor. Quando isto não acontece, surge a justíssima queixa: "Que falta de consideração!". E fórmulas agressivas de falta de gratidão como: "você não fez mais do que a sua obrigação!" (ministerium tuum est) são já bastante antigas.

Tomás também faz notar que o máximo negativo é a negação do ínfimo positivo (a última à direita de quem sobe é a primeira à esquerda de quem desce...) e, portanto, falta de reconhecimento, o ignorar, é a suprema ingratidão.

Já a formulação latina de gratidão, gratias ago, que se projetou no italiano, no castelhano (grazie, gracias) e no francês (merci, mercê, derivado de merces, salário, que tomou no latim tardio o sentido de "favor", "graça") é relativamente complexa. S. Tomás diz (I-II, 110, 1) que seu núcleo, "graça" comporta três dimensões:

1) obter graça, cair na graça, no favor, no amor de alguém que, portanto, nos faz um benefício;

2) graça indica também dom, algo não devido, gratuitamente dado, sem mérito por parte do beneficiado;

3) a retribuição, "fazer graças", por parte do beneficiado.


No tratado De Malo (9,1), acrescenta-se um quarto significado de gratias agere: o de louvor; quem considera que o bem recebido procede de outro, deve louvar.

Nas expressões de gratidãp aqui expostas - em inglês, alemão, francês, espanhol, italiano e latim - ressalta-se o caráter profundíssimo de nossa forma: "obrigado" (infelizmente, nestes últimos anos, no Brasil, "obrigado" vem sendo substituído pelo insosso "valeu!"). A formulação portuguesa, tão encantadora e singular, é a única a situar-se, claramente, no nível 3, o mais profundo da gratidão: o do vínculo (ob-ligatus), da obrigação, do dever de retribuir.


"Raridade"


Podemos, ainda, analisar a riqueza de sugestões que se encerra na forma japonesa. Arigatô remete aos seguintes significados primitivos: "a existência é difícil", "é difícil viver", "raridade", "excelência (excelência da raridade)". Esses dois últimos sentidos são claros: num mundo em que cada um só pensa em si, a excelência e a raridade salientam-se como característica do favor. Mas, "dificuldade de existir" e "dificuldade de viver", à primeira vista, nada teriam que ver com o agradecimento. No entanto, S. Tomás ensina (II-II, 106, 6) que a gratidão deve - ao menos na intenção - superar o favor recebido. E que há dívidas por natureza insaldáveis: de um homem em relação a outro, seu benfeitor, e sobretudo em relação a Deus.

Nessas situações de dívida impagável - tão frequentes para a sensibilidade de quem é justo - o homem agradecido, obrigado a retribuir, sente-se embaraçado e faz tudo o que está a seu alcance, tendendo a transbordar-se num excessum que se sabe sempre insuficiente.

Arigatô aponta assim para o terceiro grau de gratidão, significando a consciência de quão difícil se torna a existência (a partir do momento em que se recebeu tal favor, imerecido e, portanto, se ficou no dever de retribuir, sempre impossível de cumprir...)


Texto de Jean Lauand retirado da edição especial Etimologia 2011, da Revista Língua Portuguesa, Editora Segmento, São Paulo, 2011.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O amor à perversão

"Erotismo" e "Pornografia" dividem opiniões e preferências; limite entre os conceitos é tênue, com significados dúbios


Amor e sexo costumam gerar confusão. Não só no dia-a-dia, mas também no boca-a-boca. Quando o desejo é comunicado em palavras, fica sujeito a um vasto campo de significações e interpretações.

Fato é que erótico vem do grego, eroticos, que por sua vez faz menção a Eros, deus do amor na mitologia greco-romana. No Vocabulário Etimológico, Ortográfico e Prosódico das Palavras Portuguesas Derivadas da Língua Grega, de Ramiz Galvão, "erótico" se restringe àquilo que se refere ao amor, do deus Eros. Com o decorrer do tempo, a palavra passou a agregar outros sentidos.

Bem diferente é a origem de "pornografia". Também grega, a palavra é a junção de outras duas: porné, obscenidade, e graphêin, que equivale ao verbo descrever. Ao pé da letra, seria a expressão da obscenidade. Tem estreita relação com a prostituição. Porni, na Grécia do século V, era a prostituta de rua, de categoria mais baixa e, em geral, escrava. Pornis é da mesma família dos vocábulos porneuô (ser prostituta) e pernêmi (vender, expor), lembra Luiz Costa Pereira Júnior, em Com a Língua de Fora (Editora Angra).

A lógica da comercialização da mulher mantém, portanto, relação com a palavra que hoje serve para classificar livros, revistas, filmes e obras de arte com cenas de atos sexuais explícitos.

Como classificar, então, obras como Couple, de Picasso, em que uma penetração explícita ocupa a atenção no quadro? Erótico? Pornográfico? Desde que o primeiro libertino desvirginou a parede de uma caverna com desenhos obscenos, há 5 mil anos, a expressão erótica ganhou status estético. Ora mais, ora menos, porque as épocas mudam, variam os costumes e o crítico de plantão.


Definições nada definitivas


Márcia Denser, autora de O Prazer é Todo Meu (1984) e Diana Caçadora (1986), ambos com contos eróticos, diz que o termo "pornografia" mantém até hoje a ideia da pessoa vista como objeto. Para ela, a pornografia se apropria de imagens que reforçam a submissão feminina. Uma delas é a da mulher de joelhos, em posição inferior à figura masculina.

- O pornográfico reforça a tradição, o que já está aí. Representa um retrocesso.

A pornografia também acumulou significações ao longo do tempo. Trata tanto de um material (fotos, filmes, revistas, livros etc) capaz de explorar os apetites sexuais como de um ataque ao recato, à exploração pública da sexualidade, afirma Francisco Borba, no Dicionário Unesp do Português Contemporâneo.

Márcia diz que vê uma diferença clara entre pornografia e erotismo. Elaborou até uma lista de elementos que distinguem os dois gêneros.

- No discurso erótico, há uma primazia estética, sendo esse o seu principal critério de julgamento. Essa arte, portanto, valoriza o belo, o sublime.

Segundo ela, a pornografia não se preocupa tanto com o caráter estético, além de explicitar o objeto a que está fazendo referência. O erotismo, por sua vez, usaria a relação sexual para tratar de outros assuntos.

- A mensagem não acaba no sexo, ao contrário do que acontece com o material pornográfico.

Outra diferença fundamental seria que, no texto erótico, as relações amorosas são consensuais. Se alguém não está de acordo com a prática, o envolvimento entre as partes passa a ter caráter violento, o que, segundo Márcia, configura uma perversão.

- Se não há consenso, o que era  erotismo vira pornografia, que se ocupa em explorar a dialética "dominação versus submissão" e tem o objetivo  claro de excitar o leitor.


Expressão erótica


A distinção entre os dois gêneros não se faz tão clara para a psicanalista Miriam Chnaiderman, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sades Sapientiae, ensaísta e diretora de curtas-metragens, como Artesãos da Morte (2001). Mas atribui a cada termo uma função. A grande diferença entre um e outro estaria na noção de arte, ausente no discurso pornográfico. Ela diz que, na pornografia, o observado é transformado em objeto por quem o está contemplando.

- Não há grandes possibilidades de criação, de voo, de construção. Por isso, na arte erótica atua o olhar, enquanto na pornografia atua a visão, a função fisiológica do olho.

O erotismo, por sua vez, estaria na base de toda criação artística, diz a diretora. De acordo com ela, a sexualidade é a característica mais singular do ser humano e mais difícil de ser reproduzida.

- O erótico é aquilo que traz possibilidades múltiplas, desordenando lugares de ser. Freud traz essa possibilidade de leitura do erótico quando reverte a noção de corpo biológico para corpo-prazer. Ele, então, transforma o corpo anatômico em erógeno.


Defesa do pornô


Xico Sá, jornalista, editor e escritor, acaba de lançar Catecismo de devoções, intimidades e Pornografias pela sua Editora do Bispo. É um manifesto a favor do hedonismo.

- É pornografia do início ao fim - explica o autor.

Ele diz que a classificação dos textos em erótico e pornográfico obedece mais a critérios morais do que a estéticos.

- O erotismo é considerado mais puro, por isso aceito socialmente. A pornografia é pensada como diabólica, portanto, condenável.

O cearense aponta que há muito preconceito com o gênero pornográfico, definido por ele como a arte de escrever com o corpo, "tão verdadeira, tão visceral, que quase não se distingue uma coisa da outra".

Miriam Chnaiderman concorda que há um tabu em torno do tema, mas diz que é necessário quebrar a ideia de que tudo o que é pornográfico é feio.


Transgressão e expressão


Xico, no entanto, diverge da psicóloga quando afirma que a pornografia é, sim, uma manifestação artística. Sua assertiva encontra respaldo em uma das definições do dicionário Michaelis: "arte ou literatura  obscena". Erotismo é definido pelo mesmo dicionário como "indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbolismo ou alusão, por uma obra de arte".

Sobre o suposto caráter reacionário da pornografia, Xico Sá diz que, ao contrário, ela liberta, pois permite radicalizações na linguagem mais convencional. Nesse sentido, o jornalista considera transgressor o texto pornográfico. Ele cita como exemplo Hilda Hirst, "uma mulher que se utiliza das palavras de forma libertária". O texto e a arte eróticos, segundo Sá, não teriam o mesmo arrojo estético do pornográfico.

- Lembra aquelas revistas masculinas que eram censuradas? Era tudo muito caricato, bonzinho, sem graça.

A linguagem erótica é vista pelo autor de Catecismo de Devoções como envergonhada, careta e artificial.

Miriam, por sua vez, diz que tanto a pornografia quanto o erotismo são potencialmente transgressivos, e reforça a ideia de que, não raro, se confundem.

- Falam que a pornografia privilegia a narrativa no tempo presente, mas os textos e filmes eróticos estão cada vez mais se atendo à descrição das vivências em tempo real.

No curta Gilete Azul (2003), a diretora retrata a artista plástica Nazareth Pacheco, que mostra do sofrimento do corpo por objetos cortantes. Miriam acha o trabalho de Nazareth uma analogia do caráter revolucionário da linguagem erótica.

- Ao mesmo tempo em que fala da dor, trabalha com elementos da sexualidade feminina.


Ponto G da questão


Ao largo das grandes definições, no varejo as diferenças entre o erótico e o pornográfico, entre o que se considera arte ou mera sacanagem, nunca são claras. Acima das dicotomias, talvez a questão ainda seja a exposta por José Paulo Paes em Poesia Erótica Traduzida.

- A poesia serve para  excitar? - pergunta Paes no prefácio ao seu livro.

Para José Paulo Paes, a pornografia é a que quer provocar excitação sexual. A erótica tenta impedir que o tempo dilua na memória um momento tão efêmero quanto o do prazer.

- A arte existe porque a vida não basta.

A erótica, resume Paes, quer reviver no plano do imaginário o essencial do que se viveu e ao que se aspirou no plano real. A pornografia mostra tudo, descreve tudo, ao gosto do freguês. A erótica pinça o momento mais importante, flagra o efêmero instante do êxtase e luta contra o esquecimento e a morte, contra tudo que apague o prazer.  


Texto de Eliane Scardovelli retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Sexo & Linguagem, Editora Segmento, São Paulo, Ano I, Junho 2006.

domingo, 12 de novembro de 2023

Objeto Sexual

Batizar coisas do mundo como sendo feminino ou masculino está longe de ser casual e atua sobre a perspectiva que os falantes adotam no seu dia-a-dia


As coisas têm sexo? A faca é feminino e o garfo é masculino? Por que "manhã", "tarde" e "noite" são femininas e "dia" masculino? O sol é figura máscula e alua, delicada como uma donzela? A bondade é mulheril, como a sinceridade e a virtude, ao passo que o ódio, o desprezo, o vício têm bigode e voz grossa?

Evidentemente, essas e outras realidade são assexuadas, mas a associação entre gênero masculino e sexo masculino e entre gênero feminino e sexo feminino encontra-se tão arraigada em vários idiomas que, pensando no caso do sol, chega-se ao ponto de algumas narrativas imemoriais relacionarem o desaparecimento do sol atrás do horizonte à morte de heróis viris como Sansão e Hércules. O próprio Cristo é visto como o Sol da verdade, o homem que redime a humanidade (ao passo que sua Mãe é a Lua, cujo brilho depende do Sol).

Até onde tal distribuição de gêneros é arbitrária ou casual? Em que medida é fruto da nossa capacidade de interpretar e recriar o inanimado, emprestando-lhe características humanas?

Rodrigues Lapa, em seu Estilística da Língua Portuguesa, atenta para o fato de que, a par do masculino, criaram-se formas femininas para seres insexuados: saco-saca, poço-poça, barco-barca, cesto-cesta... Observa o autor que, "de um modo geral, o masculino representa maior grandeza no sentido do comprimento, o feminino maior grandeza no sentido da largura". De modo que a saca, em comparação com o saco, seria mais larga e comprida, útil como bolsa de compras. Ao contrário de poço, a poça seria uma depressão pouco profunda. A barca seria uma embarcação de fundo raso em contraste com o barco. E assim por diante.

Essa hipótese baseia-se em outra suposição. A de que, na civilização portuguesa, o homem seria visto como figura alta e esbelta, e a forma física feminina seria mais baixa e larga. Daí que as realidades masculinas ou femininas  guardassem semelhanças com o perfil corporal de varões e mulheres. A explicação, porém, não recobre todas as situações. A problemática em análise é mais complexa e misteriosa.


Diálogo de línguas


Outro ponto intrigante nessa complexa repartição de gênero é que as diferentes línguas nem sempre coincidem na hora de classificar a "sexualidade" daquilo que não tem sexualidade. Morte é feminina em latim, francês, espanhol e português, e por isso José Saramago, no romance As Intermitências da Morte, apresenta-a como uma mulher que chega a ter relações sexuais com um homem.

Por outro lado, a morte é masculina no grego antigo (thánatos) e em alemão (der Tod). O título de um livro de Colin Dexter, Death is Now my Neighbour, recebeu em terras alemãs a tradução Der Tod is Mein Nachbar, literalmente: "o morte é o meu vizinho", lembrando que Nachbar é o vizinho-homem e Nachbarin, a vizinha-mulher.

Se em princípio nada parece justificar a ligação de realidades não-humanas com a masculinidade ou a feminilidade (não me refiro aos animais e plantas), sentimo-nos inclinados, no entanto, dependendo da nossa cultura e do nosso idioma, a assumir como "natural" o fato de, por exemplo, o mar ser entidade masculina, em português, e feminina, em francês - la mer. "O mar está zangado", costumamos dizer, e visualizamos um homem nervoso, inquieto. E a poeta Olga Savary declarou: "Mar é o nome do meu macho."

Na língua francesa, porém, Júlio Verne escreveu em Um Capitão de Quinze Anos: "la mer était plus furieuse encore", fúria feminina, mulher espumando de raiva. E o ator Jean Reno, comentando em entrevista sua experiência no filme Imensidão Azul, de Luc Besson, faz o comentário tipicamente francês: "Mar é uma mulher que olha para você..."

Essa diferença com relação ao sexo do mar, no nível poético, mas também psicologicamente falando, levaria um homem francês, a dizer que mergulhou no mar-mulher, e uma mulher brasileira a afirmar que a mar-homem a invadiu... A propósito, se falar e criar imagens são ações mais ou menos simultâneas, seria um exercício artístico interessante trabalhar outras dissonâncias de gênero entre português e francês. A noite é masculina: le soir. O medo é feminino: la peur. A cama é masculina: le lit. O quarto é feminino: la chambre. A ponte é masculina: le pont. O calor é feminino: la chaleur.

Os falantes do inglês, mais pragmáticos, ou talvez mais realistas, não masculinizam nem feminizam o mundo ao seu redor. Deixam que a realidade seja interpretada, nesse aspecto, pela sensibilidade individual. Assim, voltando ao mar uma vez mais, são admissíveis em inglês as duas possibilidades: "the sea is a woman in love" (como no verso de uma poeta norte-americana iniciante), ou "the sea is a man".

Ainda sobre o mar, é curioso, como nos conta Eduardo Galeano em O Livro dos Abraços, que os pescadores de língua espanhola, contrariando o uso recomendado pelo dicionário ("el mar"), prefiram falar, e os poetas Antônio Machado e Rubén Darío adotavam o mesmo arcaísmo, "la mar", pois experimentaram na própria pele que ela, com suas ondas e seus mistérios, é mulher...


Ressonâncias cotidianas


Embora, do ponto de vista estritamente gramatical, as formas do masculino ou do feminino nem sempre se achem tão vinculadas assim à polaridade dos sexos - haja vista os substantivos sobrecomuns, com "a testemunha" e o "carrasco": por vezes o carrasco é a mulher, por vezes o homem é a testemunha -, é inegável que, nos muitos casos dos seres insexuados, a associação entre gênero e imaginária sexualidade tem sua ressonância na arte, na religião, no falar cotidiano.

No falar cotidiano, a humanização (e sexualização) das coisas quase passa despercebida, mas é sinal inequívoco de que, como seres criativos, projetamos na realidade nossa imagem e semelhança, ainda que em culturas diferentes diferenças se verifiquem nessa projeção.

As consequências dessas discrepâncias linguísticas, simples que sejam, expressam e atuam sobre a cosmovisão dos falantes. Leite é masculino em português e feminino em espanhol: la leche. O que permite especular que no leite feminino está mais visível a sua dimensão de leite materno, de alimento primeiro, ligado ao amor e à doação de vida. A expressão espanhola "tener mala leche" indica a ideia de que os maus sentimentos e o mau caráter de uma pessoa provêm "do berço", por assim dizer.

Já no leite masculino vem ao primeiro plano o leite como produto, como alimento rico, nutritivo e universal, e como base para outros alimentos: queijo, manteiga etc. O brasileirismo "esconder o leite" refere-se a omitir informações valiosas, particularmente a existência de posses e bens que o interessado oculta para preservar sua intimidade.

Um último exemplo. Se o sol é masculino para nós, e evoca imagens de força e heroísmo, para os alemães é feminino (die Sonne) e é visto como mãe de outros planetas, destacando-se seu caráter gerador e protetor. Se a lua é feminina para nós, simbolizando a mulher (Catulo da Paixão Cearense escreveu: "A Lua é mulher, Senhores!/ E, sendo mulher, encanta!/ Mas, sendo mulher, varia!"), para os alemães é masculina (der Mond), e daí que a considerem o amigo dos apaixonados insones.

A rigor, seres destituídos de sexualidade deveriam ser classificados como neutros, mas a realidade é que a herança recolhida pelos idiomas indo-europeus inclui diferenciá-los por sua suposta sexualidade. Saber lidar com essa herança pode proporcionar prazerosas descobertas antropológicas e poéticas.


Texto Gabriel Perissé retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Sexo & Linguagem, Editora Segmento, São Paulo, Ano I, Junho 2006.

sábado, 11 de novembro de 2023

A fala que só pensa naquilo

Adoração secular ao macho marcou a cultura ocidental e está cravada na origem de muitas palavras e formas de expressão cotidianas


A linguagem pode confinar os papéis sexuais. O mero uso da palavra homem como sinônimo da espécie teria, dizem os linguistas, sua cota de exclusão. "Homem" nomeia a humanidade. "Mulher", só um tipo de sexo. Há um controle masculino da linguagem. Como ele se expressa?

Muito da linguagem cotidiana enfatiza o órgão sexual masculino, por exemplo. A vida é um "jogo duro". Se você for eficiente, "mata a pau". Se mostra firmeza, "dá com o pau". Algo nos "torra o saco" ou é um "chute no saco", pois, ao ser praticado por outro, nos incomoda: o enunciador é da primeira pessoa ("nós", "eu"). Já a enunciação "puxa o saco" refere-se à terceira pessoa (o bajulador). O enunciador é, nos dois casos, passivo ("o meu saco é o alvo") e sempre o mesmo, mas a posição de onde se fala muda, partidária do macho que enuncia.

As condições de existência de um enunciado que exala  masculinidade muda com as épocas e culturas. A ênfase masculina na Antiguidade grega não é a mesma da era do Viagra, nem a afirmação do homem pela linguagem tem o mesmo significado na tradição árabe, nórdica ou brasileira. Mas um idioma cristaliza o modo mais comum de pensar de uma comunidade ao longo do tempo. É uma construção que dada cultura sedimenta, até o ponto de não se saber mais o real vínculo de palavras e sintaxes com o pensar dominante.

A potência fecundante foi uma determinante cultural da Antiguidade. A reafirmação do falo era uma meta em vários campos de cultura e linguagem, como a egípcia, a grega e a romana. Ao órgão viril se dedicava sincera adoração. Intuía-se que a divindade era responsável pelo sucesso conjugal, pela fecundidade e fartura da natureza. A vida em campos e florestas, fontes, hortas e jardins dependia dos humores, potências e prazeres da natureza.


Potência antiga


O termo grego phallós (que passou para o latim como phallus, membro viril) nomeava o estandarte religioso usado nas festas a Dionísio, o deus do vinho. Estátuas de Hermes com ereção decoravam as fachadas de casas, e sátiros com genitais enfeitavam vasos e taças. Uma das kômos (procissões jocosas) gregas, tradição religiosa que deu origem à palavra "comédia", era escoltada pela escultura de um falo. No século 2º da nossa era, kaulós (tubo) era palavra-padrão para pênis (a metáfora do pênis como "pau" é antiga: kaulós é matriz do português "caule").

Vítima do invejoso irmão Tífon, príncipe Osíris é morto e esquartejado. Sua mulher Ísis reúne os restos do marido, mas não acha as partes pudentas. A elas Ísis presta tributo. Quando a viúva morre, os egípcios incorporam o casal às suas divindades. A representação do falo de Osíris era levada em solenidades e cerimônias, símbolo das energias sexuais. Como tal, passou a ser considerado como imagem do Sol, princípio do fogo e poder gerador e fecundo do Universo.

"Alterada e difundida entre os fenícios, a adoração a Osíris espalhou-se pelos moabitas [Rute, da Bíblia, era moabita, uma estrangeira em Israel] e madianitas", dizem M. Barre e César Famin em Museu Secreto de Nápoles (1934). Em sua adoração, chamavam o falo de Belfegor (deus nu), cujo equivalente mifeletzeth chegou a ser traduzido como "priapo". Venerada depois pelos lavradores e pastores de Lampsaco (na costa asiática, hoje Lâpseki, na Turquia), sob o nome de Priapus, ganhou a cultura greco-romana como filho de Afrodite e Dionísio. A deusa da procriação e da beleza se unira ao deus da vida. Veio Priapus. Feio, fofoqueiro, sexualmente disforme, barrigudo, Priapus cresce malvisto no Olimpo e termina exilado na Terra.

É deus fértil e viril, com falo monumental e ereto. Era proteção contra a esterilidade de colheitas e pessoas. As mulheres penduravam falos de bronze ou pedra no pescoço e usavam amuletos fálicos (vem daí o símbolo da figa). Monumentos fálicos (os obeliscos) tomavam as vias públicas.

Com o triunfo do Cristianismo e a aniquilação dos rituais pagãos, a adoração ao falo decaiu, mas antigos ritos libidinosos ficaram no DNA de muitas palavras. O falo deixou de ser um dado religioso, mas virou um conceito linguístico e cultural, não só biológico.

A linguagem cotidiana, ainda hoje, expressa inveja do pênis, do falo como objeto de culto e do homem como signo do que há de viril, fecundo e positivo no mundo.

Hoje, muito do que está relacionado ao tamanho (ao mais, ao maior) tem um valor para o universo masculino e outro para o feminino. "Pistolão" é o poderoso. "Pistoleira", a prostituta. "Homem público" é o político; "mulher pública, a prostituta. "Homem da rua" é sinônimo de "vagabundo". Já "mulher da rua" é a meretriz, também "vagabunda". "Peitudo" é homem de coragem, mas seu feminino é pejorativo. Ter o pé grande é masculino, mas na mulher denegre a lésbica, o não-homem que se passa por tal, o sapatão.


Geração Viagra


Os especialistas sabem que o homem ocidental sofreu com as configurações discursivas das últimas décadas, como o feminismo, por exemplo. Convive-se mais do que há 50 anos com práticas discursivas menos ligadas ao patriarcalismo convencional. A própria representação do homem mudou.

Mas para homem e mulher, continua traumático encarar outo ser do sexo oposto como ser humano diferente, não pior. A tentação de confortar-se mutuamente ao denegrir o sexo oposto (uma prática masculina de séculos) ainda é uma tônica mesmo no universo feminino.

Reproduz-se, na linguagem, a hierarquia imposta: se "todo homem é igual", "só pensa naquilo", "o que é do homem o bicho não come", "com a dona patroa não se brinca", "homem não faz amizade com mulher", "mulher só consegue ser amigo de gay", sentenças generalizadoras, por si mesmo carregadas de preconceito, pois abafam as nuanças, as possibilidades de comportamentos não gramaticalizados pelo senso comum, a diversidade da mente e das sensações humanas.

O discurso masculinizante rearticula-se, com isso, incorporando o outro, mas ao mesmo tempo subordinando-o. A mulher é quem pega no pé do parceiro, é natural também que o homem cace todo rabo de saia. Nada é assim tão "natural" à "essência" do homem ou da mulher. A linguagem é ao mesmo tempo expressão, veículo, lembrança do lugar que uma cultura idealizou para o macho, mas também projeta aquilo que ele é e se propõe ser, cada vez que um homem fala ou se expressa.


Texto de Luiz Costa Pereira Júnior retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Sexo & Linguagem, Editora Segmento, São Paulo, Ano I, Junho 2006.