segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Passagem das Horas (trechos)

Trago dentro do meu coração

Como num cofre que se não pode fechar de cheio,

Todos os lugares onde estive,

Todos os portos a que cheguei,

Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,

Ou de tombadilhos, sonhando,

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.


(...)


Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.

Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei

Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,

Consanguinidade com o mistério das coisas, choque

Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,

Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.


Seja o que for, era melhor não ter nascido,

Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,

A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, o roçar, a ranger,

A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair

Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,

E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,

Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,

E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,

Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.


(...)


Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.

Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.

Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.

Estou no caminho de todos e esbarram comigo.


(...)


Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, 

Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.


(...)


Amei e odiei como toda gente,

Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,

E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.


(...)


Não sei sentir, não sei ser humano, conviver

De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.

Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser cotidiano, nítido,

Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,

Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,

Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,

Uma coisa vinda diretamente da natureza para mim.


(...)


Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,

Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos

Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.


Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,

Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,

Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,

Seja uma flor ou uma ideia abstrata,

Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.

E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.

São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores.

E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também

Porque ser inferior é diferente de ser superior,

E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.

Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,

E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,

E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,

E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.

Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia, 

Basta que ela exista para que tenha razão de ser.


(...)


Multipliquei-me, para me sentir,

Para me sentir, precisei sentir tudo,

Transbordei, não fiz senão extravasar-me,

Despi-me, entreguei-me,

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.


(...)


Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,

Acenaram-me no meu coração os lenços de todas as despedidas,

Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares

Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.

Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,

E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).

Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!


(...)


Fui para a cama com todos os sentimentos,

Fui souteneur de todas as emoções,

Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,

Troquei olhares com todos os motivos de agir,

Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,

Febre imensa das horas!

Angústia da forja das emoções!


(...)


Sentir tudo de todas as maneiras,

Ter todas as opiniões,

Ser sincero contradizendo-se a cada minuto, 

Desagradar-se a si-próprio pela plena liberdade de espírito,

E amar as coisas como Deus.


(...)


Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,

O baú das iniciais gastas,

A entonação das vozes que nunca ouviremos mais -

Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo

E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.


(...)


Fui educado pela Imaginação,

Viajei pela mão dela sempre,

Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,

E todos os dias têm essa janela por diante,

E todas as horas parecem minhas dessa maneira.


(...)


Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.

Todas as auroras raiam no mesmo lugar:

Infinito...

Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,

Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,

E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar

Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...


(...)


Ah, não estar parado nem a andar,

Não estar deitado nem de pé,

Nem acordado nem a dormir,

Nem aqui nem outro ponto qualquer,

Resolver a equação desta inquietação prolixa,

Saber onde estar para poder estar em toda a parte,

Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas...


(...)


Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,

Declina dentro de mim o sol no alto do céu.

Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.

Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?

Eu que, veloz, voraz, comilão de energia abstrata,

Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,

Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,

Calcar, calcar, calcar até não sentir...

Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,

Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.


(...)


Trechos poema Passagem das Horas de Álvaro de Campos. Retirado do livro Poesias de Álvaro de Campos/ Fernando Pessoa, Editora FTD, São Paulo, 1992.

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