segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Erros que dão charme às canções

MPB coleciona sucessos com erros de gramáticas que, se consertados, comprometeriam a obra.


O cancioneiro popular está repleto de casos em que o padrão da Língua foi subvertido. Muitos assaltaram a gramática, como entoam Lulu Santos e Herbert Vianna, de propósito. Outros buscam aproximar-se do coloquial, e com isso privilegiam variantes outras que não a escrita culta. Há, porém, um repertório de canções brasileiras em que o tropeço de Português, involuntário ou deliberado, é tão integrado à lógica interna da composição que, se corrigido, a música sofreria algum tipo de perda.

O compositor Luiz Tatit, que é professor titular do Departamento de Linguística da USP, observa que a intenção das letras nas canções é retratar falas e não gramáticas normativas, e as exigências da composição tomam o primeiro plano.

Há fatores do próprio processo de criação que não raro "pedem" desvios da norma culta, como a tentativa de encontrar uma rima. É a hipótese plausível, por exemplo, para a clássica marchinha Aurora (1941), de Mário Lago e Roberto Riberti, em que o apelo sonoro fala mais alto que a conjugação verbal tida como correta.

"Se você fosse sincera/ Ô ô ô, Aurora/ Veja só que bom que era/ Ô ô ô, Aurora."

Seria difícil imaginar, num salão de Carnaval, alguém cantando:

"Se você fosse sincera/ Ô ô ô, Aurora/ Veja só que bom seria".

Paulinho da Viola contou ter ficado atordoado quando chamaram sua atenção para um erro de concordância em seu samba Comprimido, sobre um homem que após brigar com a mulher tenta o suicídio.

"Noite de samba/ Noite comum de novela/ Ele chegou/ Pedindo um copo d'água/ Pra tomar um comprimido/ Depois cambaleando/ Foi pro quarto/ E se deitou/ Era tarde demais/ Quando ela percebeu/ Que ele se envenenou".

- Então me deram o toque: não era "envenenou", mas "envenenara".

Paulinho tentou mudar.

- Nada encaixava. Um desespero. Aí decidi deixar assim, com erro mesmo. Nunca reclamaram.


CONJUGAÇÃO DE CARTOLA


Em seus shows, Paulinho costuma lembrar um episódio similar de erro involuntário ocorrido com seu mestre, Cartola. Foi na gravação do disco "História das Escolas de Samba" em 1974, que um produtor notou que o samba Fiz por você o que pude continha uma conjugação verbal equivocada.

O verbo "premiar" foi conjugado "premeia" e não "premia", nos versos:

"Sonhava desde menino/ tinha o desejo felino/ de contar toda a tua história/ este sonho realizei/ um dia a lira empunhei/ e cantei todas tuas glórias/ perdoa-me a comparação/ mas fiz uma transfusão/ eis que Jesus me premeia/ surge outro compositor/ jovem de grande valor/ com o mesmo sangue na veia".

O samba é uma homenagem à escola de samba Mangueira. Cartola fora resgatado do ostracismo pelo jornalista Sérgio Porto (o Stanislaw Ponte Preta), que o encontrou lavando carros em Ipanema. Nos estúdios, alertado do equívoco, Cartola teria ficado visivelmente abalado e quis mudar a letra. Mas um produtor o convenceu de que isso alteraria o sentido da composição.

Um dos desafios de um compositor é passar sua mensagem nos limites da métrica, fazer com que as palavras caibam na melodia (grosso modo, a sucessão de notas que formam a parte cantada da música). Isso, por vezes, induz o autor a dilatar, de forma deliberada, os recursos da Língua, sob o salvo-conduto da licença poética.

- Licença poética era um recurso do letrista para que coubesse na melodia o que ele queria. Mudava-se um pouco a acentuação da palavra ou a palavra aparecia até sem a concordância devida. Esses recursos são habituais, mas hoje em dia se faz menos - diz Luiz Tatit, da USP.

Em muitas obras, o que aparentemente seria um erro de Português é, na realidade, um recurso poético ou um registro narrativo de um determinado linguajar.

- A questão é se de fato se diz aquilo na entoação do dia a dia. Quando não se diz, fica artificial. A menos que seja uma brincadeira. Do contrário, dá a impressão de que, se o letrista tivesse pensado um pouco mais, teria encontrado uma solução melhor - diz Tatit.


O ERRO É A IDEIA


Por vezes, a supressão da norma é o que fortalece a ideia a ser comunicada. O rock A Gente Somos Inútil, sucesso do Ultraje a Rigor na década de 80, é um bom exemplo. Ao mandar a regência e a concordância às favas, o autor Roger Moreira encontrou uma maneira debochada de enfatizar a ideia de um país acostumado a conviver com a precariedade.

"A gente não sabemos escolher presidente/ A gente não sabemos tomar conta da gente/ A gente não sabemos nem escovar os dente/ Tem gringo pensando que nós é indigente/ Inútil/ A gente somos inútil".

- Na música do Ultraje, assim como em Beija Eu, do Arnaldo Antunes, há apropriações do coloquialismo para criar uma forma na canção, um recurso linguisticamente lúdico para criar um estilo - analisa Heron Coelho, diretor e roteirista teatral, com graduação e mestrado em Letras pela USP.

Segundo Heron, tudo é possível quando se trata de poesia e, consequentemente, da canção popular.

- A canção é a conjuminância entre a letra e a música. A partir do momento em que se obtém um bom resultado, dentro dessa instância chamada canção, não interessam mais os formalismos. Beija Eu, por exemplo sugere uma criança cantando - comenta Heron. 

Mas nem toda subversão normativa resulta de uma busca por estilo ou por alargar os limites estéticos. Muitas vezes, trata-se da expressão de um dado linguajar, de uma tradição oral, de um tipo de falante. Ou, como diz Heron, da circunstância em que o autor está inserido:

- É preciso levar em conta a circunstância: a de Luiz Gonzaga, que canta "Assum Preto veve sorto, mas não pode avuá", a de Adoniram Barbosa, com "nós fumo e não encontremo ninguém". Há uma circunstância que leva esse coloquialismo para o discurso da canção popular. São segmentos da sociedade que encontram no discurso musical um lugar para a expressão.

O que, do ponto de vista da linguística, não acarreta qualquer prejuízo, na visão do professor titular de Língua Portuguesa da PUC-SP, Dino Preti, que considera a obra de Adoniran excelente por retratar uma variante linguística de São Paulo.

- Não há sentido nenhum em tentar olhar para as músicas pela variante culta. A Língua tem muitas variantes, não é uma questão de erro, mas de variantes linguísticas, algumas têm mais prestígio linguístico e outras têm menos.

De acordo com Preti, os registros de falas de segmentos sociais mais fechados, de gírias e da linguagem característica são elementos que conferem à música um sabor local, como o dos imigrantes italianos, retratados por Adoniran, que imprimiram suas marcas na capital paulista.


ESPONTANEIDADE


Preti considera que seria uma atividade pedagógica interessante levar os textos de Adoniran Barbosa às salas de aula:

- O indivíduo deve aprender na escola que há diversas variantes e essas variantes são adequadas a certas situações. O importante é saber quando usar essas variantes, em que condições, em que situações de comunicação se usa uma variante ou outra. Ao falar com uma criança, não se vai dizer: "Se você vir sua mãe, dê-lhe o recado".

Visão semelhante tem Tatit.

- Normalmente, uma canção convence mais quando as suas estruturas ditas, cantadas, parecem espontâneas, ditas no cotidiano. E tem gente que leva isso aos extremos. Não é nem que Adoniran, por exemplo, falasse daquele jeito. Ele percebia essas construções no ambiente dele e gostava de trazer para as canções.

Para Preti, o importante da linguagem é comunicar.

- Não adianta falar na língua culta e não comunicar as suas ideias - enfatiza.

Tatit segue o mesmo tom:

- A Língua é completamente livre para se usar como se quiser e a canção é uma das formas. A Língua tem de estar sempre solta.

O universo da canção popular parece pedir um tipo de apreciador que seja também bom entendedor. Assim, o que valeria mesmo é passar a mensagem. E talvez o território livre da música soubesse disso muito antes da linguística.


Texto de Paulo Jebaili e Luiz Costa Pereira Júnior retirado do Edição Especial da Revista Língua - Música & Linguagem 2010, Editora Segmento, São Paulo.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Ressentimento e Amargura

Vírus, aninha-se voraz nas células dos sentimentos e debilita o organismo emocional das criaturas, levando-as a estados degenerativos graves.

Espinho cravado nas carnes da alma, propicia infecções lamentáveis com perigos iminentes de destruição.

Morbo pestilento, exala contágio, gerando epidemias que se alastram através da maledicência e do ódio queixoso, como válvula de escape da vingança.

Enfermidade de perigoso porte, consome aquele no qual se instala, e tenta contaminar o outro, de quem conserva mágoa, ameaçando a organização social, sempre susceptível de desequilíbrio.

O ressentimento é inimigo que deve ser vencido a golpes de amor e compreensão, antes que, semelhante a câncer constritor se irradie em metástase irreversível, vencendo os organismos físico e mental das vítimas que o aceitam.

Muitos males seriam evitados se o ressentimento fosse descartado do relacionamento humano e social.

Sem fundamento nem justificativa, ele é remanescente dos instintos agressivos e primários do ser, no seu processo de evolução.

Libertando-se dos atavismos animais, cabe ao homem transformar a agressividade em tolerância, eliminando, por definitivo, o orgulho, do seu mapa de comportamento.

Sentindo-se ferido, sem um exame mais cuidadoso da situação, esse outro algoz estimula o ressentimento como forma de desforço futuro, que aguarda qual se fora uma fera acuada.

Há muito ressentimento no mundo, que necessita do oxigênio do amor fraternal para diluir-se.

Considere-se o inimigo na condição de um enfermo que se desconhece, embora a presunção com que se apresente, e não haverá razão para ficar-se ressentido com ele.

Tenha-se em mente que a inveja é sempre responsável por calúnias e acusações indébitas, e não se perderá tempo com pelejas inglórias na emoção, através do ressentimento.

Pense-se na situação do traidor, quando venha a despertar e reconhecer a culpa, e não haverá lugar para qualquer reação ressentida.

Note-se que a outra pessoas, aquela que gera problemas, encontra-se em faixa evolutiva mais grosseira, e o ressentimento desaparecerá, substituído pelo desejo de ajudar.

Quando alguém fica ressentido, nivela-se com o adversário ou o seu contendor.

O ressentimento responde por maior número de enfermidades no homem, do que se supõe.

Age sempre conforme gostarias que os outros o fizessem em relação a ti.

Coloca-te na situação infeliz e perceberás quanto bem te faria a gentileza daquele a quem combatesses.

Todo incêndio cessa quando acaba o combustível que o sustenta.

O ressentimento é labareda mantida pelos sentimentos inferiores.

Se te elevas moralmente pela prece, pela ação do bem, cessa o calor da mágoa e sucumbe o incêndio infeliz.

Liberta-te do ressentimento, e a paz te aninhará no coração.


Texto retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Os animais na linguagem dos homens

Desde muito cedo acostumou-se o homem a conviver com os animais ditos "inferiores" e a deles se aprovietar para garantir e preservar sua existência nesse planeta a que o Dr. Pangloss, nascido da veia satírica de Voltaire, chamou o melhor dos mundos, e a que pensadores menos cândidos chamam vale de lágrimas. Desse milenar contato aprendeu o homem a surpreender nos seus primos pobres propriedades, qualidades e defeitos, que se incorporavam, através dos séculos, ao saber que tem das coisas e dos seres com que lida no dia a dia de sua existência. Esse saber chegou até nós por meio de uma transmissão oral e escrita, refletindo na fraseologia, nos provérbios, nas fábulas e em outros gêneros de produção do espírito humano.

Recordar um pouco esse saber, especialmente sobre o que o homem aprendeu a observar acerca dos animais, saber que reflete na língua, é propósito destes comentários.

Um dos animais que o homem tem mais perto de si e, por isso, tem observado com mais cuidado, é o cão. A ele o homem associa qualidades e defeitos. Entre as qualidades está a obediência cega, de um servilismo que degrada. É frase conhecida: o cão é o melhor amigo do homem. Vem daí o atribuir-lhe o dom de trabalhador: trabalha como um cão. O servilismo está patente em expressões do tipo segue-me como um cãozinho ou batem nele e ele volta como um cachorrinho; tem vergonha de cão (isto é, não a tem). Há os que metem medo: chegou com uma cara de cão. Não é à toa que serve eufemisticamente para aludir-se ao diabo: É o Cão. Ao fato de existir o cão vira-lata, que, sem dono, vagueia pelas ruas sem proteção, como uma pessoa miserável, associam-se expressões como vida de cão, como um cão (sem dono). Daí também a alusão à magreza: magro que nem um cão. Também ao cão se atribui sua pouca simpatia ao gato: são como cão e gato, bem como sua esperteza e agilidade: é rápido como um cão, qualidade que condivide com o gato; com mão de gato. A forte e desagradável tosse que às vezes advém de estado doentio chama a atenção do homem: ela tem uma tosse de cachorro. Nem sempre agrada pela beleza, e daí pode ser um dos símbolos da feiura: o vizinho tem uma cara de cão. As pernas desengonçadas e finas levam à comparação do tipo tem pernas de cão, características que também são atribuídas a cegonhas, avestruzes, aranhas, pernilongos e lagartixas.

Nos tempos modernos, o gato é tão próximo do homem como o cão; todavia não era assim no passado, pois a antiguidade não conhecia o gato doméstico, mas tão somente o montês, que os latinos chamavam feles/felis. Gattus, donde o nosso gato, suplantou o termno feles, que se conservou em denomiações eruditas da nomenclatura técnica: felino, por exemplo, Cattus produziu maior ninhada lexical em todas as línguas românticas, quer nessa forma, quer na sua variante gattus. A convivência junto ao homem fez que este enxergasse no animal doméstico qualidades e defeitos muitos. Entre as qualidades está a agilidade e a esperteza, ágil como um gato, esgueira-se como um gato, pula que nem um gato, além do já citado tira algo com mão de gato. Na agilidade e esperteza em tirar e tomar as coisas vê-se-lhe também a tendência ao roubo, domínio em que patenteia extraodinária riqueza vocabular; gato "indivíduo esperto", "ligeiro", gatuno, gatunar e variante gatunhar, gatunagem. Esta atividade o gato reparte com o rato, fonte da palavra ratoeiro. Domesticado pelo homem, serve-lhe para apanhar ratos, e vem a figurar como designativo de "desavença", "briga", em expressões do tipo viver como gato e rato. A facilidade e presteza com que pega as coisas utilizando suas unhas levou o homem a criar o termo gaturar, variante gaturrar, que suponho antes derivado de gato nessa aplicação metafórica do que preso a capturar, como ensina Aurélio. Também creio que gadunhar nada tem que ver com gato, do mesmo modo que agadanhar "lançar no gadanho", "agarra com as mãos, unhas ou garras", que admite a variante agatanhar, por visível influxo da palavra gato, mas não desta derivada, conforme pensava João Ribeiro nas Curiosidades verbais (p.15).

Pelos seus trejeitos e requebros, o gato é também associado à lisonja, característica que a sabedoria do povo atribui ainda ao peru e à cobra. Talvez relacionado a esses requebros do gato o homem lhe tenha ligado o ato de gestos ridículos com as mãos, o que explicaria palavras como gatimonho (s), gatimônia (s), gatimonha (s), usados em textos literários. Vê o homem esperteza, além do gato, conforme vimos, na raposa (uma esperteza astuciosa, como personagem de fábulas), na águia (ele é um águia), no macaco (que não põe a mão em cumbuca; macaco velho "pessoa astuta", experiente).

É interessante uma série de empregos metafóricos ligados ao gato: gato ou gatilho "recurso utilizado para substituir uma peça original ou uma emenda": gato "erro", "falha", "deixar escapar algo num texto ou numa conta". 

O gato também é visto como um belo animal, e isto explica a metáfora do termo aplicado a um homem bonito ou de boa aparência, ou do feminino gata aplicado a jovem bonita ou de belo porte.

A fecundidade da gata passa também a designar gata a mulher de muitos filhos. Aqui também o homem atribui essa particularidade à coelha, que pode aplicar-se outrossim à mulher parideira. 

Ocupa lugar de destaque na linguagem metafórica o cavalo, companheiro do homem nas atividades de transporte, no arroteamento do terreno inculto, na diversão da batalha. O homem de cavalo distinguia-se pela nobreza do modesto homem de pé na constituição das antigas ordens militares, e o cavaleiro era sinal de distinção social e nobreza ou enobrecimento, o fidalgo, enfim. Com as mudanças por que passou a organização das classes militares modernas, com a chegada de novas armas e apetrechos bélicos, a cavalaria sofreu um rebaixamento no seu antigo prestígio de atuação guerreira, de modo que o português dos nossos dias teve necessidade de distinguir o cavaleiro e o cavalheiro, este empréstimo ao espanhol caballero, para indicar o homem de bom trato e de maneiras sociais apuradas. Nem por isso o esporte e a própria corrida de cavalos perderam seu toque aristocrático originário. Como remendo linguístico, o esporte aproveitou para sua designação o termo equitação (prova de equitação), derivado do antigo equus, desbancado já no latim pelo termo não latino caballus, antes aplicado apenas ao cavalo castrado ou cavalo utilizado no transporte de carga. Em socorro nobilitador também veio um empréstimo com ares de Hélade grega, hipismo de hippos, "cavalo" (prova de hipismo, sociedade hípica, etc). Se o masculino equus teve seu destino truncado, tal não aconteceu com o feminino equa, vivo no português égua e em mais línguas românticas.

Vê o homem no cavalo e demais bestas de carga o símbolo do trabalhador contumaz, obstinado, qualidade que condivide com o burro. Talvez dessa ideia de excessivo trabalho se origine a aplicação de pra burro (variantes mais modernas pra cachorro, pra chuchu) para designar grande quantidade ou excesso: chove pra burro, há corrupções pra cachorro. Como se trata de animal de montaria, é associado à ideia de sobreposição (estar a cavalo ou a cavaleiro para dizer ou fazer algo, estar em posição altaneira), passando daí a aplicar-se a outro animal pulador ou voador, como aconteceu com a denominação do peixe cavala, designação primitiva da cavala voadora (exocoetus volitans), pela sua semelhança com a cavala, que salta por cima d'água, conforme ensina Corominas no seu Dicionário.

De se lhe atribuir ao animal o trabalho excessivo deve ser tratado com rédea curta, como no provérbio Ata curto, pensa largo, ferra baixo, terás cavalo. O cavalo divide a fama de trabalhador com o boi, camelo, estes principalmente em referência ao trabalho braçal, com a formiga e a abelha.

Os equinos levam ainda a fama de teimosos: cavalo (égua, burro, mula) quando empaca... Do mulo ou mu veio amuado "sujeito intratável, que está emburrado ou embezerrado", segundo a boa lição de João Ribeiro, no livro já citado. Pelo exemplo, vê-se que partilha da fama de animal teimoso, o bezerro. O mesmo erudito brasileiro agrega ao rol a cabra, e a linguagem dos animais disso dá testemunho: cabra da rede rasgada diz-se do indivíduo desabusado, atrevido, insolente, como lembra o nosso Aurélio. Talvez daí venha o chamar-se cabra ao sujeito de maus costumes, perigoso, jagunço, cangaceiro. Desta área aos dizeres cabra da peste, cabra safado foi muito pequena a caminhada. Só não podemos concordar com João Ribeiro (loc cit) quando supõe, acompanhando alguns etimologistas, que cabra, na referência à teimosia, tenha sido responsável pelo termo capricho. Naturalmente, porque veria na palavra o latim capra "cabra", que aparece, por exemplo, em capricórnio do mesmo nome próprio que era, na lenda grega, filho do deus Egipã (aigós em grego é "cabra"), outro nome do deus Pã, que se apresentava com forma de cabra. Capricho é um italianismo, talvez ligado a capo, "cabeça".


BURRICE E INTELIGÊNCIA


Já o homem distingue, pela inteligência, o cavalo do burro, e considera este último como símbolo da estupidez, da burrice, vocabulário que bem traduz o conceito que dele tem o chamado animal superior. Desta opinião divergem muitos hábeis homens do campo, com larga experiência no trato dos dois animais; a verdade, porém, é que tradicionalmente os burros ostentam essa triste fama, e a linguagem humana assim o registra na aplicação direta ao animal, quer na metafórica, para se referir ao perdedor em algumas espécies de jogos de carta. Se burrus se aplicava em latim à cor ruça, asinus era o designativo do "asno", que partilha com o burro a triste sina de animal estúpido; Você é um asno; Que ideia asnática!; que asnice ou asneira! O possuidor de orelhas grandes fez que orelhudo fosse um insulto menos ultrajante do que burro ou asno.

Além desses animais, a ignorância ou burrice - infelizmente a eles não circunscrita - também é reconhecida na toupeira, que o homem da cidade conhece mais como indivíduos sobre a terra do que como "animal mamífero insetívoro que vive sob a terra, minando-a". Que topeira!

O homem associa a ideia de força física, ao leão, ao tigre, ao touro, ao boi, ao elefante, isto é, aos animais de grande porte, que ele conhece pessoalmente ou por leitura, ou pelo cinema: tem força de leão, ponha um tigre no seu carro, o menino é um touro, parece um boi ou parece um elefante. A baleia entra em comparação quando se trata de gordura excessiva (ela está uma baleia), enquanto a girafa é lembrada na referência à altura demasiada, um varapau (ele é uma girafa).

A essa noção associa-se a de coragem, valentia, de que desfruta o leão (coragem leonina), entre outros animais. Ao briguento se liga o galo (é um galo de briga), enquanto a covardia é atribuída aos animais sem sangue, como a barata: reajo, porque não tenho sangue de barata. A barata entra ainda em outros conceitos: barata tonta "pessoa que não faz as coisas a jeito", entregue às baratas, barata descascada, etc. A ideia de barata tonta se filia ao mosca morta.


MAGRA COMO LAGARTIXA


Já para a magreza, a que se alia também o conceito de baixa estatura, fraqueza, referimo-nos ao cão e à lagartixa, conforme vimos, mas ainda aos vermes, insetos e peixes na alusão a pessoas insignificantes ou desprezíveis.

Por falar em peixe, o homem associa a ele a noção de mudez (é mudo como um peixe), embora na pregação de Santo Antônio, a cuja história se refere o Padre Antônio Vieira, no sermão deste Santo aos peixes, como bons e atentos ouvintes. Quando se quer que uma notícia ou boato não se espalhe, pede-se boca de siri, expressão da gíria familiar. O falador já é fama de papagaio, e se a voz é estridente apela-se para a arara: Fala que nem um papagaio. Quando fala parece uma arara. Ao papagaio se atribui a felicidade da imitação, já que imita repetindo a voz humana. 

Temos também o macaco na qualidade de bom imitador; que essa característica também é observada por outros povos prova-se o fato de alguns vizinhos nossos acharem que os brasileiros macaqueamos a tudo e a todos.

Têm fama de comilão o lobo, o porco, o avestruz e a jiboia: fome de lobo; é um avestruz, pois come de tudo; come que nem jiboia. Já os pássaros têm a fama de comer pouco, petisqueiros: Parece passarinho, em vez de comer, só belisca.

As pessoas que não param, que nunca estão em ledo sossego, inquietas lembram a galinha (galinha choca), o bicho carpinteiro, a borboleta, a mosca e o tavão. Ligado a este último está estavanado, com sua variante estabanado. Os inoportunos e incomodados, que grudam nas pessoas, dizemos que são piolho, mosca, chato. Este último, pela obviedade, já considerado termo chulo, mas hoje corre empregado entre os diferentes sexos e idades sem qualquer reprimenda, salvo nas situações de cerimônia ou pouca intimidade.

Conhecemos também as pessoas caladas, esquivas e às vezes misantropas; acerca de algumas, isto nos entristece, porque, quando entramos na sua intimidade, descobrimos serem inteligentes, com excelentes cultura, dotadas de muito agudo espírito. Tais pessoas esquivas são conhecidas por bicho do mato, bicho da toca, bicho do buraco, mocho ou coruja: ele é um encorujado; ela mais parece um bicho do mato.

As que gostam de vaguear à noite, as noctívagas, são assemelhadas às aves noturnas; assim no Nordeste corre o termo indígena bacurau, designação de ave noturna. No nosso tempo de criança havia no Recife um mercado que só funcionava depois de altas horas da noite até de manhãzinha, denominado bacurau. O termo erudito noctívolo, o que voa de noite, sofreu mudança de sílaba tônica e, através da variante noitivóo registrada por A.G. Cunha no século XIV, passou a noitibó, "pessoa pouco sociável ou que só aparece de noite". Em algumas regiões de língua portuguesa tais noctívagos se dizem também morcego, como usou José de Alencar e está documentado no novo Dicionário de Morais.

As mulheres pretensiosas e muito saracoteadoras são conhecidas também por sirigaitas, termo de origem controvertida. Há pássaro semelhante à carriça ou garriça (cambaxirra), pássaro  dentirrostro, que leva esse nome. Por aí, observando-se os costumes do pássaro, talvez os homens aproveitassem a denominação para atribuí-las às mulheres com as características apontadas. Mas é questão não resolvida. O nosso mestre Nascentes, no Dicionário etimológico resumido, supõe ser "vocábulo de criação expressiva"; de qualquer maneira é termo que só se aplica a mulheres.

As prostitutas se dizem vacas, galinhas, enquanto ao homossexual se aplicam as denominações de veado, frango e mais alguns. Hoje os animais foram redimidos para essa acepção, desbancados pelo anglicismo gay. De vaca se formou avacalhado, termo chulo para referir-se as pessoas ou coisas desleixadas ou mal executadas.

As pessoas de bom caráter, mansas ou cordiais são conhecidas por cordeiro, pomba (sem fel), rola. Está última se aplica a pessoas tristes, melancólicas, ao lado de jururu, ave que também recebe o nome de joão-barbudo. As enamoradas associam-se a rolas e pombas (os pombinhos casam-se amanhã). Os arrulhos de gemido e canto podem ser interpretados como manifestações de desavenças e brigas; daí empombar e empombado serem aplicados à má parte para referir-se à zanga e à irritação.

Dos faltos de juízos, aos mentecaptos e alienados, se diz que têm macaquinhos no sótão, minhocas ou grilos na cabeça. 

O assunto é vasto, e muitos investigadores, dentro e fora da língua portuguesa, se têm dedicado à matéria, como, por exemplo, só para ficarmos em nosso idioma, os excelentes trabalhos de Delmira Maçãs, que nos serviram de fonte para estes despretensiosos comentários.


Texto de Evanildo Bechara retirado da Revista Para saber e conhecer nossa língua; Duetto Editorial, São Paulo, Edição 29, Outubro de 2011.

domingo, 22 de janeiro de 2023

Os sexos do anjo

Falar na "busca das origens" há muito tornou-se lugar-comum para caracterizar uma das fixações do pensamento romântico. Mais produtivo, cremos, seria desdobrar esse filão e questioná-lo em última consequência: chegaríamos à constatação de que a busca seduz mais do que o encontro, vale dizer, ela carrega embutida um desejo de frustração para, através do fracasso, realimentar seu ímpeto de continuar procurando. Quando a origem não é visível, urge inventá-la, a partir de imagens que acenem para uma unidade ideal e perdida, ou ideal porque perdida: assim é em Alencar, Iracema, ao erguer o mito da fundação brasileira por meio do consórcio entre o europeu e invasor, e a virgindade bárbara da terra americana.

Ao passarmos do plano mítico-social para o território mais pedestremente lírico-afetivo do romantismo brasileiro, a questão se reveste de matizes interessantes. De um lado, a configuração do consórcio - no caso, a do par amoroso - já é faltosa na origem: sobra mãe e falta pai na lírica romântica, a ponto de podermos classificá-la, num certo sentido, como uma escrita órfã. É o que se lerá na poesia de Casimiro de Abreu, cujas Primaveras, de 1859, representam um padrão correto de nosso romantismo: na melodia mediana de sua lira, os acordes se fazem ouvir com mais nitidez.

De início, destacas-se a caracterização feminizada do corpo do próprio poeta. Feminização propiciada por um conjunto de traços culturalmente atribuíveis à construção da personagem-mulher: languidez, devaneio, passividade, fragilidade física, exacerbação sentimental em detrimento do pensamento analítico - o mundo, em suma, sob a égide do "não suporto mais" e do subsequente desmaio. A marcação de um sujeito lírico por meio de signos que corroboram o esgarçamento do masculino reflete-se em dois outros níveis, além deste primeiro, o da autocaracterização corpórea.

O segundo é de grande evidência e reporta-se ao par primordial (pai/mãe) a que aludimos, e que, conforme foi dito, vigora amputado de um de seus termos. Na sua infância querida, que os anos não trazem mais, o pai só se presentifica na experessão "casa paterna". O Pai divino é figura muito mais constante do que o terreno, embora ambos pareçam partilhar o atributo da impalpabilidade. Num texto em prosa - "A virgem loura" - Casimiro de Abreu afirma: "Não gostaria de voltar à casa - julgaria ouvir o eco de vozes já extintas."

Adiante, o poeta esclarece que se trata do canto da mãe embalando a irmã. No prefácio às Primaveras, registra: "Pareceu-me ouvir o eco das risadas da mana." Em "Meus oito anos", revela "De minha mãe as carícias/ E beijos de minha irmã"; em "No lar": "Oh! primavera! oh! minha mãe querida!/ Oh! Mana anjinho que eu amei com ânsia". Essa profusão de mãe e irmã oscila entre a fronteira da ternura e do tesão, numa fantasmagoria incestuosa a custo disfarçada. Para mascarar a força do desejo, o poeta procura confiná-lo a simples "figura de linguagem". Num poema sintomaticamente intitulado "Sempre sonhos", Casimiro, pelo álibi da metáfora, chega a unir as pontas dos fios materno e fraterno, ao figurar-se como mãe da amante, que, por seu turno, seria a própria irmã: "Eu velara, Senhor, pelos seus dias/ Como a mãe vela o filho"; "A pudibunda virgem do meu sonho/ Seria minha irmã". Aqui o elo sanguíneo fornece uma imagem lateral, metonímica, de Narciso, que se traveste de Édipo para, pelo artifício, amar-se através do amor declarado a um outro que contenha um pedaço de si - mãe, irmã.

O derradeiro nível de desfiguração do masculino ocorre justamente no espaço, em teoria, menos propício a sua eclosão: nos torneios amorosos, sempre (ou quase) dirigidos a um alvo explicitamente feminino - o poeta, anjo sexuado, cobiçando o sexo de outro anjo, a virgem. Nesse quadro idílico, já de início um obstáculo se antepara. Desejar a virgem é desejar o impossível, uma vez que a perda dessa condição implicaria a inexistência do atributo básico que levou o poeta à declaração do seu desejo. Há, implícito, o desejo de que ela não ceda ao desejo dele, para só assim poder permanecer desejada. Toda uma série de circunlóquios, meneios, brejeirices que aparentemente aproximam pouco a pouco o poeta e a amada atuam antes como rituais de afastamento entre ambos, numa espécie de comprazimento ou erotização não do contato, mas do descarte. Ele se aproxima, ela desfalece; ela se aproxima, ele tem medo; ele suplica, e ela lhe concede a dádiva do não. Assédios e acenos, recuos e recusas são compartilhados pelos parceiros, sem que se possa afirmar com clareza quem é o quê nesse jogo. Outras vezes, como em "Pepita", há uma nítida permuta dos papéis masculino e feminino. O poeta diz-se "flor pendida", pede para ser dominado e atribui a Pepita o falo fecundador:

Minh'alma é como a rocha toda estéril

Nos planos do Sará.

/.../

Vem tu, fada do amor, dar-lhe co'a vara...

Qual do penedo que Moisés tocara

O jorro saltará,


- e crê tanto nisso que não

chama a amada de rainha, mas de rei.


Vimos, assim, que o trânsito para a assunção de uma sexualidade feminina não implica forçosamente a configuração de uma prática homossexual, na medida em que o papel masculino é desempenhado pela própria mulher. O que em Casimiro se procura relevar é antes uma indistinção de papéis, em que os anjos - masculinos ou femininos - possam ocupar as posições de ambos os sexos. Confrontemos quatro registros, emparelhados dois a dois. Em "Suspiros": "Lá verás a minha bela/ Sentada no seu jardim/ Na mão encostada a face"; em "Minha mãe": "[Eu] Sentado sozinho co'a face na mão". Em "No lar": "eu chorava e a [a mãe] beijava rindo", e quero "um rosto virgem que ria e chore". Pelos exemplos, indistinguem-se os papéis, porque, a rigor, "ela" sou "eu", ou seja: a mulher será o travesti do poeta, seu duplo feminizado, objeto de desejo narcísico: amar-se através de uma duplicação que contenha ambiguamente a diferença (e o respaldo) de ser outro sexo e a  identidade de ser ele próprio, travestido. Ao criar a amada à sua semelhança, o anjo romântico parece resolver a velha querela teológica: qual o sexo dos anjos? Pelas nossas contas, os anjos não têm sexo: têm quatro - dois anatômicos, o do poeta e o da virgem, e dois sobressalentes, com marcações invertidas; tanto é lícito afirmar que le se feminiza na projeção narcísica sobre a mulher, quanto dizer que ela se masculiniza nessa mesma operação, ao ostentar as marcas identificadoras do poeta homem.

À guisa de conclusão, citemos o poema "Horas tristes", centrado nas lamúrias do poeta solitário e no suposto afã de encontro com uma virgem que lhe restituísse o ânimo de viver. O acesso à felicidade não passa, como se poderia supor, pelo aparecimento da amada, mas por um mecanismo de vampirização, que vitaliza o poeta à proporção em que ele arranca essa força do corpo feminino. Para o poeta sentir-se remoçado, é necessário que a virgem morra em languidez. Para apegar-se à vida, deve aspirar o perfume da mulher. Sem qualquer perspectiva de reciprocidade, o corpo do poeta é um sorvedouro abastecido a partir de sucessivas pilhagens, via metáfora, de tudo aquilo que, no outro, é manancial para recompor suas próprias fissuras imaginárias. À virgem, o poeta só promete amá-la quando for possível, isto é, nunca - ou, quem sabe, numa esfera mais celeste: amar a si mesmo já toma muito tempo, e é amor que exige carinho e dedicação. Em sua trama erótica, o poeta se abeira e contorna o abismo do outro, mas evita o salto arriscado na direção da diferença. Afinal, interessa-lhe mais enunciar o que deseja do que desejar o que enuncia.


Ensaio de Antônio Carlos Secchin retirado da Revista Para saber e conhecer nossa língua, Duetto Editorial, São Paulo, Julho de 2011.

sábado, 21 de janeiro de 2023

Balizas Delimitadoras

Quando a amizade unir as criaturas com desinteresse, as paixões desgastantes cederão lugar ao júbilo espontâneo.

Quando a solidariedade mantiver os homens sinceramente interessados no bem, a guerra abandonará os povos e a paz dominará os corações.

Quando o amor lubrificar os sentimentos humanos, o ódio deixará de ser ferrugem destruidora nas engrenagens da vida.

Quando a caridade tomar sobre os ombros as dores dos indivíduos, então se estabelecerá, na Terra, o "Reino de Deus".

Quando os seres sencientes se derem conta de que, somente através da própria transformação moral para melhor, a existência física tem sentido, desaparecerão a loucura e o suicídio dos quadros sociais e morais do Planeta.

O homem tem como destinação evolutiva a libertação das sombras teimosas que lhe impedem a clara visão do processo santificante.

A aquisição da consciência faculta-lhe compreender os valores que escravizam e aqueloutros que emulam à felicidade.

Diante dos conflitos decorrentes, com sabedoria ele elege os fatores positivos e entrega-se ao esforço de incorporá-los à sua vivência, desse modo avançando sem tropeço para lograr o objetivo à frente.

Enquanto esta decisão não seja tomada, os altibaixos emocionais constituem-lhe a áspera prova que terá de vencer mediante a dedicação integral.

Indecisão é fraqueza moral a soldo da irresponsabilidade.

Definir rumo, vencer distância, avançar com estoicismo, eis as formas de adquirir os títulos de enobrecimento, para cuja finalidade se encontra o homem reencarnado no planeta.

"Granjeia amigos com as riquezas da injustiça" - propôs Jesus.

Sê companheiro do necessitado que renteia contigo, repartindo com ele pão, paz e iluminação.

Ama, indiscriminadamente, irradiando esse nobre sentimento que concede elevação ao ser.

Torna-te as mãos da caridade em ação e estarás contribuindo para o mundo melhor de amanhã, cujas balizas devem ser colocadas desde hoje, na condição de marcos delimitadores do que eras ontem, do que és hoje e do que serás amanhã.


Retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 5ª Edição, 2014.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Marcas que viram substantivos

Esse fato recebe o nome de metonímia. Trata-se de uma figura de linguagem que consiste no emprego de um termo por outro.


Um dos produtos mais populares no Brasil é a cola de cianoacrilato. Vendida em qualquer armazém, supermercado, papelarias, ela é facilmente encontrada em todas as residências do país. No entanto, poucos são os que a conhecem pelo seu nome, já que ela é comumente chamada de Super Bonder. Assim como no caso da poderosa cola, outros produtos tiveram o nome deixado de lado e são conhecidos pela marca por meio da qual são comercializados.

Entre os casos mais clássicos estão o bombril, que oficialmente se chama esponja ou palha de aço; a xérox (fotocópia), o chiclete (goma de mascar), o gibi (revista em quadrinhos), o cotonete (haste flexível), a gilete (lâmina de barbear), o modess (absorvente higiênico) e o band-aid (curativo). Alguns se tornaram tão populares que acabaram incorporados ao dicionário, como xérox (ou xerox, as duas grafias são aceitas), chiclete, cotonetes, gilete e gibi.

O fenômeno não é uma singularidade brasileira. Os espanhóis, por exemplo, também adotaram o nome cotonete. Para o professor de Língua Portuguesa José  Carlos Azeredo, do Instituto de Letras da UERJ, esse tipo de interação não empobrece nem enriquece uma língua. "A língua pode ter sempre o seu vocabulário expandido, já que a todo o momento surgem novas necessidades de expressão, elementos que precisam ser nomeados".

Em sala de aula, esse fato recebe o nome de metonímia. Trata-se de uma figura de linguagem que consiste no emprego de um termo por outro. Neste caso, o da marca pelo produto. Quando a marca se torna um substantivo, a metonímia gera também um neologismo (criação de nova palavra ou atribuição de novo sentido a um termo já existente). "A metonímia forma neologismos semânticos, que é quando a palavra já existia, mas ganhou um novo significado. Em nosso exemplo, ela já definia uma marca, mas depois passou a definir também o produto em si", explicou a professora Ieda Maria Alves, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP.

No mundo do marketing, tornar uma marca tão popular a ponto de ela designar o próprio produto é o que sonha toda empresa. Àquelas que atingem esse status, dá-se o nome de marca notória. "É quando os consumidores passam a chamar o produto pela marca predominante na categoria. A grande vantagem é a capacidade de memorizar de seu nome e o consequente esquecimento das concorrentes", afirmou o professor Marcelo Boschi, coordenador do curso de pós-graduação em marketing estratégico e especialista em marcas da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Embora não haja uma fórmula, ele admite que, ao se criar uma marca, alguns fatores são levados em consideração na esperança de se criar uma nova metonímia. Evitar palavras difíceis de serem pronunciadas é um deles, assim como usar nomes curtos e utilizar o menor número de vezes possível as letras K, W e Y.


NEM SEMPRE UM BOM NEGÓCIO


Não há uma regra que defina quando uma marca vá ser aceita como substantivo pelo dicionário. Para o professor José Carlos Azeredo, o que vale é o bom senso. Já Ieda Maria Alves lembra um critério mais palpável. "Um bom parâmetro é quando a marca já forma derivados. De xérox, por exemplo, surgiu o verbo xerocar".

Recentemente, um representante legal da Google no Brasil queixou-se a uma revista semanal do uso do termo "googar" como sinônimo de "fazer uma busca na web". A própria Xerox não endossa o uso de sua marca para designar fotocópia, já que a empresa investe no nome como uma referência para diversos outros projetos na área de tecnologia. "A língua pertence aos seus usuários. Quando o uso de uma marca se consolida, não há como reverter", garantiu José Carlos.

Embora não haja como reverter esse processo, a história mostra que algumas marcas, antes tomadas como o próprio produto, regrediram com o avanço dos concorrentes. Esse é o caso de Brahma, que já foi sinônimo de cerveja (a palavra "brama", sem o H, ainda consta no dicionário como "qualquer tipo de cerveja", embora nenhum falante a use mais de forma tão abrangente) e de Omo, que já designou o próprio sabão em pó. Para Marcelo Boschi, a tendência é que não surjam mais tantas marcas notórias como no passado, já que atualmente é difícil um fabricante atuar por muito tempo sozinho no mercado. Um novo Super Bonder dificilmente surgirá.


Texto de Rafael Oliveira para a Revista (para saber e conhecer) Nossa Língua, n° 26, Junho de 2011, Duetto Editorial, São Paulo.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Passagem das Horas (trechos)

Trago dentro do meu coração

Como num cofre que se não pode fechar de cheio,

Todos os lugares onde estive,

Todos os portos a que cheguei,

Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,

Ou de tombadilhos, sonhando,

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.


(...)


Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.

Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei

Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,

Consanguinidade com o mistério das coisas, choque

Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,

Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.


Seja o que for, era melhor não ter nascido,

Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,

A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, o roçar, a ranger,

A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair

Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,

E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,

Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,

E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,

Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.


(...)


Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.

Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.

Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.

Estou no caminho de todos e esbarram comigo.


(...)


Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, 

Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.


(...)


Amei e odiei como toda gente,

Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,

E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.


(...)


Não sei sentir, não sei ser humano, conviver

De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.

Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser cotidiano, nítido,

Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,

Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,

Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,

Uma coisa vinda diretamente da natureza para mim.


(...)


Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,

Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos

Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.


Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,

Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,

Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,

Seja uma flor ou uma ideia abstrata,

Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.

E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.

São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores.

E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também

Porque ser inferior é diferente de ser superior,

E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.

Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,

E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,

E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,

E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.

Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia, 

Basta que ela exista para que tenha razão de ser.


(...)


Multipliquei-me, para me sentir,

Para me sentir, precisei sentir tudo,

Transbordei, não fiz senão extravasar-me,

Despi-me, entreguei-me,

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.


(...)


Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,

Acenaram-me no meu coração os lenços de todas as despedidas,

Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares

Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.

Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,

E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).

Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!


(...)


Fui para a cama com todos os sentimentos,

Fui souteneur de todas as emoções,

Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,

Troquei olhares com todos os motivos de agir,

Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,

Febre imensa das horas!

Angústia da forja das emoções!


(...)


Sentir tudo de todas as maneiras,

Ter todas as opiniões,

Ser sincero contradizendo-se a cada minuto, 

Desagradar-se a si-próprio pela plena liberdade de espírito,

E amar as coisas como Deus.


(...)


Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,

O baú das iniciais gastas,

A entonação das vozes que nunca ouviremos mais -

Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo

E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.


(...)


Fui educado pela Imaginação,

Viajei pela mão dela sempre,

Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,

E todos os dias têm essa janela por diante,

E todas as horas parecem minhas dessa maneira.


(...)


Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.

Todas as auroras raiam no mesmo lugar:

Infinito...

Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,

Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,

E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar

Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...


(...)


Ah, não estar parado nem a andar,

Não estar deitado nem de pé,

Nem acordado nem a dormir,

Nem aqui nem outro ponto qualquer,

Resolver a equação desta inquietação prolixa,

Saber onde estar para poder estar em toda a parte,

Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas...


(...)


Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,

Declina dentro de mim o sol no alto do céu.

Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.

Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?

Eu que, veloz, voraz, comilão de energia abstrata,

Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,

Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,

Calcar, calcar, calcar até não sentir...

Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,

Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.


(...)


Trechos poema Passagem das Horas de Álvaro de Campos. Retirado do livro Poesias de Álvaro de Campos/ Fernando Pessoa, Editora FTD, São Paulo, 1992.

sábado, 14 de janeiro de 2023

Paz e Felicidade

Afirmam-se, inadequadamente, que a paz profunda é paralisia da razão, inércia, abstração.

Fosse, realmente, esse estado de anulação e seríamos candidatos ao aniquilamento dos ideais com a consequente morte das aspirações libertadoras.

Informa-se, equivocadamente, que felicidade plena é gozo incessante, sem qualquer  preocupação ou anelo de maior crescimento.

Constituísse realidade esse prognóstico e a bem pouco conquista seria reduzido o Espírito, que se predisporia à saturação, num repetir monótono de prazeres nos moldes terrenos.

A paz profunda é uma conquista dinâmica do homem que, embora em constante burilamento, age sem reagir, motivado pelo infrene desejo de ajudar e crescer.

A felicidade plena resulta do movimento contínuo em favor da aquisição de mais valiosos equipamentos morais com que se alça o ser a Esferas Nobres, participando do concerto harmônico da Vida.

Sempre houve luta entre os homens, que se atiram uns contra os outros e neles mesmos defrontam os campos de batalha depuradora para as imperfeições.

A felicidade plena resulta da conscientização de transformar a luta em realização dignificante, que fomenta os recursos de enobrecimento.

Num, como noutro campo de realização, o amor é fundamental.

A maior força existente no Universo, o amor é a presença de Deus atuando favoravelmente e impulsionando todas as ações para o ideal supremo - a perfeição!

Os logros da paz profunda e da felicidade plena são possíveis, a todo aquele que se empenha para realizar a opção da busca interior, através da transformação moral que deve operar em si mesmo, bem como do sacrifício das paixões asselvajadas.

Na meditação ouvirás o pulsar do Cosmo.

Na oração dialogarás com Deus.

No silêncio identificarás as vozes da Imortalidade.

Na ação do Bem alcançarás a paz, a plenitude, viajando pelos espaços na busca de Deus, sob a tutela dos seres angélicos interessados na tua perfeita integração na Consciência Divina, de que fazes parte, apesar de não a interpretares ainda com a necessária sabedoria.

A paz profunda pelo amor e a felicidade plena pela caridade aguardam a tua decisão, para que logres o triunfo sobre os teus limites e te libertes do primitivismo por definitivo.


Retirado do livro Momentos de Esperança; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Adolescente

 A vida é tão bela que chega a dar medo.


Não o medo que paralisa e gela,

estátua súbita,

mas


esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz

o jovem felino seguir para a frente farejando o vento

ao sair, a primeira vez, da gruta.


Medo que ofusca: luz!


Cumplicemente,

as folhas contam-te um segredo

velho como o mundo:


Adolescente, olha! A vida é nova...

A vida é nova e anda nua

- vestida apenas com o teu desejo!


Poema de Mário Quintana retirado do livro Tempo de Poesia, série Literatura em minha casa, Volume 1 - Poesia, Global Editora, São Paulo, 2003.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Canção do Exílio

 Um dia segui viagem

sem olhar sobre o meu ombro.


Não vi terras de passagem

Não vi glórias nem escombros.


Guardei no fundo da mata

um raminho de alecrim.


Apaguei a luz da sala

que ainda brilhava pra mim.


Fechei a porta da rua

a chave joguei ao mar.


Andei tanto nesta rua

que já não sei mais voltar.


Poesia de José Paulo Paes retirado do livro Tempo de Poesia, da série Literatura em minha casa, Poesia - Volume 1, Global Editora, São Paulo, 2003.

sábado, 7 de janeiro de 2023

Felicidade Possível

Acreditavas que a felicidade seria semelhante a uma ilha fantástica de prazer constante e paz permanente. Um lugar onde não houvesse preocupação, nem se apresentasse a dor, no qual os sorrisos brilhassem nos lábios e a beleza engrinaldasse de festa as criaturas.

Uma felicidade feita de fantasias parecia ser a tua busca.

Planejaste a vida, objetivando encontrar esse reino encantado, onde, por fim, descansasses da fadiga, da aflição e fruísses a harmonia.

Passam-se os anos, e somas frustrações, anotando desencantos e amarguras, sem a anelada conquista.

Lentamente, entregas-te ao desânimo, e sentes que estás discriminado no mundo, quando vês as propagandas apresentadas pela mídia, nas quais desfilam os jovens, belos e jubilosos, desperdiçando saúde, robustez, corpos venusinos e apolíneos, usando cigarros e bebidas famosas, brincando em iates de luxo, ou exibindo-se em desportos da moda, invejáveis, triunfantes...

Crês que eles são felizes...

Não sabes quanto custa, em sacrifício e dor, alcançar o topo da fama e permanecer lá.

Sob quase todos aqueles sorrisos, que são estudados, estão a face da amargura e as marcas do ressaibo, do arrependimento.

Alguns envenenaram a alma nos charcos por onde andaram, antes de serem conhecidos e disputados.

Muitos se entregaram a drogas perturbadoras, que lhes consomem a juventude, qual ocorreu com as multidões de outros, que os anteciparam e desapareceram.

Esquecidos e enfermos, aqueles que foram pessoas-objeto, amargam hoje a miséria a que se acolheram ou foram atirados.

Felicidade, porém, é conquista íntima. 

Todos os que se encontram na Terra, nascidos em berços de ouro ou de palha, homenageados ou desprezados, belos ou feios, são feitos do mesmo barro frágil de carne, e experimentaram, de uma ou de outra forma, vicissitudes, decepções, doenças e desconforto.

Ninguém, no mundo terreno, vive em regime especial. O que parece, não excede a imagem, a ilusão.

Se desejas ser feliz, vive, cada momento, de forma integral, reunindo as cotas de alegria, de esperança, de sonho, de bênção, num painel plenificador.

As ocorrências de dor são experiências para as de saúde e de paz.

A felicidade não são coisas: é um estado interno, uma emoção.

Abençoa os acidentes de percurso, que denominas como desdita, segue na direção das metas, e verás quantas concessões de felicidade pela frente, aguardando por ti.

Quem avança monte acima, pisa pedregulhos que ferem os pés, mas também flores miúdas e verdejante relva, que teimam em nascer ali colocando beleza no chão.

Reúne essas florzinhas em um ramalhete, toma das pedras pequeninas fazendo colares, e descobrirás que, para a criatura ser feliz, basta amar e saber discernir, nas coisas e nos sucessos da marcha, a vontade de Deus e as necessidades para a evolução.


Retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O Sindicato dos Calígrafos

O sindicato dos Calígrafos está em assembleia permanente. Esta decisão não foi tomada de chofre, e não é a resposta a uma situação aguda. Ao contrário, a medida se impôs em decorrência do agravamento das más condições de exercício da profissão, o que levou à convocação de sucessivas reuniões - primeiro mensais, depois semanais e, por fim, diárias -, até que os calígrafos associados (em número de trinta, atualmente) resolveram optar pela assembleia permanente como forma de mobilização constante. Mesmo porque não lhes resta outra alternativa. Permanecer em suas modestas casas de porta e janela, situadas em bairros distantes, pensando sobre a vida, ruminando mágoas e aguardando a morte? Nunca. Pelo menos na sede do sindicato - e até que o juiz julgue a ação de despejo contra eles movida - têm abrigo, a companhia uns dos outros (o que não é pouco para estes idosos, cujo círculo de relações se estreita cada vez mais), e a sensação de estarem lutando, unidos, por uma causa grandiosa. A permanência da arte caligráfica, diz Alcebíades, um dos fundadores do sindicato, é condição de sobrevivência para nossa cultura. Os outros, sorvendo o aguado chá, concordam, mas não poucos deixam de lembrar a época em que a agremiação oferecia a seus associados opíparos jantares regados a vinho.

O tempo custa a passar na assembleia permanente. Esgotada a discussão sobre as reivindicações (que variam, desde a extinção pura e simples da datilografia até a solicitação de auxílio ao governo e às entidades beneficentes), o coordenador procura levar a conversa para outros tópicos - e sem demora, pois sabe que nada é mais terrível e ameaçador para os calígrafos do que o silêncio absoluto, aquele silêncio que não é rompido pelo rascar de penas sobre o papel. De modo que a agenda dos trabalhos prevê também discussões técnicas e relatos de experiências pessoais.

Estilos de caligrafia são analisados e comparados; as surpreendentes modificações surgidas quando do advento da pena de aço são debatidas. As recordações são muitas. Ainda lembro, diz Honório, a primeira frase que escrevi como calígrafo: e isto acima de tudo: sê fiel a ti mesmo. É de Shakespeare? Alguém conhece o trabalho do imortal Bardo de Avon? Hein? Respondam-se, companheiros: vocês creem que os jovens de hoje dão importância a essas coisas?

Ninguém contesta; não é necessário. Honório quer apenas desabafar, e os calígrafos ouvem-no em silêncio. Os que creem que caligrafia e Shakespeare são coisas diferentes, e que não se deve intimidar o público com autores britânicos, guardam para si tais restrições. O momento não permite divergências, nem mesmo quanto a assuntos de menor importância. União - tal como diz a Carta de Princípios do Sindicato - deve ser o objetivo de todos. É por isso que Almeida não verbaliza suas críticas em relação ao trabalho de Valentim. Jamais diria em público aquilo que consta às fls 7 de seu diário: "O M de Valentim parece um camelo no deserto". Há respeito entre eles; ainda que pertençam a diferentes escolas, reconhecem que o pluralismo é condição de sobrevivência para a caligrafia.

Sempre preferi o R, diz Evilásio, ou mesmo o W - talvez porque me permitiam traçar caprichosas volutas muito de acordo com meu temperamento barroco. Mas então descobri o i, isto mesmo, o i minúsculo, e foi uma revelação. A modesta simplicidade desta letra! E o ponto, suspenso no espaço! O ponto, acreditem, me fascinou. Creio ter encontrado nele o sentido maior da caligrafia. Porque enquanto alguns - meu próprio filho, por exemplo - exageram o que chamam de "pingo do i", chegando a representá-lo como um pequeno círculo, eu concluí, num momento de profunda introspecção, que deveria dirigir meu esforço no sentido inverso; isto é, reduzir o ponto a dimensões mínimas. Na verdade, o ponto não tem dimensão alguma, como se sabe. O número de pontos é infinito. Invisível, onipresente. Seria o ponto Deus, ou seria Deus um ponto? Para aceitar tal ideia, eu teria de ser aniquilado por ela; isto é, eu poderia conceber o ponto no exato momento de minha completa extinção. Não estava preparado para isto, nem estou, por isso é que continuo colocando o ponto no i, ainda que para fazê-lo limite-me a tocar de leve o papel com o bico da pena. Um gesto muito contido, sem dúvida, mas um gesto. E aos que pensam que a caligrafia nasce dos gestos, afirmo com toda a convicção: a verdadeira caligrafia caracteriza-se por inação total; ela é antes virtual do que real.

- Deus - conclui Evilásio - é o grande calígrafo.

Dizem, sussurra Marcondes para os que estão perto, que eles agora têm aparelhos eletrônicos que captam os sons de voz e os transformam em escrita. Não acredito, responde o amargo, incrédulo Amâncio, que tenham chegada a tal ponto. E Rebelo: eu já esperava por uma coisa destas. A máquina de escrever deu início a uma trajetória que conduziria inevitavelmente ao desastre. O tabulador nada mais faz que acelerar este fim. Do que discorda o calígrafo Rosálio. Não é contrário ao progresso; tem até um interessante projeto, que é o de traçar letras no céu, utilizando, ele próprio (para isto terá de ser treinado, mas não se importa, afirma que se submeterá a qualquer coisa para concretizar seu sonho), um avião da esquadrilha da fumaça. Aos que veem nisto uma traição à arte da caligrafia, retruca: a mão que maneja delicadamente a pena é a mesma que segura firme o manche do avião. Seu único problema, na verdade, é a vertigem das alturas, que tem desde a infância e que, segundo os especialistas, é incurável.

O calígrafo Inácio corresponde-se há muito tempo com uma moça cujo nome encontrou em "Correio do Amor", popular seção de um grande jornal. À primeira carta, ela se declarou apaixonada pela letra de Inácio: "A maneira como cortas o T evidencia um espírito enérgico; as suaves curvas do teu S, um coração carinhoso". Inácio chora ao ler estas missivas, mas decidiu que jamais se encontrará com a moça. Seu amor subsistirá apenas em manuscritos.

Chega Feijó. Como sempre, é o último; e, como sempre, vem sorrindo, superior. Tem boas razões para isto. De todos os membros do sindicato, é o único que tem trabalho assegurado. A cada quatro anos, compete-lhe escrever o nome do governador eleito num diploma especial. É uma tarefa para a qual prepara-se cuidadosamente, inclusive com exercícios físicos e dieta. Pagam-lhe bem e o tratam com deferência, mas Feijó tem notado que os nomes dos governadores são cada vez menores; suspeita que isto não seja produto do acaso, mas sim de uma conspiração à qual os radicais não estão alheios.

E se reativássemos a profissão, indaga de repente Alonso (que se gaba do seu espírito empresarial); por exemplo, colocando anúncios no jornal: Sua amada não resistirá a uma carta escrita com bela caligrafia. Alonso planeja também cursos dirigidos a vários segmentos da sociedade. Fala em caligrafia política, em caligrafia executiva, em caligrafia proletária. Mercedes, a única mulher do sindicato, tem uma séria acusação a fazer contra os grafologistas: foram eles, sustenta, que desmoralizaram nossa profissão, ao disseminarem a ideia de que a letra é reveladora do caráter. Precisamos introduzir no currículo escolar, diz, a noção de que a caligrafia une os homens. 

O Sindicato dos Calígrafos fica num velho casarão, na parte mais antiga da cidade. Trata-se de um legado de Abelardo, calígrafo de fama internacional (chegou a preparar documentos para a monarquia belga). Dias gloriosos, aqueles! À época, os calígrafos constituíam-se em famosa Irmandade. O sindicato surgiu posteriormente, quando as oportunidades de trabalho começaram a escassear. As reuniões, lembra Damião, eram verdadeiras celebrações. Os calígrafos, vestidos à rigor, chegavam à sede, feericamente iluminada, acompanhados de suas esposas e filhos. A sessão iniciava-se pontualmente às vinte horas. A ata da reunião anterior - manuscrita, naturalmente; redigi-la era uma honra que os calígrafos disputavam - passava de mão em mão, mais para ser admirada (ou desprezada) do que comentada. Em seguida, a orquestra tocava o hino dos calígrafos ("Com serifas e volutas mil/ Traço à pena o nome do meu Brasil/ Enquanto no céu, do mais puro anil..." etc). Brindava-se com champanhe importado; era servido o jantar - truta ou salmão ou lagosta e, no final, uma torta em que a frase "Viva a Caligrafia!" tinha sido traçada com creme. E depois vinha o baile, sempre animado. Antes das cinco da manhã ninguém se retirava. Bons tempos, suspira o calígrafo Moura. Tempos que não voltarão, completa o calígrafo Felipe (mesmo brigados, estão solidários na mágoa).

- Fanti! - grita o calígrafo Reginaldo. - Fanti de Ferrara!

Os outros se olham. Sabem a que ele se refere: ao Fanti de Ferrara, que em 1514 introduziu o método geométrico na caligrafia gótica. Sabem que Reginaldo possui um valiosíssimo exemplar da Theorica et practica perspicassimi Sigromundi de Fantis. De modo scribendi fabricandique omnes litterarum species, editado em Veneza. Mas como Reginaldo não empresta o livro, ignoram deliberadamente a provocação. O calígrafo Guilherme muda de assunto: caligrafia, afirma, é a  arte bela da escrita. É a liberdade, prossegue, inspirado, conjugada à disciplina. É o passado falando ao nosso coração. Tudo isso é muito bonito, murmuram dois ou três calígrafos, mas - e as leis trabalhistas?

Nada temos a ver, sustenta o calígrafo Ludovico, com esta nova classe, a dos digitadores. Se com alguém temos afinidades, é com aqueles monges que, no silêncio de seus monastérios, copiavam textos em caligrafia gótica e com delicadas iluminuras. O que, acrescenta, abrupto, o calígrafo Arthur, era também uma proteção contra a fraude: mais complicada a letra, mais difícil era falsificar uma bula papal. Esta inopinada intervenção faz calar o calígrafo Ludovico. Não gosta que lhe recordem os aspectos práticos da arte. Sabe-se que o papa Eugênio IV mandou reservar um tipo especial de caligrafia - cursiva! - para os documentos escritos rapidamente - brevi manu - de onde o nome de breves. Breves! Breves, numa arte caracterizada pela lentidão! Igualmente é de lamentar que o padre Pacioli - um amigo, incrível!, de Leonardo da Vinci - tenha feito estudos sobre a geometria das letras. Como se fosse possível comparar sentimentos com quadrados e hexágonos!

Os calígrafos Raimundo e Koch empenham-se numa animada discussão. Raimundo acusa Colbert, ministro das Finanças de Luís XIV, de ter decretado o fim do gótico quando recomendou a seus funcionários que adotassem a escrita conhecida como financière; já era o mau gosto da burguesia se impondo, brada. Koch, numa voz contida (na qual percebem-se, ocultas vibrações de ressentimento), pondera que o gótico continha o germe de sua destruição. Por causa da angulosidade: a vida, sustenta Koch, prefere curvas suaves. Não é golpeando o papel com a pena que imitaremos o fluxo da existência. Dois ou três calígrafos aplaudem timidamente. Raimundo cala-se. No fundo, porém, acredita em voltar ao gótico como forma de projetar-se para o alto, lá onde brilham as estrelas. É da mesma opinião o calígrafo Ronildo; para ele, a era do Rei Sol foi ruinosa para a caligrafia, em que pesem os esforços de Danoiselet e Rousselot. Hoje, dizem que ter caráter é mais importante que ser legível, mas - e nesse ponto a voz de Ronildo treme com incontida indignação - não será isto uma reductio ad absurdum?

O que é elegância?, pergunta o calígrafo Dimone. E ele mesmo responde: é a oportunidade nos adornos.

Penso na trajetória de minha vida como se fosse o traçado de uma letra, diz o calígrafo Epaminondas. Da letra L, mais precisamente. Eu subi; quando estava no alto, fiz uma volta e desci; cheguei ao ponto mais baixo e aguardo pela derradeira, ainda que pequena, inflexão para cima.

- Às vezes me pergunto - suspira - se eu não deveria me chamar Luís. Luís com L minúsculo.

Ninguém lhe responde. Mesmo porque é tarde. Um a um os calígrafos levantam-se e se vão, para as suas humildes casas. No dia seguinte retornarão. Não há vida fora da assembleia permanente. Não há vida fora da caligrafia.


Crônica de Moacyr Scliar retirado do livro Pipocas, série Literatura em minha casa, Volume 2 - Crônica e Conto, Companhia das Letras, São Paulo, 2003.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

A orelha de Van Gogh

    Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pequeno armazém, devia a um de seus fornecedores importante quantia. E não tinha como pagar.

    Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação... Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara no modesto estabelecimento de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiças, resistia bravamente aos embates da existência. Os fregueses gostavam dele, entre outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém, a situação era diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O homem a quem meu pai devia, no momento, era conhecido como um credor particularmente implacável.

    Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir, em se suicidar até. Não meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse homem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e dali, descobriu algo promissor. O credor, que na aparência era um homem rude e insensível, tinha uma paixão secreta por van Gogh. Sua casa estava cheia de reproduções das obras do grande pintor. E tinha assistido pelo menos uma meia dúzia de vezes o filme de Kirk Douglas sobre a mágica vida do artista.

    Meu pai retirou na biblioteca um livro sobre van Gogh e passou o fim de semana mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de domingo, a porta de seu quarto se abriu e ele surgiu, triunfante:

    - Achei!

    Levou-me para um canto - eu, aos doze anos, era seu confidente e cúmplice - e sussurrou, os olhos brilhando:

    - A orelha de van Gogh. A orelha nos salvará.

    O que é que vocês estão cochichando aí, perguntou minha mãe, que tinha escassa tolerância para com o que chamava de maluquices do marido. Nada, nada, respondeu meu pai, e para mim, baixinho, depois te explico.

    Depois me explicou. O caso era que o van Gogh, num acesso de loucura, cortara a orelha e a enviara à sua amada. A partir disso meu pai tinha elaborado um plano: procuraria o credor e diria que recebera como herança de seu bisavô, amante da mulher por quem van Gogh se apaixonara, a orelha mumificada do pintor. Ofereceria tal relíquia em troca do perdão da dívida e de um crédito adicional.

    - Que dizes?

    Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo, um mundo de ilusões. Contudo, o fato de a ideia ser absurda não me parecia o maior problema; afinal, a nossa situação era tão difícil que qualquer coisa deveria ser tentada. A questão, contudo, era outra:

    - E a orelha?

    - A orelha? - olhou-me espantado, como se aquilo não lhe tivesse ocorrido. Sim, eu disse, a orelha do van Gogh, onde é que se arranja essa coisa. Ah, ele disse, quanto a isso não há problema, a gente consegue uma no necrotério. O servente é meu amigo, faz tudo por mim.

    No dia seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia, radiante, trazendo consigo um embrulho que desenrolou cuidadosamente. Era um frasco com formol, contendo uma coisa escura, de formato indefinido. A orelha de van Gogh, anunciou, triunfante.

    E quem diria que não era? Mas, por via das dúvidas, ele colocou no vidro um rótulo: Van Gogh - orelha.

    À tarde, fomos à casa do credor. Esperei fora, enquanto meu pai entrava. Cinco minutos depois voltou, desconcertado, furioso mesmo: o homem não apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco de meu pai e o jogara pela janela.

    - Falta de respeito!

    Tive de concordar, embora tal desfecho me parecesse até certo ponto inevitável. Fomos caminhando pela rua tranquila, meu pai resmungando sempre: falta de respeito falta de respeito. De repente parou, olhou-me fixo:

    - Era a direita ou a esquerda?

    - O quê? - perguntei, sem entender.

    - A orelha que o van Gogh cortou. Era a direita ou a esquerda?

    - Não sei - eu disse, já irritado com aquela história. - Foi você quem leu o livro. Você é quem deve saber.

    - Mas não sei - disse ele, desconsolado. - Confesso que não sei.

    Ficamos um instante em silêncio. Uma dúvida me assaltou naquele momento, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:

    - E a do vidro? - perguntei. - Era a direita ou a esquerda?

    Mirou-me aparvalhado.

    - Sabe que não sei? - murmurou numa voz fraca, rouca. - Não sei.

    E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma orelha - qualquer orelha, seja ela de van Gogh ou não - verá que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Neste labirinto eu estava perdido. E nunca mais sairia dele.


Crônica de Moacyr Scliar retirado do livro Pipocas, série Literatura em minha casa, Volume 2 - Crônica e Conto, Companhia das Letras, São Paulo, 2003.