"Erotismo" e "Pornografia" dividem opiniões e preferências; limite entre os conceitos é tênue, com significados dúbios
Amor e sexo costumam gerar confusão. Não só no dia-a-dia, mas também no boca-a-boca. Quando o desejo é comunicado em palavras, fica sujeito a um vasto campo de significações e interpretações.
Fato é que erótico vem do grego, eroticos, que por sua vez faz menção a Eros, deus do amor na mitologia greco-romana. No Vocabulário Etimológico, Ortográfico e Prosódico das Palavras Portuguesas Derivadas da Língua Grega, de Ramiz Galvão, "erótico" se restringe àquilo que se refere ao amor, do deus Eros. Com o decorrer do tempo, a palavra passou a agregar outros sentidos.
Bem diferente é a origem de "pornografia". Também grega, a palavra é a junção de outras duas: porné, obscenidade, e graphêin, que equivale ao verbo descrever. Ao pé da letra, seria a expressão da obscenidade. Tem estreita relação com a prostituição. Porni, na Grécia do século V, era a prostituta de rua, de categoria mais baixa e, em geral, escrava. Pornis é da mesma família dos vocábulos porneuô (ser prostituta) e pernêmi (vender, expor), lembra Luiz Costa Pereira Júnior, em Com a Língua de Fora (Editora Angra).
A lógica da comercialização da mulher mantém, portanto, relação com a palavra que hoje serve para classificar livros, revistas, filmes e obras de arte com cenas de atos sexuais explícitos.
Como classificar, então, obras como Couple, de Picasso, em que uma penetração explícita ocupa a atenção no quadro? Erótico? Pornográfico? Desde que o primeiro libertino desvirginou a parede de uma caverna com desenhos obscenos, há 5 mil anos, a expressão erótica ganhou status estético. Ora mais, ora menos, porque as épocas mudam, variam os costumes e o crítico de plantão.
Definições nada definitivas
Márcia Denser, autora de O Prazer é Todo Meu (1984) e Diana Caçadora (1986), ambos com contos eróticos, diz que o termo "pornografia" mantém até hoje a ideia da pessoa vista como objeto. Para ela, a pornografia se apropria de imagens que reforçam a submissão feminina. Uma delas é a da mulher de joelhos, em posição inferior à figura masculina.
- O pornográfico reforça a tradição, o que já está aí. Representa um retrocesso.
A pornografia também acumulou significações ao longo do tempo. Trata tanto de um material (fotos, filmes, revistas, livros etc) capaz de explorar os apetites sexuais como de um ataque ao recato, à exploração pública da sexualidade, afirma Francisco Borba, no Dicionário Unesp do Português Contemporâneo.
Márcia diz que vê uma diferença clara entre pornografia e erotismo. Elaborou até uma lista de elementos que distinguem os dois gêneros.
- No discurso erótico, há uma primazia estética, sendo esse o seu principal critério de julgamento. Essa arte, portanto, valoriza o belo, o sublime.
Segundo ela, a pornografia não se preocupa tanto com o caráter estético, além de explicitar o objeto a que está fazendo referência. O erotismo, por sua vez, usaria a relação sexual para tratar de outros assuntos.
- A mensagem não acaba no sexo, ao contrário do que acontece com o material pornográfico.
Outra diferença fundamental seria que, no texto erótico, as relações amorosas são consensuais. Se alguém não está de acordo com a prática, o envolvimento entre as partes passa a ter caráter violento, o que, segundo Márcia, configura uma perversão.
- Se não há consenso, o que era erotismo vira pornografia, que se ocupa em explorar a dialética "dominação versus submissão" e tem o objetivo claro de excitar o leitor.
Expressão erótica
A distinção entre os dois gêneros não se faz tão clara para a psicanalista Miriam Chnaiderman, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sades Sapientiae, ensaísta e diretora de curtas-metragens, como Artesãos da Morte (2001). Mas atribui a cada termo uma função. A grande diferença entre um e outro estaria na noção de arte, ausente no discurso pornográfico. Ela diz que, na pornografia, o observado é transformado em objeto por quem o está contemplando.
- Não há grandes possibilidades de criação, de voo, de construção. Por isso, na arte erótica atua o olhar, enquanto na pornografia atua a visão, a função fisiológica do olho.
O erotismo, por sua vez, estaria na base de toda criação artística, diz a diretora. De acordo com ela, a sexualidade é a característica mais singular do ser humano e mais difícil de ser reproduzida.
- O erótico é aquilo que traz possibilidades múltiplas, desordenando lugares de ser. Freud traz essa possibilidade de leitura do erótico quando reverte a noção de corpo biológico para corpo-prazer. Ele, então, transforma o corpo anatômico em erógeno.
Defesa do pornô
Xico Sá, jornalista, editor e escritor, acaba de lançar Catecismo de devoções, intimidades e Pornografias pela sua Editora do Bispo. É um manifesto a favor do hedonismo.
- É pornografia do início ao fim - explica o autor.
Ele diz que a classificação dos textos em erótico e pornográfico obedece mais a critérios morais do que a estéticos.
- O erotismo é considerado mais puro, por isso aceito socialmente. A pornografia é pensada como diabólica, portanto, condenável.
O cearense aponta que há muito preconceito com o gênero pornográfico, definido por ele como a arte de escrever com o corpo, "tão verdadeira, tão visceral, que quase não se distingue uma coisa da outra".
Miriam Chnaiderman concorda que há um tabu em torno do tema, mas diz que é necessário quebrar a ideia de que tudo o que é pornográfico é feio.
Transgressão e expressão
Xico, no entanto, diverge da psicóloga quando afirma que a pornografia é, sim, uma manifestação artística. Sua assertiva encontra respaldo em uma das definições do dicionário Michaelis: "arte ou literatura obscena". Erotismo é definido pelo mesmo dicionário como "indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbolismo ou alusão, por uma obra de arte".
Sobre o suposto caráter reacionário da pornografia, Xico Sá diz que, ao contrário, ela liberta, pois permite radicalizações na linguagem mais convencional. Nesse sentido, o jornalista considera transgressor o texto pornográfico. Ele cita como exemplo Hilda Hirst, "uma mulher que se utiliza das palavras de forma libertária". O texto e a arte eróticos, segundo Sá, não teriam o mesmo arrojo estético do pornográfico.
- Lembra aquelas revistas masculinas que eram censuradas? Era tudo muito caricato, bonzinho, sem graça.
A linguagem erótica é vista pelo autor de Catecismo de Devoções como envergonhada, careta e artificial.
Miriam, por sua vez, diz que tanto a pornografia quanto o erotismo são potencialmente transgressivos, e reforça a ideia de que, não raro, se confundem.
- Falam que a pornografia privilegia a narrativa no tempo presente, mas os textos e filmes eróticos estão cada vez mais se atendo à descrição das vivências em tempo real.
No curta Gilete Azul (2003), a diretora retrata a artista plástica Nazareth Pacheco, que mostra do sofrimento do corpo por objetos cortantes. Miriam acha o trabalho de Nazareth uma analogia do caráter revolucionário da linguagem erótica.
- Ao mesmo tempo em que fala da dor, trabalha com elementos da sexualidade feminina.
Ponto G da questão
Ao largo das grandes definições, no varejo as diferenças entre o erótico e o pornográfico, entre o que se considera arte ou mera sacanagem, nunca são claras. Acima das dicotomias, talvez a questão ainda seja a exposta por José Paulo Paes em Poesia Erótica Traduzida.
- A poesia serve para excitar? - pergunta Paes no prefácio ao seu livro.
Para José Paulo Paes, a pornografia é a que quer provocar excitação sexual. A erótica tenta impedir que o tempo dilua na memória um momento tão efêmero quanto o do prazer.
- A arte existe porque a vida não basta.
A erótica, resume Paes, quer reviver no plano do imaginário o essencial do que se viveu e ao que se aspirou no plano real. A pornografia mostra tudo, descreve tudo, ao gosto do freguês. A erótica pinça o momento mais importante, flagra o efêmero instante do êxtase e luta contra o esquecimento e a morte, contra tudo que apague o prazer.
Texto de Eliane Scardovelli retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Sexo & Linguagem, Editora Segmento, São Paulo, Ano I, Junho 2006.
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