quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A paixão pelo verbo

Palavras ligadas à vida amorosa mostram a reviravolta de sentidos por que os sentimentos passam ao longo da história


Amor que é amor, só com maiúscula intensidade. E não só quando expresso pela paixão mais descabelada e o desejo sexual transbordante. A ideia de amor envolve afetos superlativos mesmo quando é centrado e sereno, como o carinho, a saudade ou o cuidado com quem se ama. Esses são estados de ânimo que só fazem sentido porque vividos de forma intensa.

Parece que sempre foi assim. Mas nem sempre foi. É ideia recente na humanidade essa do amor idílico, romântico e sutil, o amor galante, dos folhetins rasgados, de Hollywood e das telenovelas.

O amor idílico surgiu na aristocracia provençal do século 12, lá no sul da França. Num dos ensaios de Os Sentidos da Paixão, organizado por Adauto Novaes para a Companhia das Letras/Funarte, em 1991, Paulo Leminski comenta que essa ideia de amor doeria os ouvidos antigos, em Roma, na Grécia ou nos países árabes. Não que os casais da Antiguidade não sentissem nada um pelo outro. Mas, naqueles tempos, esse sentimento era uma sensação incômoda que deveria ser, senão abolida, controlada ao máximo possível.

Se esse sentimento superlativo é histórico, se a humanidade não nasceu com ele, então "amor" é palavra que ganhou corpo cultural e flutuou ao sabor dos contextos. Por isso, talvez dê pano pra manga chamar a atenção para outra escala de grandeza do ato de amar. Em particular, as reviravoltas de linguagem, as revelações de afeto que são comunicadas num nível mais atômico, mais concentrado, o grau zero do relacionamento humano, que é a palavra.

A história das palavras usadas no amor é cheia de imprecisões e reviravoltas de sentido, de voz ativa, passiva e média. Em mais de 20 séculos de uso, a própria palavra "amor" se reconfigurou, dançou conforme a música, deu nome a sensações diferentes e muito mais intensas do que caberiam em suas quatro letras. Talvez por isso todo mundo fale de amor com propriedade, mas ninguém sabe dizer direito o que é.


Amores Romanos


Os romanos antigos por muito tempo deram um sentido passivo a palavras relacionadas ao afeto. "Amor" por muito tempo significou "qualidade de ser amado". Quando um romano dizia "amor", só lhe vinha à cabeça "ser amado", nada mais. Dizem que, por influência externa, talvez germânica, a palavra ganhou teor ativo, como "sentimento de amar".

Não sabemos ao certo em que momento da história essa mutação ocorreu. É como se o verbo "receber", atributo de quem recebe, começasse a valer também como sinônimo de algo oposto, que é "entregar". De pista com mão-única, virou pista dupla, ação mútua, com vai-e-vem.

Seja qual for o sentido de origem, foram os latinos que nos legaram a forma sintética "amor", um significante com mil e uma utilidades, aplicado a várias situações. Mas mesmo os romanos devam a "amor" um sentido diferente do atual.


Paixões Gregas


Os gregos tinham quatro verbos para "amor", mas só um correspondia ao de casais. Todos os outros recebiam nomes diferentes. Platão mostra Sócrates no Fedro narrando duas origens para o afeto sensualizado. Para os homens, o amor seria eros (alado), aquele que tem asas. Para os deuses, seria muito mais complexo, seria ptérôs (alante), aquele que doa asas. O amor é "menos o que voa do que o que faz voar", como diria H. Joly (citado por José Américo Pessanha, em Os Sentidos da Paixão). âo é só autossuficiente, porque tem asas, como é incapaz de bastar a si mesmo, daí querer compartilhar. O amor a dois talvez não esteja num ou noutro campo, não seja alado nem alante, eros ou ptérôs, mas viva na encruzilhada, na intersecção.

Amar não tem sentido só passivo, muito menos ativo, ocupa o meio-campo, conjuga-se em voz média. Dizer que amo alguém é dizer o quanto me amo também. É como quem diz "eu me confesso": no momento mesmo em que me revelo, a revelação é feita a mim também. No momento em que falo a alguém, o que falo me afeta. Sou sujeito da ação e seu alvo. Sou voz média. O mundo dos deuses e dos homens numa só expressão. Amor, humor.


Texto de Luiz Costa Pereira Júnior retirado da Edição Especial Etimologia, Revista Língua Portuguesa, Editora Segmento, São Paulo, Janeiro 2006.

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