segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

A orelha de Van Gogh

    Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pequeno armazém, devia a um de seus fornecedores importante quantia. E não tinha como pagar.

    Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação... Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara no modesto estabelecimento de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiças, resistia bravamente aos embates da existência. Os fregueses gostavam dele, entre outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém, a situação era diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O homem a quem meu pai devia, no momento, era conhecido como um credor particularmente implacável.

    Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir, em se suicidar até. Não meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse homem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e dali, descobriu algo promissor. O credor, que na aparência era um homem rude e insensível, tinha uma paixão secreta por van Gogh. Sua casa estava cheia de reproduções das obras do grande pintor. E tinha assistido pelo menos uma meia dúzia de vezes o filme de Kirk Douglas sobre a mágica vida do artista.

    Meu pai retirou na biblioteca um livro sobre van Gogh e passou o fim de semana mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de domingo, a porta de seu quarto se abriu e ele surgiu, triunfante:

    - Achei!

    Levou-me para um canto - eu, aos doze anos, era seu confidente e cúmplice - e sussurrou, os olhos brilhando:

    - A orelha de van Gogh. A orelha nos salvará.

    O que é que vocês estão cochichando aí, perguntou minha mãe, que tinha escassa tolerância para com o que chamava de maluquices do marido. Nada, nada, respondeu meu pai, e para mim, baixinho, depois te explico.

    Depois me explicou. O caso era que o van Gogh, num acesso de loucura, cortara a orelha e a enviara à sua amada. A partir disso meu pai tinha elaborado um plano: procuraria o credor e diria que recebera como herança de seu bisavô, amante da mulher por quem van Gogh se apaixonara, a orelha mumificada do pintor. Ofereceria tal relíquia em troca do perdão da dívida e de um crédito adicional.

    - Que dizes?

    Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo, um mundo de ilusões. Contudo, o fato de a ideia ser absurda não me parecia o maior problema; afinal, a nossa situação era tão difícil que qualquer coisa deveria ser tentada. A questão, contudo, era outra:

    - E a orelha?

    - A orelha? - olhou-me espantado, como se aquilo não lhe tivesse ocorrido. Sim, eu disse, a orelha do van Gogh, onde é que se arranja essa coisa. Ah, ele disse, quanto a isso não há problema, a gente consegue uma no necrotério. O servente é meu amigo, faz tudo por mim.

    No dia seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia, radiante, trazendo consigo um embrulho que desenrolou cuidadosamente. Era um frasco com formol, contendo uma coisa escura, de formato indefinido. A orelha de van Gogh, anunciou, triunfante.

    E quem diria que não era? Mas, por via das dúvidas, ele colocou no vidro um rótulo: Van Gogh - orelha.

    À tarde, fomos à casa do credor. Esperei fora, enquanto meu pai entrava. Cinco minutos depois voltou, desconcertado, furioso mesmo: o homem não apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco de meu pai e o jogara pela janela.

    - Falta de respeito!

    Tive de concordar, embora tal desfecho me parecesse até certo ponto inevitável. Fomos caminhando pela rua tranquila, meu pai resmungando sempre: falta de respeito falta de respeito. De repente parou, olhou-me fixo:

    - Era a direita ou a esquerda?

    - O quê? - perguntei, sem entender.

    - A orelha que o van Gogh cortou. Era a direita ou a esquerda?

    - Não sei - eu disse, já irritado com aquela história. - Foi você quem leu o livro. Você é quem deve saber.

    - Mas não sei - disse ele, desconsolado. - Confesso que não sei.

    Ficamos um instante em silêncio. Uma dúvida me assaltou naquele momento, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:

    - E a do vidro? - perguntei. - Era a direita ou a esquerda?

    Mirou-me aparvalhado.

    - Sabe que não sei? - murmurou numa voz fraca, rouca. - Não sei.

    E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma orelha - qualquer orelha, seja ela de van Gogh ou não - verá que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Neste labirinto eu estava perdido. E nunca mais sairia dele.


Crônica de Moacyr Scliar retirado do livro Pipocas, série Literatura em minha casa, Volume 2 - Crônica e Conto, Companhia das Letras, São Paulo, 2003.

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