quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Os animais na linguagem dos homens

Desde muito cedo acostumou-se o homem a conviver com os animais ditos "inferiores" e a deles se aprovietar para garantir e preservar sua existência nesse planeta a que o Dr. Pangloss, nascido da veia satírica de Voltaire, chamou o melhor dos mundos, e a que pensadores menos cândidos chamam vale de lágrimas. Desse milenar contato aprendeu o homem a surpreender nos seus primos pobres propriedades, qualidades e defeitos, que se incorporavam, através dos séculos, ao saber que tem das coisas e dos seres com que lida no dia a dia de sua existência. Esse saber chegou até nós por meio de uma transmissão oral e escrita, refletindo na fraseologia, nos provérbios, nas fábulas e em outros gêneros de produção do espírito humano.

Recordar um pouco esse saber, especialmente sobre o que o homem aprendeu a observar acerca dos animais, saber que reflete na língua, é propósito destes comentários.

Um dos animais que o homem tem mais perto de si e, por isso, tem observado com mais cuidado, é o cão. A ele o homem associa qualidades e defeitos. Entre as qualidades está a obediência cega, de um servilismo que degrada. É frase conhecida: o cão é o melhor amigo do homem. Vem daí o atribuir-lhe o dom de trabalhador: trabalha como um cão. O servilismo está patente em expressões do tipo segue-me como um cãozinho ou batem nele e ele volta como um cachorrinho; tem vergonha de cão (isto é, não a tem). Há os que metem medo: chegou com uma cara de cão. Não é à toa que serve eufemisticamente para aludir-se ao diabo: É o Cão. Ao fato de existir o cão vira-lata, que, sem dono, vagueia pelas ruas sem proteção, como uma pessoa miserável, associam-se expressões como vida de cão, como um cão (sem dono). Daí também a alusão à magreza: magro que nem um cão. Também ao cão se atribui sua pouca simpatia ao gato: são como cão e gato, bem como sua esperteza e agilidade: é rápido como um cão, qualidade que condivide com o gato; com mão de gato. A forte e desagradável tosse que às vezes advém de estado doentio chama a atenção do homem: ela tem uma tosse de cachorro. Nem sempre agrada pela beleza, e daí pode ser um dos símbolos da feiura: o vizinho tem uma cara de cão. As pernas desengonçadas e finas levam à comparação do tipo tem pernas de cão, características que também são atribuídas a cegonhas, avestruzes, aranhas, pernilongos e lagartixas.

Nos tempos modernos, o gato é tão próximo do homem como o cão; todavia não era assim no passado, pois a antiguidade não conhecia o gato doméstico, mas tão somente o montês, que os latinos chamavam feles/felis. Gattus, donde o nosso gato, suplantou o termno feles, que se conservou em denomiações eruditas da nomenclatura técnica: felino, por exemplo, Cattus produziu maior ninhada lexical em todas as línguas românticas, quer nessa forma, quer na sua variante gattus. A convivência junto ao homem fez que este enxergasse no animal doméstico qualidades e defeitos muitos. Entre as qualidades está a agilidade e a esperteza, ágil como um gato, esgueira-se como um gato, pula que nem um gato, além do já citado tira algo com mão de gato. Na agilidade e esperteza em tirar e tomar as coisas vê-se-lhe também a tendência ao roubo, domínio em que patenteia extraodinária riqueza vocabular; gato "indivíduo esperto", "ligeiro", gatuno, gatunar e variante gatunhar, gatunagem. Esta atividade o gato reparte com o rato, fonte da palavra ratoeiro. Domesticado pelo homem, serve-lhe para apanhar ratos, e vem a figurar como designativo de "desavença", "briga", em expressões do tipo viver como gato e rato. A facilidade e presteza com que pega as coisas utilizando suas unhas levou o homem a criar o termo gaturar, variante gaturrar, que suponho antes derivado de gato nessa aplicação metafórica do que preso a capturar, como ensina Aurélio. Também creio que gadunhar nada tem que ver com gato, do mesmo modo que agadanhar "lançar no gadanho", "agarra com as mãos, unhas ou garras", que admite a variante agatanhar, por visível influxo da palavra gato, mas não desta derivada, conforme pensava João Ribeiro nas Curiosidades verbais (p.15).

Pelos seus trejeitos e requebros, o gato é também associado à lisonja, característica que a sabedoria do povo atribui ainda ao peru e à cobra. Talvez relacionado a esses requebros do gato o homem lhe tenha ligado o ato de gestos ridículos com as mãos, o que explicaria palavras como gatimonho (s), gatimônia (s), gatimonha (s), usados em textos literários. Vê o homem esperteza, além do gato, conforme vimos, na raposa (uma esperteza astuciosa, como personagem de fábulas), na águia (ele é um águia), no macaco (que não põe a mão em cumbuca; macaco velho "pessoa astuta", experiente).

É interessante uma série de empregos metafóricos ligados ao gato: gato ou gatilho "recurso utilizado para substituir uma peça original ou uma emenda": gato "erro", "falha", "deixar escapar algo num texto ou numa conta". 

O gato também é visto como um belo animal, e isto explica a metáfora do termo aplicado a um homem bonito ou de boa aparência, ou do feminino gata aplicado a jovem bonita ou de belo porte.

A fecundidade da gata passa também a designar gata a mulher de muitos filhos. Aqui também o homem atribui essa particularidade à coelha, que pode aplicar-se outrossim à mulher parideira. 

Ocupa lugar de destaque na linguagem metafórica o cavalo, companheiro do homem nas atividades de transporte, no arroteamento do terreno inculto, na diversão da batalha. O homem de cavalo distinguia-se pela nobreza do modesto homem de pé na constituição das antigas ordens militares, e o cavaleiro era sinal de distinção social e nobreza ou enobrecimento, o fidalgo, enfim. Com as mudanças por que passou a organização das classes militares modernas, com a chegada de novas armas e apetrechos bélicos, a cavalaria sofreu um rebaixamento no seu antigo prestígio de atuação guerreira, de modo que o português dos nossos dias teve necessidade de distinguir o cavaleiro e o cavalheiro, este empréstimo ao espanhol caballero, para indicar o homem de bom trato e de maneiras sociais apuradas. Nem por isso o esporte e a própria corrida de cavalos perderam seu toque aristocrático originário. Como remendo linguístico, o esporte aproveitou para sua designação o termo equitação (prova de equitação), derivado do antigo equus, desbancado já no latim pelo termo não latino caballus, antes aplicado apenas ao cavalo castrado ou cavalo utilizado no transporte de carga. Em socorro nobilitador também veio um empréstimo com ares de Hélade grega, hipismo de hippos, "cavalo" (prova de hipismo, sociedade hípica, etc). Se o masculino equus teve seu destino truncado, tal não aconteceu com o feminino equa, vivo no português égua e em mais línguas românticas.

Vê o homem no cavalo e demais bestas de carga o símbolo do trabalhador contumaz, obstinado, qualidade que condivide com o burro. Talvez dessa ideia de excessivo trabalho se origine a aplicação de pra burro (variantes mais modernas pra cachorro, pra chuchu) para designar grande quantidade ou excesso: chove pra burro, há corrupções pra cachorro. Como se trata de animal de montaria, é associado à ideia de sobreposição (estar a cavalo ou a cavaleiro para dizer ou fazer algo, estar em posição altaneira), passando daí a aplicar-se a outro animal pulador ou voador, como aconteceu com a denominação do peixe cavala, designação primitiva da cavala voadora (exocoetus volitans), pela sua semelhança com a cavala, que salta por cima d'água, conforme ensina Corominas no seu Dicionário.

De se lhe atribuir ao animal o trabalho excessivo deve ser tratado com rédea curta, como no provérbio Ata curto, pensa largo, ferra baixo, terás cavalo. O cavalo divide a fama de trabalhador com o boi, camelo, estes principalmente em referência ao trabalho braçal, com a formiga e a abelha.

Os equinos levam ainda a fama de teimosos: cavalo (égua, burro, mula) quando empaca... Do mulo ou mu veio amuado "sujeito intratável, que está emburrado ou embezerrado", segundo a boa lição de João Ribeiro, no livro já citado. Pelo exemplo, vê-se que partilha da fama de animal teimoso, o bezerro. O mesmo erudito brasileiro agrega ao rol a cabra, e a linguagem dos animais disso dá testemunho: cabra da rede rasgada diz-se do indivíduo desabusado, atrevido, insolente, como lembra o nosso Aurélio. Talvez daí venha o chamar-se cabra ao sujeito de maus costumes, perigoso, jagunço, cangaceiro. Desta área aos dizeres cabra da peste, cabra safado foi muito pequena a caminhada. Só não podemos concordar com João Ribeiro (loc cit) quando supõe, acompanhando alguns etimologistas, que cabra, na referência à teimosia, tenha sido responsável pelo termo capricho. Naturalmente, porque veria na palavra o latim capra "cabra", que aparece, por exemplo, em capricórnio do mesmo nome próprio que era, na lenda grega, filho do deus Egipã (aigós em grego é "cabra"), outro nome do deus Pã, que se apresentava com forma de cabra. Capricho é um italianismo, talvez ligado a capo, "cabeça".


BURRICE E INTELIGÊNCIA


Já o homem distingue, pela inteligência, o cavalo do burro, e considera este último como símbolo da estupidez, da burrice, vocabulário que bem traduz o conceito que dele tem o chamado animal superior. Desta opinião divergem muitos hábeis homens do campo, com larga experiência no trato dos dois animais; a verdade, porém, é que tradicionalmente os burros ostentam essa triste fama, e a linguagem humana assim o registra na aplicação direta ao animal, quer na metafórica, para se referir ao perdedor em algumas espécies de jogos de carta. Se burrus se aplicava em latim à cor ruça, asinus era o designativo do "asno", que partilha com o burro a triste sina de animal estúpido; Você é um asno; Que ideia asnática!; que asnice ou asneira! O possuidor de orelhas grandes fez que orelhudo fosse um insulto menos ultrajante do que burro ou asno.

Além desses animais, a ignorância ou burrice - infelizmente a eles não circunscrita - também é reconhecida na toupeira, que o homem da cidade conhece mais como indivíduos sobre a terra do que como "animal mamífero insetívoro que vive sob a terra, minando-a". Que topeira!

O homem associa a ideia de força física, ao leão, ao tigre, ao touro, ao boi, ao elefante, isto é, aos animais de grande porte, que ele conhece pessoalmente ou por leitura, ou pelo cinema: tem força de leão, ponha um tigre no seu carro, o menino é um touro, parece um boi ou parece um elefante. A baleia entra em comparação quando se trata de gordura excessiva (ela está uma baleia), enquanto a girafa é lembrada na referência à altura demasiada, um varapau (ele é uma girafa).

A essa noção associa-se a de coragem, valentia, de que desfruta o leão (coragem leonina), entre outros animais. Ao briguento se liga o galo (é um galo de briga), enquanto a covardia é atribuída aos animais sem sangue, como a barata: reajo, porque não tenho sangue de barata. A barata entra ainda em outros conceitos: barata tonta "pessoa que não faz as coisas a jeito", entregue às baratas, barata descascada, etc. A ideia de barata tonta se filia ao mosca morta.


MAGRA COMO LAGARTIXA


Já para a magreza, a que se alia também o conceito de baixa estatura, fraqueza, referimo-nos ao cão e à lagartixa, conforme vimos, mas ainda aos vermes, insetos e peixes na alusão a pessoas insignificantes ou desprezíveis.

Por falar em peixe, o homem associa a ele a noção de mudez (é mudo como um peixe), embora na pregação de Santo Antônio, a cuja história se refere o Padre Antônio Vieira, no sermão deste Santo aos peixes, como bons e atentos ouvintes. Quando se quer que uma notícia ou boato não se espalhe, pede-se boca de siri, expressão da gíria familiar. O falador já é fama de papagaio, e se a voz é estridente apela-se para a arara: Fala que nem um papagaio. Quando fala parece uma arara. Ao papagaio se atribui a felicidade da imitação, já que imita repetindo a voz humana. 

Temos também o macaco na qualidade de bom imitador; que essa característica também é observada por outros povos prova-se o fato de alguns vizinhos nossos acharem que os brasileiros macaqueamos a tudo e a todos.

Têm fama de comilão o lobo, o porco, o avestruz e a jiboia: fome de lobo; é um avestruz, pois come de tudo; come que nem jiboia. Já os pássaros têm a fama de comer pouco, petisqueiros: Parece passarinho, em vez de comer, só belisca.

As pessoas que não param, que nunca estão em ledo sossego, inquietas lembram a galinha (galinha choca), o bicho carpinteiro, a borboleta, a mosca e o tavão. Ligado a este último está estavanado, com sua variante estabanado. Os inoportunos e incomodados, que grudam nas pessoas, dizemos que são piolho, mosca, chato. Este último, pela obviedade, já considerado termo chulo, mas hoje corre empregado entre os diferentes sexos e idades sem qualquer reprimenda, salvo nas situações de cerimônia ou pouca intimidade.

Conhecemos também as pessoas caladas, esquivas e às vezes misantropas; acerca de algumas, isto nos entristece, porque, quando entramos na sua intimidade, descobrimos serem inteligentes, com excelentes cultura, dotadas de muito agudo espírito. Tais pessoas esquivas são conhecidas por bicho do mato, bicho da toca, bicho do buraco, mocho ou coruja: ele é um encorujado; ela mais parece um bicho do mato.

As que gostam de vaguear à noite, as noctívagas, são assemelhadas às aves noturnas; assim no Nordeste corre o termo indígena bacurau, designação de ave noturna. No nosso tempo de criança havia no Recife um mercado que só funcionava depois de altas horas da noite até de manhãzinha, denominado bacurau. O termo erudito noctívolo, o que voa de noite, sofreu mudança de sílaba tônica e, através da variante noitivóo registrada por A.G. Cunha no século XIV, passou a noitibó, "pessoa pouco sociável ou que só aparece de noite". Em algumas regiões de língua portuguesa tais noctívagos se dizem também morcego, como usou José de Alencar e está documentado no novo Dicionário de Morais.

As mulheres pretensiosas e muito saracoteadoras são conhecidas também por sirigaitas, termo de origem controvertida. Há pássaro semelhante à carriça ou garriça (cambaxirra), pássaro  dentirrostro, que leva esse nome. Por aí, observando-se os costumes do pássaro, talvez os homens aproveitassem a denominação para atribuí-las às mulheres com as características apontadas. Mas é questão não resolvida. O nosso mestre Nascentes, no Dicionário etimológico resumido, supõe ser "vocábulo de criação expressiva"; de qualquer maneira é termo que só se aplica a mulheres.

As prostitutas se dizem vacas, galinhas, enquanto ao homossexual se aplicam as denominações de veado, frango e mais alguns. Hoje os animais foram redimidos para essa acepção, desbancados pelo anglicismo gay. De vaca se formou avacalhado, termo chulo para referir-se as pessoas ou coisas desleixadas ou mal executadas.

As pessoas de bom caráter, mansas ou cordiais são conhecidas por cordeiro, pomba (sem fel), rola. Está última se aplica a pessoas tristes, melancólicas, ao lado de jururu, ave que também recebe o nome de joão-barbudo. As enamoradas associam-se a rolas e pombas (os pombinhos casam-se amanhã). Os arrulhos de gemido e canto podem ser interpretados como manifestações de desavenças e brigas; daí empombar e empombado serem aplicados à má parte para referir-se à zanga e à irritação.

Dos faltos de juízos, aos mentecaptos e alienados, se diz que têm macaquinhos no sótão, minhocas ou grilos na cabeça. 

O assunto é vasto, e muitos investigadores, dentro e fora da língua portuguesa, se têm dedicado à matéria, como, por exemplo, só para ficarmos em nosso idioma, os excelentes trabalhos de Delmira Maçãs, que nos serviram de fonte para estes despretensiosos comentários.


Texto de Evanildo Bechara retirado da Revista Para saber e conhecer nossa língua; Duetto Editorial, São Paulo, Edição 29, Outubro de 2011.

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