sábado, 25 de junho de 2022

Resguarda-te na Paz

    Anotas, entristecido, que parece haver uma conspiração infeliz contra os teus propósitos elevados de realização interior.

    Observas, surpreso, que ao estabeleceres propósitos de dignificação moral, surgem impedimentos soezes que, não poucas vezes, te arrojam a situações lamentáveis.

    Concluis, desencantado, que os teus labores idealistas, que te servem de base para mais altos voos, são torpedeados, vilmente, por amigos, empurrando-te para situações conflitantes entre e a que aspiras e o que realizas.

    Constatas, dorido, que a redenção pessoal e as conquistas libertadoras custam alto preço de renúncia e esforço, não bastassem os convites à vulgaridade e às permissões para o delito, que se multiplicam, assustadoramente.

    O homem empenhou-se em conquistar as alturas, e saiu da Terra; em penetrar nas águas abissais dos oceanos, e ora resgata os tesouros que ali dormem sono secular, descobrindo, também, a flora e a fauna multimilenárias, que jaziam desconhecidas; em decifrar o milagre da organização celular, e penetrou nas moléculas que a constituem; em ligar ilhas a continentes, e aterrou as regiões que as separavam; em combater as moléstias, e logrou detectar considerável número de bactérias, vírus e micróbios adversários dos organismos saudáveis; em equilibrar o relacionamento social, e pôde estabelecer leis, nem sempre respeitadas; em comunicar-se com os demais indivíduos em pontos diferentes do globo, e aperfeiçoou o sistema da informática; em transformar a face do Planeta, e ei-lo modificando a ecologia, alternado a paisagem nos desertos que se convertem em pomares, nas florestas que se tornam regiões desérticas, nos rios e mares que morrem lentamente...

    Todavia, são poucos os que se empenham em descobrir-se a si mesmos e lutar em favor da plena realização.

    Esta é a tarefa superior, à qual todos nos devemos dedicar com o maior empenho, a fim de fruir de paz, passo inicial para a aquisição da felicidade.

    Não te permeies com os fluidos deletérios dos enfermos psíquicos, ingratos e perniciosos, que vivem contigo e te buscam perturbar.

    Tem-nos na conta em que se encontram e exercita paciência para com eles.

    Não te aflijas em face das acusações insensatas e despeitadas que outros te fazem, ante a impossibilidade de alcançarem-te e caminharem ao teu lado.

    A tua vitória não pode ser perturbada pelas insignificâncias do caminho.

    Não revides as agressões mentais com que investem contra ti.

    Permanece em calma e amortece o dardo que dispararam, fazendo-o desagregar-se ao atingir ao atingir o algodão da tua sensibilidade.

    Não reivindiques compreensão nunca.

    Quem alcança as alturas vê melhor e tem o dever de desculpar aqueles que ainda estão no vale em sombras.

    A tua paz é de relevância, e para mantê-la investe os teus valores mais altos.

    Paz é conquista interior.

    Paz é iluminação interna.

    Paz é presença divina no indivíduo.

    Resguarda-te, pois, em paz e deixa o tempo transcorrer, porquanto ele conseguirá fazer amanhã o que hoje te parece impossível conseguir.

    Jesus, na montanha das Bem-aventuranças, ou no Getsêmani, ou no Gólgota, manteve a mesma paz, em razão da certeza de saber que Deus estava com Ele e, por consequência, Ele estava com Deus.

    Paz é Deus na mente e no coração.


Retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

O Arsenal da Macumba

Os objetos de feitiçaria recolhidos pela polícia ao longo do século XX formaram grandes coleções de magia e mostram como a sociedade se relaciona com as suas crenças.


    " Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública ", como diz o artigo 157 do Código Penal de 1890, eram atos condenados pela lei e pela própria crença da sociedade no Brasil republicano.

    Desde a promulgação desse Código Penal, e ao longo do século XX, inúmeros acusados de serem maus espíritas, macumbeiros ou pais e mães-de-santo foram levados à prisão em quase todos os estados da federação. No Rio de Janeiro não foi diferente. Mas quem eram os praticantes do espiritismo, da magia e de seus sortilégios perseguidos pela polícia em uma cidade cuja crença em espíritos e feitiçarias ocorria entre pessoas de todas as classes? Como eram descobertos? Uma coisa é certa: se há crença na feitiçaria, há o combate aos feiticeiros. Portanto, os processos criminais nos quais muitas pessoas foram acusadas de praticar o crime previsto no artigo 157 pressupõem que a sociedade brasileira acreditava na feitiçaria. O primeiro passo para combater o uso de poderes sobrenaturais era, portanto, a acusação daqueles que supostamente usavam esses poderes para produzir malefícios, que "praticavam a magia e seus sortilégios". Os processos criminais constituíam-se formas institucionais criadas para disciplinar as acusações, julgar se o indivíduo era um feiticeiro ou charlatão e conferir a devida pena ao culpado ou a merecida liberdade ao inocente.

    A denúncia era o primeiro passo desses processos, comuns a partir do fim do século XIX. A acusação de fato é o ponto fundamental para que ele fosse instaurado. O código de 1890 estimulou de maneira decisiva o ato de delatar associações religiosas "quando elas serviam para fins ilícitos". Sem denúncia não havia processo.

    Os processos de maneira geral revelaram a participação de toda a organização jurídica, juízes, advogados, delegados e promotores nos assuntos da magia, criando uma perícia especializada que examinava os fetiches, feitiços e sortilégios e os distinguia da magia benéfica. Essa perícia era feita por policiais que, como oráculos, diziam se o réu era feiticeiro perigoso ou legítimo pai-de-santo.

    Nas colônias inglesas da África era diferente. Uma análise do sistema de condenação e regulação de acusações nos processos de lá revela que o objetivo central da lei de Supressão à Feitiçaria da antiga colônia britânica Rodésia, atual Zimbábue, era combater a própria crença na feitiçaria. Em seu artigo três, a lei da Rodésia - contemporânea ao nosso código penal de 1890 - considerava culpado de ofensa quem apontasse outra pessoa como feiticeiro ou imputasse a ela o uso de meios não-naturais para causar mal ou dano a pessoa, animal ou propriedade. O castigo ia de multa até 100 libras esterlinas, prisão até três anos, ou castigos corporais não superiores a vinte chibatadas.

    Para os povos dominados pelos britânicos, a lei era considerada totalmente estranha uma vez que, para eles, a feitiçaria era vista como tão natural e verdadeira quanto o cair da chuva no verão.

    Se os shona, grupo étnico habitante da então Rodésia, não podiam aceitar essa lei inglesa, nossos magistrados, promotores e testemunhas, sem falar nos próprios acusados, tampouco teriam podido concebê-la. Como os shona, todos os envolvidos em nossos processos criminais acreditavam na magia e consideravam um dever coibir os abusos. Se os colonizadores ingleses visaram suprimir a crença na feitiçaria, a elite brasileira, nela emaranhada, procurava administrá-la satisfatoriamente.

    Os litígios criminais que foram instaurados com base no artigo 157 do Código Penal de 1890 revelaram o fascínio que essa crença exercia em toda a nossa sociedade. Uma das demonstrações desse fascínio, verdadeiro "vício" na acepção de João do Rio (1906), são as inúmeras coleções de "apetrechos" apreendidos pela polícia e que se encontram em museus brasileiros. Especialmente a coleção Perseverança, hoje sob a guarda do Instituto Histórico Geográfico de Alagoas, tem uma característica particular, pois revela a participação de grupos ligados à política local no combate aos "feiticeiros".

    Euclides Malta, que governou com mãos de ferro o estado de Alagoas, foi acusado de pertencer aos xangôs, tradição religiosa africana preservada especialmente nesse estado e em Pernambuco. Os terreiros por ele frequentados foram violentamente atacados em 1912 numa ação popular: o povo, farto das manipulações do governador, invadiu esses terrenos, quebrando os atabaques e até ferindo e matando uma das mães-de-santo.

    No Rio de Janeiro, peritos da polícia eram chamados a opinar sobre os materiais apreendidos e os classificavam como de "magia negra", parte do "arsenal dos bruxos", "objetos próprios para a exploração do falso espiritismo", "objetos de bruxaria", "coisas necessárias à mise-en-scène da macumba e candomblé", "objetos próprios para fazer o mal, ebó (embó)".

    Os artefatos recolhidos pela polícia em "casas de fazer macumba", em terreiros e centros  espíritas como "antros de bruxaria" foram expostos no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro e constituíam a prova material de que o feitiço existia. O Museu da Polícia contava a história da repressão àqueles que praticavam a bruxaria, usando poderes sobrenaturais para produzir o mal. A bruxaria, na versão do nosso sistema de explicação do infortúnio, era plenamente aceita.

    A coleção classificada como " coleção afro-Brasileira, jogos, entorpecentes, atividades subversivas, falsificações de notas e moedas, mistificação" está registrada sob inscrição nº 1, de 5 de maio de 1938, no Livro Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do antigo Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN). As peças antes de seu tombamento em 1938 encontravam-se na Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificação da 1ª Delegacia Auxiliar no "Museu de Magia Negra". A delegacia que reprimia e perseguia os feiticeiros era a guardião daquilo que os peritos da polícia definiam como objetos de bruxaria. Essa materialização da bruxaria ainda é vista com desconfiança - não faltaram pessoas para dizer que aquelas coisas eram perigosas, estavam "carregadas", "pesadas" e era arriscado desvendar sua origem.

    Depois de tombados, os objetos passaram a fazer parte, em 1945, do Museu de Criminologia, um museu científico e de arte popular que faz parte do Conselho Internacional de Museus, registrado como Museu Científico de Departamento de Segurança Pública. O museu tem uma coleção de armas, bandeiras nazistas, pertences de presos políticos. A "coleção de magia negra" foi organizada pelo primeiro diretor da casa que, para tanto, utilizou-se de bibliografia sobre o tema das religiões afro-brasileiras sobretudo Artur Ramos, Roger Bastide e Edson Carneiro.

    Em 1979, os objetos da bruxaria no Museu da Polícia estavam dispostos como em um terreiro, com as imagens dos exus separadas das dos outros orixás, os atabaques separados das imagens e os "trabalhos para fechar caminhos" em estante separada dos "trabalhos para abrir caminhos". Afinal, se estivessem dispostos de outra maneira perderiam seu sentido de artefatos de magia maléfica, pois é a ordenação mágica que determina sua função de produzir o mal ou o bem. Naquela altura as pessoas iam ao museu fazer a sua "fezinha" e depositavam moedas e flores ao pé das imagens. Para os visitantes do Museu aquelas imagens e itens rituais como velas, vestimentas e capacetes ganhavam ainda mais poder e força por ter pertencido a poderosos feiticeiros.

    Hoje, a "coleção de magia negra" está fechada à visitação pública. A coleção do Museu da Polícia parece ter sido danificada durante um incêndio, tendo sido colocada na reserva técnica, onde o acesso a ela era proibido. O que significa o desaparecimento da coleção dos olhos de público? Arrisco duas hipóteses. A primeira é que houve nos anos 1970 uma demanda por parte de alguns movimentos políticos para  devolver as peças para seus donos originais. Essa demanda foi dificultada porque aqueles itens expostos no museu eram a prova viva de que a feitiçaria existia e estavam "carregados". Mas quem sabe elas não teriam assim mesmo sido encaminhadas à alguma instituição religiosa? Também é possível especular que o sumiço da coleção do Museu da Polícia tenha algo a ver com a força crescente das religiões evangélicas no Rio de Janeiro, inimigas mortais da feitiçaria, que têm crentes em todas as esferas da sociedade, até na policial. A mais forte hipótese, no entanto, talvez  seja o fato de estarmos vivendo uma mudança no modo de pensar dos brasileiros. Será que o feitiço não está mais no centro da sua maneira de pensar contemporânea como teria estado há muitos anos?


Texto de Yvonne Maggie. Professora titular do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro 2005.

domingo, 19 de junho de 2022

Axé Carioca

Misto de conquistador, curandeiro e pai-de-santo, o líder negro Juca Rosa criou um ritual próprio, atraindo uma legião de seguidores no Rio de Janeiro do século XIX.


    José Sebastião da Rosa, mais conhecido como Juca Rosa, foi um dos mais importantes e afamados líderes religiosos negros que o Rio de Janeiro conheceu. Nascido em 1833, filho de mãe africana, trabalhou como alfaiate e cocheiro antes de se tornar o grande Pai Quilombo, como também era chamado. Na década de 1860, vivendo no centro da Corte, na rua Senhor dos Passos, quase esquina com a rua do Núncio, Rosa liderava uma misteriosa seita, que agregava diversos adeptos. Além dos negros, dos trabalhadores escravos, livres e libertos e dos capoeiras, figuravam também, entre seus seguidores, políticos, ricos comerciantes, membros das elites econômicas brancas e letradas. Graças ao prestígio que adquiriu, Rosa estabeleceu relações com pessoas importantes da sociedade e suas cerimônias reuniam membros das mais diferentes origens sociais, que se deslocavam até sua casa em busca de seus preciosos - e caros - conselhos e prodigiosas curas. Por caminhos muito particulares, Juca Rosa tornou-se figura notória na sociedade carioca do período.

    Não se tratava de um mero feiticeiro ou rezador, apenas mais um entre tantos e tão variados praticantes de diferentes religiões e artes de cura que habitavam  a Corte, concorrendo com os médicos científicos na disputa por pacientes. Afinal, no Rio de Janeiro do final do século XIX, assim como em todo o país, as mais diversas artes de cura conviviam lado a lado com a medicina oficial do Império. Embora proibidas por lei e arduamente combatidas por grupos de médicos e por setores da imprensa, as práticas ilegais de medicina estavam presentes com bastante força no cotidiano dos mais distintos setores sociais. Mas Juca Rosa, que concentrava as atividades de líder religioso e curandeiro, era um caso especial: seu nome tornou-se sinônimo de líder religioso afro-brasileiro, ou "feiticeiro negro", como diziam as publicações da época, e associado a práticas supersticiosas de pessoas ignorantes.

    Entretanto, uma denúncia anônima que o acusava de envolvimento sexual com várias mulheres, dirigida ao segundo delegado de polícia da Corte, interrompeu suas atividades, levando-o à prisão. Quando o julgamento de Rosa foi iniciado, em 5 de julho de 1871, ele já estava preso havia quase oito meses, sendo processado pelo crime de estelionato. Em seguida, passou a figurar nos periódicos tradicionais e nos pequenos jornais humorísticos, em publicações avulsas, e até mesmo em uma peça de teatro; virou notícia até em jornais de outras capitais, como Belém e Salvador. Todos eles enfatizavam o escândalo de seu envolvimento não apenas com prostitutas, costureiras, mulheres pobres e negras, mas também com senhoras brancas e casadas, provenientes de famílias influentes na vida política da Corte - uma de suas amantes seria, segundo especulações da imprensa, a esposa de um importante político, possivelmente o autor da denúncia. Tudo isso contribuía para a caracterização de Rosa como um monstro imoral e cruel. No entanto, as senhoras, que eram a maioria de seus seguidores, reconheciam o líder como um "homem de atrativos", sempre bem vestido, usando correntes, anéis e outras joias.

    Os jornais estampavam notícias dizendo que Rosa cometia "práticas sacrílegas", apelando ora para a religião, ora para "ridículas e estúpidas feitiçarias"; que teria "uma posição importante em um círculo de mulheres", pobres vítimas, que o buscavam para "conservar fiel algum amante ou o próprio marido, ou fazê-lo voltar a antigos sentimentos amorosos", ou mesmo quando desejavam " fortuna para qualquer empresa ou fim, ou mal de um inimigo". Eram poucos os noticiários da época que defendiam o líder negro. Mas o periódico ilustrado O Lobisomem, com humor peculiar, imaginou uma conversa entre mãe e filha:

    - Mamãe, que história é essa que se vende a dois vinténs? Dizem que é lição aos pais do mau exemplo das mães!

    - São cães que ladram à lua, são invejosos, que queres! Já chamam malvado a um homem que era amigo das mulheres.

    Várias das filiadas, ou "filhas" de Juca Rosa, compareceram para prestar depoimentos durante o processo, e forneceram diversas informações sobre a associação religiosa do Pai Quilombo. De acordo com os depoimentos, as "filhas" o procuravam por livre e espontânea vontade, na maioria das vezes para resolverem problemas amorosos. Várias testemunhas confirmaram sua crença no poderio de Rosa, acreditando que ele conseguiria da sorte tudo o que desejasse. As seguidoras filiavam-se à sua associação ou "mesa" por meio de um cerimonial que envolvia diversos rituais, música e dança, e um juramento de fidelidade ao "chefe das macumbas" do Rio de Janeiro. A macumba em questão não era mais um instrumento musical de pau riscado (algo semelhante ao reco-reco), tocado por Juca em noites de festa. As filiadas também reconheciam que, após o juramento, Rosa passava a ser o senhor de suas almas e corpos. Além de curas e conselhos, era capaz de conseguir para elas amantes ricos, assim como poderia também castigar os homens que as tratassem mal - muitos dos quais participavam dos rituais conduzidos pelo Pai. Esses castigos viriam em diferentes formas: desde "bolos na cabeça" (um murro com os dedos em nó), ruína financeira ou perda da virilidade, fazendo com que "não prestassem para mulher alguma", até a morte.

    Pai Quilombo foi julgado por estelionato, e não por exercer a feitiçaria, já que no Código Criminal do Império não havia nenhuma lei proibindo essa atividade. As depoentes do processo confirmaram que pagavam uma mensalidade a Juca Rosa. Além disso, para trabalhos ou serviços extras, Rosa cobrava à parte. Uma consulta podia custar até 60 mil réis na década de 1860, preço bastante elevado para a época - equivalente a uma consulta a um médico de renome. Várias das filiadas, em sua maioria pobres, residindo em áreas de prostituição, enfrentavam dificuldades para sobreviver e se sacrificavam para manter em dia as contas com o Pai: faziam dívidas, vendiam objetos que não lhes pertenciam e vários outros malabarismos para dar dinheiro a Rosa.

    Emília Carolina Mascarenhas, por exemplo, costureira de 28 anos, disse que procurou Rosa pela primeira vez porque queria conservar a estima de um homem com quem então vivia; e ouvira dizer "que Rosa tinha tanto poder como Deus". Pagou 50 mil réis para que ele iniciasse o "trabalho necessário para o fim que ela tinha em vista". Já Leopoldina Fernandes Cabral, 23 anos, declarou que foi em busca de Juca para "conservar a estima de um moço" por quem tinha "profunda afeição", pois soube que Rosa "tinha meios e poder para conseguir tudo que a ele se pedia". Acabou se filiando à associação, pagando uma mensalidade de 60 mil réis e aceitando Rosa como "senhor de seu corpo e espírito".

    Denunciava-se também a proteção que Rosa auferia de poderosos figurões da cidade, com os quais teria ligações. Em uma sociedade organizada com base na escravidão e na inviolabilidade da vontade dos senhores brancos, o debate surgido em torno do julgamento de um líder religioso afrodescendente, que adquiriu fama e prestígio em plena capital do Império, tomou grandes dimensões por ter ocorrido em um momento político decisivo: os anos 1870 e 1871, em que fervilhavam as discussões em torno da futura Lei do Ventre Livre, e os destinos que se dariam ao país após o fim do trabalho escravo. Esses debates deixavam evidente o que se pensava em relação aos negros nos meios intelectualizados do Brasil. A raça negra era, nesse contexto, considerada inferior, ignorante e supersticiosa, embrutecida e muitas vezes perigosa; discutia-se muito o perigo moral que os negros representariam junto a famílias brancas, como também os danos que a herança africana causaria na formação da nação.

    Para muitos, Juca Rosa fazia parte dessa "escória". Para outros, era considerado feiticeiro poderoso, podendo curar males do espírito e do corpo. Fabricava e vendia breves, um tipo de bolsa de mandinga ou patuá feito para evitar feitiços ou proteger contra malefícios, usado junto ao corpo, num colar ao pescoço. Serviam para proteção contra "qualquer outro feiticeiro que lhe fizesse qualquer mal", e também para "dar felicidade", "dar fortuna" e "livrar de quebranto", como afirmou um seguidor seu.

    Mas grande parte da clientela de Pai Quilombo o procurava em busca de curas. Juca afirmou em seu depoimento que embora "não fosse deus", tinha respostas para males físicos, como dores e ossos quebrados. A forma como tratava as moléstias unia procedimentos rituais, manipulação de forças sobrenaturais e também remédios feitos de erva, juntamente com rezas e velas acesas para "Senhora Santa Ana" e "Senhor do Bonfim", santos que cultuava. Quanto à acusação de receber dinheiro de diversas mulheres, Rosa declarou que elas o faziam por serem extremamente generosas. Reconheceu que teve muitas vezes relações com as filiadas, negando apenas que as tivesse deflorado. Quando perguntado sobre os objetos encontrados em sua casa, como vidros de medicamento, raízes, pandeiros e até tranças de cabelos, explicou: "num caso de enfermidade ou de dificuldade no decorrer da vida, sobre eles derrama o sangue de um galo; esse ato, na sua crença, agradava aos espíritos ou às almas e era praticado por ele em auxílio a qualquer de seus amigos que por enfermo infeliz a ele recorriam.

    Sem dúvida, as atividades de Juca Rosa se assemelhavam a várias práticas religiosas afro-brasileiras. Mas não é possível explicar tais rituais como mera continuidade de atividades religiosas de regiões da África, nem do candomblé que florescia na Bahia, na mesma época, e para onde Juca Rosa fazia várias viagens com o objetivo de "se limpar". Certamente, em terras baianas, Rosa consultava mestres e pais-de-santo, com o intuito de aprender a realizar algumas de suas práticas.

    Da mesma maneira, a associação de Rosa também não pode ser classificada como algo idêntico ao candomblé ou a umbanda que se conhece hoje ainda que se possa identificar algumas íntimas semelhanças, como o sacrifício de animais ou cerimônias envolvendo canto, dança e transe espiritual. Estavam ali, na associação de Juca Rosa, alguns dos primórdios do que seria o candomblé carioca. Porém, a maioria de suas atividades era peculiaridade sua, especialmente seu relacionamento com diversas mulheres.

    Os rituais de Rosa e seus seguidores devem ser encarados, assim, como próprios do Rio de Janeiro nas últimas décadas da escravidão. Uma religião que tinha elementos católicos e elementos de diferentes culturas africanas, sem ser nem católica nem africana: era carioca, marcadamente negra, embora cultuada também por brancos, pobres e ricos. Relacionava-se a objetivos imediatos, de sobrevivência em um ambiente racista e hostil. No entanto, esse não era seu único propósito, pois as pessoas também frequentavam a casa de Rosa em busca de mulheres bonitas, homens gentis e cheios de contos de réis, de preferência; de companheiros e amigos entre pares; de curas para doenças ou infortúnios, ou simplesmente por fé encarnada na figura carismática de José Sebastião Rosa.

    Juca Rosa foi condenado a seis anos de prisão, apesar de ter contratado um famoso advogado para defendê-lo, que fez diversas apelações, até mesmo ao imperador d. Pedro II. Ficou na casa de correção da Corte até 1877. Quando saiu, teria se tornado "guarda da municipalidade", segundo relatos de memorialistas. Seu nome continuou aparecendo na imprensa e em diversas publicações por muitos anos, ora como memória de grandes personagens da história do Rio, ora como sinônimo de feiticeiro negro e grande conquistador, cada vez que um "novo Juca Rosa" aparecia e sacudia a cidade.  


Texto de Gabriela dos Reis Sampaio. Professora de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É doutora em História Social pela Unicamp, com a tese "A história do feiticeiro Juca Rosa: cultura e relações sociais no Rio de janeiro Imperial". Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

sábado, 18 de junho de 2022

Ante a Insatisfação

    A insatisfação prepondera no organismo social da Terra, fazendo vítimas que se estiolam em processo de decomposição interior. 

    As pessoas que sofrem dificuldade econômica rebelam-se ou se entregam à prostração do desinteresse, em lamentável estado de agonia lenta.

    As outras, que buscam segurança e dispõem de haveres, projeção e poder na comunidade, experimentam carência afetiva, entregando-se, não raro, a excessos que terminam por entediar, conduzindo-as aos mais sórdidos abusos de desrespeito por si mesmas e pelos outros, exaurindo-se nos alcoólicos, na usança do sexo alucinado, nos tóxicos. O suicídio, direto ou não, é o próximo passo na correria desenfreada. 

    A insatisfação resulta do desconhecimento das finalidades reais da existência terrestre.

    A teimosa negação do homem integral - Espírito, perispírito e matéria - a favor da forma física em que se apresenta é a grande responsável pelo desenfreio que se observa em toda parte.

    Como efeito imediato, a insatisfação arquiteta gozos sempre novos, fugas da realidade, cada vez mais espetaculares, não impedindo, entretanto, que as suas vítimas se reencontrem mais cansadas, mais inquietas, menos saciadas.

    A atual liberação dos instintos e dos conflitos, como terapêutica da autoafirmação do homem, mais o torna ansioso quão mais insatisfeito.

    O processo de amadurecimento psicológico portador de serenidade para o indivíduo, no entanto, é diferente dos cômodos métodos de aparente solução imediata.

    Primeiro, é necessário disciplinar a vontade, após descobrir que se encontra em um estádio da vida, a caminho de nova etapa a conquistar.

    Logo depois, buscar as motivações próprias para a luta que deve travar no seu mundo íntimo, a fim de encontrar-se, equipando-se de equilíbrio, de discernimento para os confrontos inevitáveis do futuro.

    Não ter pressa na colheita de resultados, mas evitar o postergamento das ações.

    Uma vida plena é rica de criatividade, de experiências, de informações e de belezas.

    Em todas as situações, afirmar-se como aprendiz, valorizar o ensejo e adquirir o controle sobre elas.

    Nunca desistir do programa iluminativo.

    Observa as pessoas a tua volta: os saciados, os insatisfeitos, os felizes, os atormentados. Não se detêm em uma análise que lhes resulte benéfica. Transferem-se de uma para outra situação, automaticamente, apressadas, sem que digiram as experiências vivenciadas ou programem as porvindouras.

    Não amadurecem os sentimentos, porquanto as sensações e as emoções perturbadoras têm predomínio em suas vidas.

    Algumas são invejadas, porque prepotentes ou famosas; no entanto, vivem insatisfeitas com a situação que desfrutam, distantes da realização interior.

    Várias afirmam que acreditam na imortalidade da alma. Todavia, a sua não é uma crença consciente, trabalhada pela razão, vívida. É uma chama bruxuleante, que não emite quase claridade, nem aquece os sentimentos, a caminho da extinção sob os ventos contínuos do inconformismo.

    Se a dor tenta convidá-las à reflexão, ao aprofundamento da crença, reagem, sentindo-se defraudadas por Deus e pela vida, que parecem não as poupar do sofrimento, como se fossem especiais, credoras de todas as alegrias sem esforço.

    Não lamentes, não as imites.

    Elas aprenderão com o tempo, este mestre invencível, silencioso e eficaz, que a tudo e a todos transforma.

    A insatisfação de Anás e de Caifás gerou neles a inveja e o ódio contra Jesus.

    A insatisfação de Judas fê-lo vender o Amigo.

    A insatisfação de Pilatos, entediado, manteve-o indiferente, lavando as mãos quanto ao destino do Justo.

    A insatisfação de Pedro tornou-o pusilânime e negador. Porém, despertando do letargo, reassumiu a consciência do amor e do dever, entregando-se-Lhe em regime de totalidade até a morte.

    Lembra-te deles e não te permitas a insatisfação, seja qual for o motivo com que ela te busque apoio.


Retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joana de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

sábado, 11 de junho de 2022

Vítimas da Loucura

    Sim, são hoje obsessores, catalogados como seres impenitentes, vingadores implacáveis, destituídos de sentimentos de piedade ou compreensão.

    É certo que se deixaram enlouquecer que se deixaram enlouquecer e perseveram na monoideia do desforço, elaborando planos de crueldade e preparando armadilhas para surpreender aqueles contra os quais se movimentam.

    Difíceis ao diálogo e armados de ferocidade, quanto de insensibilidade ao sofrimento alheio, prosseguem cegos pelo rancor.

    Certamente chegam a provocar revolta, e a resposta à sua constante sanha perseguidora é o desespero, quando não o ressentimento profundo com sinais de rebeldia.

    Obsessores, que se tornaram, são sinônimos de inimigos insolventes.

    Não os detestes, porém, por mais lhes sofras os acúleos da perversidade.

    Eles são teus irmãos doentes, em último grau de desequilíbrio. De alguma forma, sem que o percebam, são, também, teus benfeitores.

    Graças ao seu tresvario, despertam-te para a realidade transcendente, a fim de que atentes para os deveres legítimos.

    Não eram obsessores; tornaram-se. Os seus perseguidos empurram as suas esperanças para o abismo da desesperação.

    Confiaram e tiveram os seus ideais traídos.

    Amaram e se tornaram vítimas da infidelidade.

    Doaram os seus sentimentos, que foram atirados ao paul do crime e da indiferença.

    Sonharam com a felicidade, que tiveram transformada em pesadelos de sofrimentos inenarráveis.

    Distenderam a ternura e recolheram a ingratidão.

    Viram enregelar-se as emoções enobrecedoras.

    Desequipados de fé e coragem, caíram na cegueira do ódio; deixaram-se arrastar pela correnteza da desdita e agora, atormentados, não sabem o que fazem.

    Não há razão que lhes justifique a sandice. No entanto, considera se esses infaustos acontecimentos fossem contigo, como agora te apresentarias... Isso te auxiliará a entendê-los e até a amá-los.

    Eles necessitam de tuas vibrações afetuosas.

    Faze o bem renova-te, iluminando-te. Graças a tuas conquistas eles se esclarecerão e voltarão à normalidade, preparando-se para refazer o caminho, recomeçar, tentando seguir contigo em paz.

    Jesus, que é o Senhor dos Espíritos, sempre usou para com eles de imensa misericórdia, afastando-os dos seus hospedeiros, com o objetivo de que não agravassem mais as suas responsabilidades, ao mesmo tempo, ensejando-lhes a aprendizagem da Sua palavra, motivadora de renovação e de liberdade.

    Reflexiona em torno dos teus sentimentos, e, considerando os teus irmãos ainda obsessores, tem cuidado, evitando piorar a tua e a situação deles, por negligência ou irresponsabilidade de tua parte.


Retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora; Salvador, 3ª edição, 2014.

sábado, 4 de junho de 2022

Janelas na Alma

    O sentimento e a emoção normalmente se transformam em lentes que coam os acontecimentos, dando-lhes cor e conotação próprias.

    De acordo com a estrutura e o momento psicológico, os fatos passam a ter a significação que nem sempre corresponde à realidade.

    Quem se utiliza de óculos escuros, mesmo diante da claridade solar, passa a ver o dia com menor intensidade de luz.

    Variando a cor das lentes, com tonalidade correspondente desfilarão diante dos olhos as cenas.

    Na área do relacionamento humano, também, as ocorrências assumem contornos de acordo com o estado de alma das pessoas envolvidas.

    É urgente, portanto, a necessidade de conduzir os sentimentos, de modo a equilibrar os fatos em relação com eles.

    Uma atitude sensata é um abrir de janelas na alma, a fim de bem observar os sucessos da vilegiatura humana.

    De acordo com a dimensão e o tipo de abertura, será possível observar a vida e vivê-la de forma agradável, mesmo nos momentos mais difíceis.

    Há quem abra janelas na alma para deixar que se externem as impressões negativas, facultando a usança de lentes escuras, que a tudo sombreiam com o toque pessimista de censura e de reclamação.

    Coloca, nas tuas janelas, o amor, a bondade, a compaixão, a ternura, a fim de acompanhares o mundo e o seu séquito de ocorrências.

    O amor te facultará ampliar o círculo de afetividade, abençoando os teus amigos com a cortesia, os estímulos encorajadores e a tranquilidade.

    A bondade irrigará de esperança os corações ressequidos pelos sofrimentos e as emoções despedaçadas pela aflição que se te acerquem.

    O perdão constituirá a tua força revigoradora colocada a benefício de delinquente, do mau, do alucinado, que te busquem.

    A ternura espraiará o perfume reconfortante da tua afabilidade, levantando os caídos e segurando os trôpegos, de modo a impedir-lhes a queda, quando próximos de ti.

    As janelas da alma são espaços felizes para que se espraie a luz, e se realize a comunhão com o bem.

    Colocando os santos óleos da afabilidade na engrenagens da tua alma, descerrarás as janelas fechadas dos teus sentimentos, e a tua abençoada emoção se alongará, afagando todos aqueles que se aproximem de ti, proporcionando-lhes a amizade pura que se converterá em amor, rico de bondade e de perdão, a proclamarem chegada a hora de ternura entre os homens da Terra.


Retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelos Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora; Salvador, 5ª edição, 2014.