sexta-feira, 10 de novembro de 2023

O Mundo Trans

Conheça um pouco mais a respeito das complexas classificações de gênero que não se enquadram na norma heterossexual


Travesti, transexual, transgênero e crossdressing são algumas das muitas categorias utilizadas para se remeter às pessoas que procuram transitar entre gêneros, adotando uma performance de gênero que não se enquadra na norma heterossexual. Diante dessas complexas classificações é importante lembrar a diferença classificatória apontada por Jorge Leite Jr. (2008) entre o Brasil e países estrangeiros em relação aos termos travestis e transexuais. No Brasil, tanto no vocabulário médico e jurídico quanto na cultura popular e de massas, travesti é aquela que adota o gênero feminino, sofre intervenções hormonais e cirúrgicas para feminilizar seu corpo, adota as vestimentas e nomes femininos e não deseja a cirurgia de transgenitalização. As transexuais femininas, por sua vez,  seriam aquelas que sentem um enorme desconforto e sofrimento com seu órgão sexual desejando realizar a cirurgia de transgenitalização.

Em outros países como Estados Unidos, França e Itália, no entanto, essa condição seria descrita como transexualismo secundário em termos de classificações médicas. Por fim, o travestismo transvéstico do DESM (Manual de Doenças Mentais) e o travestismo fetichista do CID (Classificação Internacional de Doenças) podem ser relacionados no contexto brasileiro com os chamados "crossdressers", sendo um grupo que independente da orientação sexual realiza uma montagem do feminino ocasionalmente.

Também podemos citar o uso da categoria guarda-chuva "transgender", categoria êmica norte-ameicana que pretende agregar e descrever a multiplicidade de expressões identitárias das pessoas que transitam entre os gêneros. David Valentine (2007) aponta que a categoria criada na década de 1990 foi apropriada pelos movimentos sociais e pelo Estado na construção de políticas públicas norte-americanas, mas que torna invisível a variabilidade de expressões classificatórias acionadas na prática das pessoas ao distinguir sexualidade de gênero.

Nas etnografias recentes, sobre a temática das diferenças entre travestis e transexuais no Brasil, vem sendo descrita que essas categorias podem assumir na prática das pessoas que as utilizam. Nesse sentido, uma pessoa apesar de não desejar a cirurgia de transgenitalização pode se descrever como transexual com a finalidade de afastar de si o estigma da categoria travesti; dentro dessa mesma lógica uma pessoas que realizou a cirurgia ou deseja realizá-la pode se autodenominar de travesti. Assim, ao analisar a bibliografia recente sobre as identidades trans, verificamos o quanto estas são contextuais e políticas, podendo os indivíduos acioná-los de modo estratégico e situacional, como indicado pelos trabalhos de David Valentine (2007) nos Estados Unidos, Jorge Leite Jr (2008) e Bruno Barbosa (2010) no Brasil.


GENEALOGIA DAS CATEGORIAS


Segundo Leite Jr (2008), as classificações dos indivíduos que não se enquadram nos padrões de gênero possuem uma história específica, conectando-se aos contextos sociais e culturais de uma dado período, o que não exclui a possibilidade de haver controvérsias e disputas discursivas em cada um desses momentos históricos. O autor ao realizar uma genealogia das categorias referentes à ambiguidade sexual identificou uma apropriação do sabe-poder médico discursivamente sobre esses corpos, na qual pelos manuais internacionais de doenças associaram determinados indivíduos às "perversões" sexuais, enquanto outros a doenças mentais que necessitam de tratamento.

Nesse sentido, como observado por Barbosa (2010), na sua etnografia sobre a diferença entre travestis e transexuais, na prática desses atores ocorre uma polarização de discursos entre as que se identificam como transexuais ou "transex", e que querem se afastar do estigma da prostituição e da marginalidade conectando-se a uma categoria médica, e uma militância travesti preocupada justamente ema acusá-las de doentes e de pouca  consciência política de sua condição comum. Essas autoidentificações assumem uma variabilidade e uma situacionalidade, que em certos contextos se referem aos vários marcadores da diferença que servem como parâmetro para o constructo de uma feminilidade verdadeira e legítima em disputa. Por exemplo, uma pessoa que se autodeclara transexual pode não ser reconhecida como tal pelas colegas, pois apresenta uma construção da feminilidade que não é legítima em termos de padrões de beleza construídos a partir de marcadores de classe social, gênero e raça.

Hoje em dia existe um debate polarizado em torno da despatologização das identidades trans, pois se de um lado é necessário reconhecer os transgêneros como sujeitos autônomos e normais, por outro lado, a via tradicional do diagnóstico médico tem facilitado o acesso a recursos financeiros que permitem a transformação corporal. (Butler, 2009). Diante da militância desse segmento que advoga pela despatologização no DSM-V, foi retirada a concepção de doença presente no diagnóstico "de transtornos de identidade de gênero", colocando a noção de "disforia de gênero", isto é, a angústia de que sofre uma pessoa que não se encontra identificada com o seu sexo masculino ou feminino.

No evento realizado no CEPROOM (Centro de Promoção da Mulher Marginalizada) no Itatinga, no dia 26 de junho de 2014, sobre as "identidades trans e o papel da defensoria", Vanessa Alves Vieira, defensora especializada em ações judiciais dentro dessa temática afirmou que a diferenciação das categorias transexuais e travestis tem sido úteis apenas para negar direitos ao invés de oferecê-los. Essa defensora afirmou em sua fala, dirigida às pessoas "trans" e aos defensores presentes no evento, que dentre as maiores problemáticas enfrentadas hoje em dia quanto à saúde desse grupo está a necessidade de um laudo psiquiátrico com o diagnóstico de transexualismo, excluindo as que se identificam como travestis do acesso a cirurgias de mudanças corporais no Sistema Único de Saúde (SUS), além do laudo ser um mecanismo de poder que autoriza os profissionais da saúde a estabelecer quem possui ou não uma identificação de gênero legítima. No sistema jurídico, por sua vez, Vanessa A. Vieira constatou que os juízes compreendem em sua maioria a necessidade de cirurgia de transgenitalização ou laudo psicológico que ateste a transexualidade para a mudança de nome, apesar de não haver nenhum marco legal que regule nesse sentido a retificação de registro.

Diante das problemáticas apresentadas acima, a dizer a noção de patologia e de desvio inerente aos termos travestis e transexuais, as categorias "cis" e "trans" atualmente têm ganhado espaço nesse universo classificatório, especialmente entre a militância do chamado transfeminismo, considerando que as categorias existentes transmitem uma noção de patologia, como a de transexual, ou são estigmatizadas como a de travesti.

É interessante apresentar a controvérsia mobilizada pelo reality show "RuPaul'sDragRace", ao se defrontar com as disputas identitárias e consequentemente políticas do movimento "transgender" nos EUA. O movimento organizado de mulheres "trans" nos Estados Unidos reagiu contra atrações do programa, que utilizavam terminologias consideradas pejorativas para descrever as pessoas que transitam entre os gêneros nesse contexto cultural como "shemale" ou "tranny", termos que segundo as porta-vozes dessa militância desumanizam as pessoas "trans". Dentre essas polêmicas podemos citar o uso do termo "shemale" em um dos jogos do programa, que tinha como objetivo fazer as participantes diferenciar mulheres "trans" de mulheres "cis". O programa retirou o quadro do ar, sendo que a controvérsia denunciou uma questão de fundo político mobilizada pelo discurso desse segmento do movimento LGBT, a de que o programa de drag queen ao mostrar homens vestindo-se de mulheres eventualmente e usando uma linguagem pejorativa poderia deslegitimar as demandas por acesso a educação, saúde, trabalho e combate à transfobia frente ao público leigo no assunto que não compreende os desafios diários de ser uma pessoa transexual.

Como conclusão desse artigo, podemos afirmar que as classificações de gênero que não se enquadram na matriz heterossexual compõem um vocabulário complexo, pois são produzidas dentro de contextos culturais específicos e possuem enquanto identidades um caráter político, sendo mobilizadas de acordo com as circunstâncias e estratégicas dos atores, seja para oferecer uma feminilidade legítima ou pela atuação de certos segmentos militantes reivindicando reconhecimento para suas demandas.


Texto de Maria Isabel Zanzotti de Oliveira retirado da Revista Sociologia, Editora Escala, São Paulo, Ano VI, Edição 58, Maio/Junho 2015.

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