quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Hélio

 Hélio, o Sol, pertencia à geração dos Titãs, anterior aos Olímpicos. Passa por ser filho do Titã Hiperião e da titânida Teia. Era irmão de Éos, a Aurora e de Selene, a Lua. Hélio tinha por mulher Perseida, uma das filhas de Oceano e de Tétis, que lhe deu como filha Circe, a feiticeira. Estes, o rei da Cólquida, Pasífae, mulher de Minos e um filho, Perseu, que destronou o irmão Eetes. Consta que Hélio se uniu a diversas outras mulheres: à ninfa Rodes, mãe dos Helíades, a Clímene, mãe das Helíades, a Leucótoe, filha de Órcamo e de Eurínome. Hélio era representado como um jovem de grande beleza, com a cabeça cercada de raios, à maneira de uma cabeleira de ouro. Percorria o céu, num carro de fogo arrastado por quatro cavalos, Pírois, Eoo, Éton e Flégon, dotados de grande rapidez. Os quatro nomes originam-se de chama, fogo ou luz. Cada manhã, precedido pelo carro da Aurora, Hélio se atirava por um caminho que passava pelo meio do céu. À tarde chegava ao mar, onde banhava os cavalos fatigados. Hélio repousava num palácio de ouro, de onde partia no outro dia pela manhã. Quando os companheiros de Ulisses lhe comeram os bois, animais de brancura imaculada e de chifres dourados, ameaçou retirar-se para o seu palácio embaixo da Terra, se os culpados não fossem castigados. Hélio é considerado como o olho do mundo, aquele que tudo vê.


Retirado do livro Dicionário da Mitologia Grega; Ruth Guimarães, Editora Cultrix, São Paulo, 2004.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Orunmilá

 Orunmilá, conhecido também como Ifá, é o orixá e a divindade da profecia dos iorubás, e é muito respeitado por seu conhecimento e sabedoria.


O termo Orunmilá é formado pela contração de orun-l'o-mo-a-ti-la, que significa "Somente o Céu conhece os meios de libertação", e é também o resultado da contração de orun-mo-ola, "Somente o céu pode libertar". A palavra Ifá tem como raiz fa, e significa acumular, abraçar, conter. O termo indica que todo o conhecimento e as tradições iorubás se encontram no corpus literário de Ifá.

Orunmilá designa a divindade e palavra Ifá significa ao mesmo tempo a divindade e o sistema divinatório a ela associado. Para orientar os que o procuram, o sacerdote de Ifá dirige-se ao Odu Corpus. O corpus narrativo de Ifá contém a história da maioria dos orixás, ensinamentos sobre curas por meio de plantas. Dessa forma, os sacerdotes de Orunmilá também conhecem o preparo de medicamentos necessários para a cura de doenças.

Sobre Orunmilá existem muitos mitos que esclarecem a sua essência como orixá. Um deles narra que teria tido oito filhos aos quais ensinou todos os mistérios da profecia e adivinhação. Outro conta que ele teria nascido em Ifé, onde era um grande curador e adivinho. Após ter adquirido fama, fundou uma cidade chamada Ipetu, onde se tornou rei conhecido como Alaketu. Conta-se que era muito popular e considerado um grande profeta. Ele teria selecionado dezesseis homens desejosos de aprender a arte divinatória.

Conta-se também que Orunmilá participou do processo de criação e veio para a Terra em companhia de outros deuses primordiais. Teria então nascido em Ifé, local considerado o ponto de origem da espécie humana. Ele teria recebido de Olodumaré o privilégio de conhecer a origem de todos os orixás, de todos os seres humanos e de todas as coisas que existem no mundo. Daí a sua responsabilidade em guiar o destino de todos.

Segundo as tradições iorubás, somente Orunmilá pode sondar o futuro, pois é o único conhecedor do ipin ori, o destino do ori. Ori em iorubá significa cabeça e se refere a uma intuição espiritual e destino. É o orixá pessoal em toda sua força e grandeza.

Os sacerdotes de Orunmilá geralmente são procurados por um grande número de pessoas, grande parte em situação de crise, e que não sabe exatamente como agir devido ao seu estado de fragilidade. O sacerdote é proibido de tirar vantagens da situação e não pode recusar atender mesmo aqueles que não têm  condições de pagar por seus préstimos. Cabe ao sacerdote orientá-las e lhes dar o aconselhamento necessário para que solucionem seus problemas. 

A iniciação de um sacerdote de Ifá não inclui a perda da consciência, pois se trata de uma iniciação intelectual. Ele passa por um longo período de aprendizagem de conhecimentos precisos, em que a memória é fundamental. Ele deve aprender uma grande quantidade de lendas e histórias contidas nos 256 Odus ou signos de Ifá. No conjunto todo, o aprendizado forma uma espécie de enciclopédia oral dos tradicionais conhecimentos do povo iorubá.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial - Orixás, nº 46; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

sábado, 25 de dezembro de 2021

Advertência e Encorajamento

Após as bênçãos da semeação, a terra aparece reverdecida, e surgem as searas luminosas com as bênçãos da flor e do fruto.

Superados os graves períodos de amanhar a terra, retirando-lhe calhaus, abrolhos e pedrouços, surge o momento feliz em que as sementes se multiplicam a cem por um, a mil por um, prenunciando abundância de grãos sobre a mesa da esperança.

Parece que, no verdor rico de projetos felizes, paira a grande paz.

Todavia, a necessidade de defender a gleba, torna-se-nos muito maior, agora, do que antes.

O solo adusto e ingrato, deixado ao abandono, inspira repulsa e desprezo; mas o pomar, o jardim e a lavoura - nos quais predomina abundância de bênçãos - a cupidez, o interesse malsão e a exploração da avidez vigiam; e, como ladrões impiedosos sentindo-se impossibilitados de furtar os grãos e apropriar-se da terra, ateiam-se incêndios criminosos com os quais se comprazem, acreditando-se vencedores.

As lutas recrudescem.

As facilidades são apenas aparentes.

O crescimento na horizontal da vida não significa implantação na vertical dos sentimentos.

Imperioso redobrar a vigilância.

Os bastiões da fé estremecem; abrem-se brechas que dão acessos a incursões malevolentes e perigosas.

A segurança de uma parede é a harmonia dos blocos que se justapõem. Retirado o primeiro, os próximos são inevitáveis.

As defecções de muitos companheiros comprometem o trabalho do Senhor.

A instabilidade de corações afervorados faculta o desequilíbrio e as incursões negativas.

Hoje, como ontem, o cristão decidido não dispõe de tempo para o repouso inútil ou para a colheita de glórias frívolas.

As forças em litígio predominam no país emocional de cada indivíduo.

Enquanto não prevaleçam a paz, o equilíbrio, a ordem e o amor, no comando das ações, estaremos em conflitos e caminharemos em crise.

O trabalho, disso decorrente, será frágil, susceptível de desmoronamento.

À medida que a seara cresce, aumenta o número daqueles que a detestam, de um como do outro plano da vida.

Não facilitemos! Mantenhamo-nos em serenidade vigilante, conclamando-nos, uns aos outros, à observância dos compromissos firmados e à vigilância da oração.

Não há castelo inexpugnável, quando aqueles que ali residem torpedeiam-lhe as bases.

Não há defesas que se sobreponham-se a um cerco demorado, se faltam, no reduto sitiado, o equilíbrio e a ajuda recíproca.

O trabalho de Jesus progride em nossas mãos, mas cuidemos para que, fracas, não venham a comprometer a realização interior.

Estes são dias muito graves.

Acompanhamos a insensatez abraçada ao entusiasmo de fogo-fátuo, sem dimensão do futuro nem estruturas no presente.

Nós outros, que já nos comprometemos ao largo dos séculos, e falhamos quase sem cessar, cuidemos para que o novo insucesso não nos assinale a marcha, quando estamos próximos do porto final.

Renovemos propósitos saudáveis, retiremos a borra do pessimismo e do desencanto, compreendendo que é nos dejetos que a vegetação se faz mais luxuriante e no charco o lótus esplende com mais alvura, como ocorre com o lírio que explode em perfume.

Façamos do cansaço, do desencanto e da rotina, o adubo forte da sementeira da esperança.

Iluminemo-nos de dentro para fora, a fim de que a nossa luz não projete sombras.

Prossigamos, com o ardor de ontem e a confiança no amanhã, vencendo, cada hora e todo o dia, com o mesmo idealismo de fé, sem deixar que as altercações do mal e as forças negativas tomem das nossas paisagens interiores, manchando-as de sombras.

Jesus confia em nós, e, Seus Amigos espirituais, contam com o esforço de cada um e a decisão de todos.

A nossa, será uma vitória coletiva.

A deserção de alguém será atraso na marcha de outros e a queda de alguns será insucesso em muitos.

Mãos dadas e corações unidos, olhos postos na Grande Luz, avancemos, joviais, estóicos e felizes.


Retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis;  Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Olodumaré, o deus supremo

 Na mitologia iorubá, Olodumaré, conhecido também como Olorum, é o deus supremo que criou o universo e a vida.


Para muitos, Olodumaré é um deus que está fora da compreensão humana, por ser ditante e inacessível aos seres humanos. Ele separou o imaterial do material. O imaterial se refere ao infinito, o orum, habitado por seres sobrenaturais e entidades conhecidas como araòruns. É nesse local que habitam os antepassados e os orixás. O material se refere ao aiye (Terra), o mundo habitado pelos humanos, seres naturais.

Em algumas tradições, orum se situa no céu. Em outras, ele se localiza abaixo da terra. Essa ideia pode aparentemente ser comprovada durante as oferendas aos orixás, quando o sangue de animais sacrificados é derramado em um buraco cavado na terra, em frente ao local consagrado ao deus.

Para manter o controle sobre sua criação, Olodumaré, conhecido também como Olorum, criou os orixás que governam o mundo e suas criaturas. Cabe a ele resolver as questões e atritos entre os orixás.

Cada orixá é representado de forma material pelos elementos, e simboliza um arquétipo de atividade, de função, de profissão. No conjunto, eles se complementam e representam as forças que regem o mundo. É por meio deles que os homens dirigem suas preces e fazem oferendas a Olodumaré.

Os atributos de Olodumaré são: Único, Criador, Onipotente, Juiz e Eterno. Ele é considerado como "a poderosa e inalterável rocha que nunca morre" (Oyigiyigi Ota Aiku). Apesar de não receber cultos diretamente, sempre que uma divindade é cultuada, a saudação se inicia com a expressão Asé (axé), que significa "Possa Deus aceitar isso".

A relação entre os homens e os orixás se apresenta de uma forma mais complexa do que se pode imaginar. Para compreender essa relação é necessário observar algumas crenças dos iorubás. Para eles, tanto a vida quanto a morte são sagradas. Em todos os seus rituais eles consagram tanto a Terra quanto o Céu.

Eles acreditam na existência de várias almas. A primeira seria o princípio da existência, a respiração, o émi, dado aos homens por Olorum. Outra alma seria aquele que sempre segue o homem, a ojji, a senhora. A mais importante seria a alma ancestral, eledá ou ipòri, que está associada ao destino dos homens, à reencarnação e ligada à cabeça do homem, o ori. Segundo a tradição, é essa alma que comparece diante de Olorum antes de renascer um novo corpo.

Cada ori - cabeça - é modelada no orum pelo orixá Àjàtá, que tem o auxílio de Oxalá e das entidades ligadas ao destino, os odus - Èjiobe, Oyéku-méji, Irósun-méji, òwórín-meji, Òbára-méji, Okanràn-méji, Osá-méji, Òtürúpòn-méji. Òtüá. Dessa forma, cada cabeça é modelada formando o ipòri, a alma ancestral, de cada pessoa.

Se, por exemplo, Àjàlà usa a pedra ao criar a pessoa, ela deverá cultuar Ogum na Terra. Se for usada a água, o culto deverá ser feito aos orixás do elemento água, como Oxum e Yemanjá.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial - Orixás, nº 46, Mythos Editora, São Paulo, 2010.

Em favor dos Enfermos

 Na grande área dos serviços fraternos de socorro ao próximo, demandando a ação da caridade, a cura das mazelas orgânicas, emocionais e mentais é de vital importância.

Certamente, mais delicado é o desafio da saúde moral, graças ao qual os fenômenos fisiopsíquicos assumem alta significação, apresentando-se como respostas inevitáveis.

O ideal, portanto, é trabalhar-se os valores íntimos do homem, de cuja harmonia deriva o bem-estar. Entretanto, na impossibilidade de conseguir-se a realização plena, no campo das causas, o empenho por minimizar-se os efeitos perniciosos assume significação relevante, por propiciar requisitos que facultam a instalação das fontes saudáveis na organização perispiritual.

Para que se logrem resultados favoráveis, é indispensável que o agente possua condições mínimas que sejam, a saber: harmonia interior, que decorre de uma conduta sadia; sentimentos de amor, que propiciem vibrações positivas; espírito de abnegação; saúde física e mental, de modo que a bioenergia, que se deseje doar, carreie forças restauradoras e atue nos centros vitais, gerando células sãs, portadoras de equipamentos harmônicos.

Ocorre, às vezes, que alguns instrumentos das curas contradizem esses itens mínimos, porém, eles próprios são pacientes, nos quais as enfermidades ainda não se manifestaram, apesar de já instaladas.

Agem para o bem, sem consciência do que lhes pode fazer bem.

Toda e qualquer pessoa forrada de bons propósitos pode e deve auxiliar o seu próximo, quando enfermo.

Não é exigível que aplique esta ou aquela técnica, sempre dispensável. Mas é essencial que se haja educado para o mister e procure, sinceramente, ajudar.

A irradiação da mente concentrada no bem, em favor de alguém, opera admiráveis resultados.

Unida à aplicação dessa energia, com as mãos distendidas, sem ruído ou ritual, a magnetização da água completa a operação socorrista, ao ser ingerida pelo paciente.

A sociedade, como um todo, necessita do equilíbrio e da saúde, no entanto, é no homem, como célula valiosa, que se deve iniciar o labor terapêutico.

É claro que muitos atletas, portadores de saúde física, são, por outro lado, expressões de conduta infeliz, perniciosa.

Os apologistas das raças superiores preocupam-se com os físicos ideais e portadores de linhas que expressem a procedência genética, despreocupados com os seus valores éticos e morais.

A saúde real é resultado da homeostase, vigente no homem, na qual o físico e o emocional se harmonizam perfeitamente.

Jesus curava e concedeu aos discípulos a faculdade de recuperar os enfermos.

Mantinha, no entanto, uma regra severa para a preservação da saúde, que era a recomendação em favor da conduta moral de modo que não lhes acontecesse nada pior.

A mente é fonte geradora de energias que esparze conforme as inclinações do espírito, sendo fator de infortúnio, como de felicidade, para si mesmo e para os demais.

Assim, orando, exercita os teus recursos latentes, canalizando-os em favor dos enfermos e recomendando-lhes mudanças de comportamento mental e moral para melhor, assim contribuindo para que a sociedade humana seja mais feliz.


Texto retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 5ª Edição, 2014.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Vem Comigo

 Pede a saideira que agora é brincadeira

E ninguém vai reparar

Já que é festa, que tal uma em particular?

Há dias que eu planejo impressionar você

Mas, eu fiquei sem assunto...


Vem comigo, no caminho eu te explico

Vem comigo, vai ser divertido, vem comigo...


Vem junto comigo que eu quero te contaminar

De loucura até a febre acabar

Há dias que eu sonho beijos ao luar

Em ilhas de fantasia


Há dias com azia, o meu remédio é o teu mel

Eu sinto tanto frio no calor do Rio

Já mandei olhares prometendo o céu,

Agora eu quero é no grito!


Vem comigo, no caminho eu te explico

Vem comigo, vai ser divertido, vem comigo...


Música de Cazuza, Guto Goffi e Dé gravada por Crikka Amorim em seu CD No Ponto lançado pela Camorim Discos em 2004.

sábado, 11 de dezembro de 2021

Ação da Amizade

 A amizade é o sentimento que imanta as almas umas às outras, gerando alegria e bem-estar.

A amizade é suave expressão do ser humano que necessita de intercambiar as forças da emoção sob os estímulos do entendimento fraternal.

Inspiradora de coragem e de abnegação, a amizade enfloresce as almas, abençoando-as com resistências para as lutas.

Há, no mundo moderno, muita falta de amizade!

O egoísmo afasta as pessoas e as isola.

A amizade as aproxima e irmana.

O medo agride as almas e as infelicita.

A amizade apazigua e alegra os indivíduos.

A desconfiança desarmoniza as vidas e a amizade equilibra as mentes, dulcificando os corações.

Na área dos amores de profundidade, a presença da amizade é fundamental.

Ela nasce de uma expressão de simpatia e firma-se com a raízes do afeto seguro, fincadas nas terras da alma.

Quando outras emoções se estiolam no vaivém dos choques, a amizade perdura, companheira devotada dos homens que se estimam.

Se amizade fugisse da Terra, a vida espiritual dos seres se esfacelaria.

Ela é meiga e paciente, vigilante e ativa.

Discreta, apaga-se, para que brilhe aquele a quem se afeiçoa.

Sustenta na fraqueza e liberta nos momentos de dor.

A amizade é fácil de ser vitalizada.

Cultivá-la, constitui um dever de todo aquele que pensa e aspira, porquanto, ninguém logra êxito, se avança com aridez na alma ou indiferente ao enlevo da sua fluidez.

Quando os impulsos sexuais do amor, nos nubentes, passam, a amizade fica.

Quando a desilusão apaga o fogo dos desejos nos grandes romances, se existe amizade, não se rompem os liames da união.

A amizade de Jesus pelos discípulos e pelas multidões dá-nos, até hoje, a dimensão do que é o amor na sua essência mais pura, demonstrando que ela é o passo inicial para essa conquista superior que é meta de todas as vidas e mandamento maior da Lei Divina.


Texto retirado do livro Momentos de Esperança; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Aos Santos Inocentes

 Depois da Noite de Festa, aos sete e nove anos, recordo-me ter sido levado pela ama Benvenuta de Oliveira, Utinha, para um almoço em companhia de uns meninos e meninas na Rua Ferreira Chaves e depois na Avenida Sachet (Duque de Caxias), em Natal. Ao fundar, fomos brincar enquanto as acompanhantes serviam-se de um cardápio trivial. Houvesse anormalidade, teria lembrança. Nessa época, viajando de Natal ao Recife pela Estrada de Ferro, dormia-se em Guarabira, Paraíba, prosseguindo-se na manhã seguinte. Meus pais hospedavam-se na residência de um comerciante, Saraiva, magro, solene, conversador. Lembro-me que numa destas vezes, creio que em 1908, deixamos a casa em plena efervescência festiva para um almoço às crianças. Pertencendo à classe dos credenciados, lamentei continuar a jornada sem saborear os quitutes que a Senhora Saraiva dedicaria aos pequenos paraibanos. Trinta anos depois atinei tratar-se de uma devoção aos Santos Inocentes, 28 de dezembro, constando caracteristicamente de uma refeição às crianças, máximo de oito anos. As meninas deveriam ter menos idade porque ficam "sabidinhas" muito mais cedo.

Na cidade de Salvador essa festa convergiu para os Santos Cosme e Damião, 27 de setembro, correspondendo aos Ibejes dos pretos nagôs, o Caruru dos Meninos, que terminou não tendo dia certo para a realização. De origem cristã e divulgação familiar, vulgarizou-se como sendo um culto africano por influência dos Candomblés sudaneses na Bahia e áreas sujeitas a sua jurisdição supersticiosa. Indubitavelmente existiu no Rio de Janeiro, onde há vestígios da comemoração doméstica e digestiva aos Santos Inocentes, primeiros mártires em louvor do recém-nascido Jesus de Nazaré. Pereira da Costa já não a registra no Recife, onde será de impossível ausência. Teria havido da Paraíba para todo o Norte porque ainda é contemporânea em Belém do Pará, cidade mística. Direi mesmo, aquém do Rio São Francisco. Para o Sul e Centro, ignoro, mas a presença será ecologicamente lógica.

Pelo interior do Pará as festas íntimas a São Lázaro, 11 de fevereiro, São Roque, 16 de agosto, a Promessa aos Cachorros, incluem, às vezes, convites a um certo número de crianças ou de virgens, presumíveis inocentes.

Na Europa católica, notadamente na França, os Saints Innocents possuíam comemoração popular e burlesca, mesmo na Corte, confundindo-se com a "Festa dos Loucos": Fête des Saints Innocents, dite aussi. Fête des Fous, com amplas liberdades licenciosas, fazendo-se proibir em meado do século XV mas sempre funcionando na predileção jubilosa e erótica de Paris sob a dinastia dos Valois. Cem anos depois da proibição ainda motivada a novela XIV no Heptaméron da Rainha Marguerite de Navarre, para onde envio a possível curiosidade.

Na Sé de Lisboa, véspera do Santos Inocentes, os meninos do coro elegiam entre eles o Bispo Inocente, até o dia seguinte governando o clero, visitando igrejas, distribuindo bênçãos, saindo em procissão, com o mesmo cerimonial litúrgico do verdadeiro prelado. Lembrava o Imperador do Divino, com as efêmeras prerrogativas majestáticas. O reverendo Cabido da Catedral oferecia um lauto jantar aos jovens coristas. Seria a origem do ágape, no mínimo desde o século XVIII, julgado pelo Povo ato devocional por ser promovido pelas autoridades eclesiásticas com anuência do Arcebispo.

No meu tempo de sertão não havia mostras religiosas exteriores, exceto dois Padre-Nossos e três Ave-Marias rezadas pelas velhas donas menos às vítimas meninas do Rei Herodes que aos "Anjos", falecidos "antes da idade da Razão", incluídos na polifonia celestial. Decorrentemente ocorreu nas populações vizinhas, idênticas em sangue, mentalidade, índice cultural. Faziam-na em Guarabira, Fortaleza, Parnaíba, Tutóia. Não seria oblação seguida e regular mas "Promessa" à Nossa Senhora da Conceição, outra invocação e possivelmente aos próprios Santos Inocentes, patronos infantis, com a Anjo da Guarda, face imutavelmente juvenil e louçã. Lentamente os Santos Inocentes, com bem pouca representação plástica, diluíram-se como centro intencional rogatório. A refeição é que restou articulada à outra entidade celícola, sempre no intuito de alegrar crianças numa compensação ideal ao martírio sofrido na Judeia. Festa privada sem nenhuma intervenção sacerdotal. As crianças não oram nem cantam. Comem, bebem refrescos. Brincam depois, Maria de Belém Menezes, colaboradora admirável, informa-me do Pará: - "A Sra. D. Clarisse Rodrigues da Silva relatou que no dia 16 de agosto fez um Almoço dos Inocentes em homenagem a São Roque. Anos há em que ela faz o almoço a 23 de agosto, dia de São Benedito, pois é pobre e junta os dois Santos numa só Festividade, mas o Santo homenageado mesmo com o almoço é São Roque. Reúne doze crianças, desde as que já comem "alguma comidinha", até oito anos no máximo. Oferece picadinho, galinha guizada, arroz, macarrão, purê de batatas.

As crianças sentam em esteiras, em torno da toalha estendida no chão.

Terminado o almoço, amigas convocadas lavam as mãos das crianças e jogam a água nas plantas. À noite tem ladainha. Achei interessante ela contar que no meio da mesa põe uma imagem de São Roque (que mostra uma ferida na coxa), acompanhada de duas velas acesas e um copo d'água.

Perguntei-lhe para que a água e ela disse que era para a "lavagem dos espíritos" e misericórdia, e que acha que nunca saiu nenhuma briga, nem houve "desarrumação" de bêbados, etc. (o bairro em que está a casa dela é muito atrasado ainda) por causa do copo d'água. Esta, depois de oito dias, é jogada na sapata da casa... Soube de um senhor de nome Antônio Rodrigues, que mora na Travessa Curuzu, 784, Bairro da Pedreira, cuja esposa oferece anualmente um almoço em honra de Nossa Senhora da Conceição a doze crianças. Fui até lá e ela me contou que, estando  gravemente enferma, prometeu a Nossa Senhora da Conceição celebrar-lhe a festa com um almoço para doze crianças, o que vem fazendo há vários anos. Como os filhos estão crescendo, à noite querem festa e, disse-me o marido, a promessa está saindo cara, pois no ano passado (1971) chegaram a gastar, no total do almoço e festa, quase 800 cruzeiros!

O número de convidados será de três (Santíssima Trindade) a doze (os Apóstolos) e mesmo que os Santos inocentes não sejam homenageados nominalmente, reaparece o nome na sugestão dos componentes, Almoço dos Inocentes.

Em Portugal os Santos Inocentes, provocavam ruidosa comezaina, sendo nos finais de dezembro, 27/28, consideravam prolongamento do Natal e antecipação de Ano-Bom e Reis, aquecendo com vinho, canto e bailarico as tardes e noites frias do inverno. Essa "festada" não se aclimatou no Brasil. Nem houve eleição do Bispo Inocente ou a permissão de fustigar as raparigas surpreendidas no sono, donner les Innocents ou bailler les Innocents, no uso francês. Reduziu-se a uma refeição à crianças na idade das sacrificadas pela crueldade do Rei Herodes.

Essa seria a forma devocional, permanecendo na tradição brasileira.


Retirado do livro Superstição no Brasil, de Luís Câmara Cascudo; Global Editora, 2ª Edição, 2002.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Compromisso com a fé

 Qualquer compromisso que se assume impõe deveres que devem ser atendidos, a fim de conseguir-se a desincumbência feliz.

Se te comprometes com a área da cultura sob qualquer aspecto, enfrentas programas e horários, disciplina e atenção, para alcançares a meta pretendida.

Se buscas trabalho e desenvolvimento econômico, arrostas obrigações sucessivas, obediência, ação constante, e através dessa conduta chegarás aos objetivos que anelas.

Se te comprometes com a edificação da família, muitos imperativos se te faz indispensável atender, de forma que o lar se transforme em realidade feliz.

Se aceitas o compromisso social, tens que te submeter a inúmeras condições inadiáveis, para atingires os efeitos ditosos.

Compromisso é vínculo de responsabilidade entre o indivíduo e o objetivo buscado.

Ninguém se pode evadir, sem tombar na irresponsabilidade.

Medem-se a maturidade e a responsabilidade moral do ser através da maneira como ele se desincumbe dos compromissos que assume.

O profissional liberal que enfrenta dificuldades para o desempenho dos compromissos, luta e afadiga-se para bem os atender, mantendo-se consciente e tranquilo.

O operário que aceita o compromisso do trabalho, sejam quais forem as circunstâncias e os desafios, permanece na atividade abraçada até sua conclusão.

Compromisso é luta; é desempenho de dever.

O prazer sempre decorre da honorabilidade com que cada qual se desincumbe da ação.

Em relação à fé religiosa a questão é semelhante.

Quem se apresenta no campo espiritual buscando a iluminação, não tem condição de impor requisitos, mas, aceitá-los conforme são e devem ser seguidos.

Não se trata de um mercado de valores comezinhos, que devem ser leiloados e postos para a disputa dos interesses subalternos.

O compromisso com a fé religiosa é de alta relevância, pois se trata de ensejar a libertação do indivíduo, dos vícios e delitos a que se condicionou, e que o atormentam.

São graves os quesitos da fé religiosa.

Mesmo em se tratando de preservar a liberdade do candidato à fé, ela não modifica os programas que devem ser considerados e aplicados na transformação moral íntima.

Estabelecida a dieta moral, o necessitado de diretriz esforça-se para aplicar, incorporar as lições hauridas no seu cotidiano. Nenhuma modernidade altera as leis da vida, que são imutáveis.

Desse modo, o compromisso com a fé não permite ao indivíduo adaptar a linha direcional da doutrina que busca aos seus hábitos perniciosos e às suas debilidades morais.

E Espiritismo apoia-se moralmente nas lições de Jesus, sendo a sua, a mesma moral vivida e ensinada pelo Mestre.

Adaptar-se essa moral às licenças atuais, aos escapismos éticos em moda, às concessões sentimentais de cada um, constitui grave desconsideração ao excelente conteúdo que viceja no pensamento espírita.

Indispensável que o compromisso com a fé espírita mantenha-se inalterado, sem a incorporação dos modismos perniciosos e perturbadores do momento, assim ensejando a transformação moral para melhor de todos quantos o aceitem em caráter de elevação.

Somente assim, todo aquele que abraça a fé, que luz na Doutrina Espírita, terá condições para vencer estes difíceis dias em paz de consciência, mesmo que sob chuvas de incompreensões e desafios constantes do mal, dos vícios e dos perturbadores.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Já Dizia Salomão

Entre a razão e o dinheiro

Quem é quem?

Quem tem razão?

Se a razão for o dinheiro

Dinheiro tá sem razão

Se a razão for o dinheiro

Dinheiro tá sem razão

Eu nunca tive dinheiro

Nasci brasileiro

E toco violão

Mas não troco meu pesqueiro

Pelo teu hidroavião

E a paixão pelo dinheiro

É falta de outra paixão

Já dizia Salomão

Vamos repartir o pão

Que a justiça é infinita

Não obstante

Um tal Rei Midas, tubarão,

Transformou comida em ouro

E morreu de inanição

Vale mais quem vai mais fundo

Do que quem conta tostão

Que a melhor coisa do mundo

Dinheiro não compra não

Vale mais quem vai mais fundo

No fundo do coração

Que a melhor coisa do mundo

Dinheiro não compra não

Entre a razão e o dinheiro

Quem é quem?

Quem tem razão?


Música de Sizão Machado e Jean Garfunkel; é a segunda faixa do CD de Anaí Rosa intitulado Samba Comigo, lançado em 2010 pela Tratore.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Ana Belen e o Brasil

 Ana Belen apaixonou-se pela música e pelas aspirações dos brasileiros. Ela que é uma intérprete constantemente preocupada (na música e na vida particular) com os problemas sociais de seu país. O encontro de Ana com a música brasileira começou há alguns anos atrás, quando ela tomou conhecimento da MPB através de discos enviados por amigos e por sua gravadora no Brasil. "Tive na Espanha, há alguns anos atrás, um grande sucesso com a canção "Quiero ver Brasil", escrita por meu marido, Victor Manuel, onde fazia menção a todos os meus ídolos, Chico, Gil, Caetano, Milton, etc. Daí em diante aumentou ainda mais a minha vontade de conhecer esse país único no mundo". De imediato Ana amou nossa música e nossa peculiar maneira de ser. Gravou O Que Será, de Chico Buarque e o Brasil ficou mais conhecido em sua terra, como nunca antes fora. Um merecido Disco de Ouro para o sucesso de Chico na voz da Ana. Ela quis conhecer mais e mais e resolveu vir ao Brasil para gravar um LP só com músicas de nossos autores. Nos estúdios Sigla (Rio) ficou inteiramente à vontade, sob a produção de Sérgio Carvalho, supervisão de Marcos Maynard e direção musical de Lincoln Olivetti, e gravou vinte músicas, metade em português e metade em espanhol. Neste álbum duplo - apenas promocional e com edição limitada - estão todas essas canções.

Algumas dessas músicas estarão no álbum que Ana lançará brevemente na Europa. Para o disco que será lançado no Brasil em maio, foi escolhido o seguinte repertório: Volto (Ivan Lins), Noche de Máscaras "Noite dos Mascarados" (Chico Buarque, adapt. Victor Manuel San José, participação vocal: Chico Buarque), Paisagem da Janela (Lô Borges & Fernando Brant), Planeta Água (Guilherme Arantes, adapt. Victor Manuel San José), Voar, Voar (Zé Geraldo), Impossível (Fagner, em poema de Florbela Espanca, participação vocal: Fagner), Caminando "Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores" (Geraldo Vandré, adapt. Victor Manuel San José), Expresso 2222 (Gilberto Gil), Teresiña "Terezinha" (Chico Buarque, adapt. Victor Manuel San José), Canção Menina (Ruy Mauriti & José Jorge). O disco foi todo gravado somente com músicos brasileiros, para manter o nosso espírito e o nosso balanço.

ANA BELEN é a nossa embaixatriz musical na Espanha, com toda a força de seu prestígio e de sua popularidade, formando nossa arte ainda mais conhecida do outro lado do Atlântico. "Trabalhar no Brasil foi uma experiência absolutamente fascinante e emocionante, única em toda minha carreira", explica Ana, "Conheci de perto os músicos brasileiros - quentes, sensíveis, profissionalíssimos, amigos. E aumentou minha admiração por Chico Buarque quando nos encontramos e ele gravou "Noche de Máscaras" comigo. Quando Raimundo Fagner compôs especialmente "Impossível" e ele passou toda a emoção que já sentira em suas canções. Sensibilizei-me tremendamente com a música que Ivan Lins fez pra mim - "Volto" -, que tão fortemente retrata minha terra e tantas outras terras. As canções de Zé Geraldo (Voar, Voar) e da dupla Ruy Mauriti & José Jorge (Canção Menina) foram trabalhos novos que passei a conhecer e amar.

Gilberto Gil eu já conhecia, amava e respeitava muito; dele gravei duas músicas muito fortes e rítmicas: "De Onde Vem o Baião" e "Expresso 2222". E os compositores mais jovens do Brasil também estão presentes. Lô Borges (em parceria com Fernando Brant e Guilherme Arantes, um som novo que me fascinou.

E não poderia deixar de gravar o "pai" da música nova do Brasil - Luiz Gonzaga -, um grande inovador da música brasileira regional. Foi excitante ter gravado - dele e de Hervê Cordovil - "A Vida do Viajante", que fala da vida de todos nós, artistas de palco e da estrada.

Queria também mostrar a belíssima diversificação rítmica da música brasileira, especialmente para o público espanhol que a conhece penas através de antigos sambas bossa-nova e dos LPs de Roberto Carlos. Por isso inclui também "Balancê" (João de Barro & Alberto Ribeiro), uma marchinha carnavalesca, o samba-canção "Teresinha", de Chico Buarque, que tem uma linguagem tão própria do sentimentalismo brasileiro, e até mesmo a voz ousada do povo, suas aspirações e esperanças, através da belíssima canção de Geraldo Vandré, "Caminhando", acompanhada de grande coro, provavelmente a mais emocionante do meu disco."


Texto escrito por Francisco Rodrigues na parte interna do álbum lançado no Brasil por Ana Belen em 1982 pela então Gravadora CBS. Foi um disco duplo promocional...

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Santos Tradicionais no Brasil

Meu São Francisco das Chagas

Meu Santo do Canindé!

Eu sei que Santo não voga

Naquilo que Deus não qué


Durante meses em 1947 investiguei a popularidade de alguns Santos na fidelidade brasileira. Viajei e li boletins, arquivos, anuários. Muita conversa com gente velha de cidade, agreste e sertão. Não enfrentei as 3110 paróquias de 1953 quanto mais as do presente. A notícia municipalista é de 1965, IBGE. Informações de Fé, vieram das vozes populares, às quais proclamo confiança plenária.

Falarei ao de leve do orago da paróquia e do seu denominador. O Santo pode estar no altar principal mas não ser padrinho da freguesia. Padroeiro da Sé mas não titular do Bispado. São Pedro é titular da Arquidiocese de Porto Alegre mas a da Catedral é Nossa Senhora Madre de Deus. O titular do Maranhão é São Luís, Rei da França e da Sé, Nossa Senhora da Vitória. Do Recife e Olinda, Santo Antônio e da Catedral, a Transfiguração de Nosso Senhor Jesus Cristo, pouco entendida pelo beaterio. Às vezes é a mesma e única entidade: - Nossa Senhora das Neves na Paraíba, Nossa Senhora da Apresentação em Natal, ambas arquidioceses.

Preferência de Santos sobre Santas. Em 1391 paróquias, 909 Santos paraninfam para 482 padroeiras. Exceto Nossa Senhora nas incontáveis invocações, os homens distinguem o Santo do seu sexo. Leonardo Mota (Violeiros do Norte, 1925) registra a resposta desaforada de um chefe político sertanejo, referindo-se ao desafeto: - "O padroeiro da terra dele é feme, mas o da minha é macho: - mija em pé e não de coca..."

Alinho a relação no ângulo da simpatia. À esquerda as paróquias e à direita municípios e distritos.

Nossa Senhora da Conceição... 288, denominando 22 paróquias, 37 unidades municipais.

Santo Antônio - 228.62, municípios e distritos

São José - 171.80, distritos e municípios

São Sebastião - 144.43

São João - 118.62

Senhora Sant'Ana - 113.36

São Pedro, Chaveiro do Céu - 58.29

São Miguel - 37.17

São Francisco Xavier, Paula, Assis, Chagas - 31.23

Santa Rita - 30.23

Santa Teresinha - 25.7

São Gonçalo - 21.12

Tomei base na vintena das paróquias. A Santa Cruz dá nome a 25 municípios e distritos mas não constitui orago, exceto em freguesia de São Sebastião do Rio de Janeiro. Há quem debata a Santa Cruz constituir paraninfado real, atendendo apenas a participação sacrificial do Redentor, como a coroa de espinhos, a cana-verde, os cravos. São Domingos e Santa Bárbara batizam distritos e municípios em número de 12, para cada um. São Vicente atinge os 15.

São esses os nomes preferenciais da devoção brasileira. A presença do orago nem sempre coincide com a maioria devocional. Há respeitosa vênia mas não aparecem promessas. A Padroeira de Natal, desde inícios do século XVII, Nossa Senhora da Apresentação, não tem o culto assíduo e público do Padre João Maria, falecido em 1905, e que ainda não mereceu altar. Os natalenses canonizaram-no para todos os efeitos. É a mais popular das devoções na sua comovedora presença em todas as horas. 

Nossa Senhora das Neves em João Pessoa, padroeira, não é a intercessora preferida. Há os Santos terapeutas, como em todas as populações católicas do Mundo, atendendo as consultas por intermédio de orações, pagos os honorários em promessas. São Brás para garganta. São Bento contra ofídios. Santa Apolônia, odontologia. Santa Luzia, oftalmóloga. São Lázaro, úlceras, dermatoses, feridas-brabas. São Sebastião, moléstias contagiosas. São Judas Tadeu, enfermidades graves. São Vito, convulsões. São Roque, tumores. Nossa Senhora da Expectação, do Ó, Boa hora, Bom Despacho, Livramento, Bom Sucesso, Bom Parto, Boa Esperança, para a gravidez normal e parto feliz com recursos complementares a São José, Sant'Ana, São Raimundo Nonato (nonnatus, porque nasceu com cesariana). São Geraldo Magela, Santo Aluísio, evitam filhos pondo seu nome na criança. Para tornar-se mãe, Nossa Senhora da Piedade, das Dores, da Soledade, Madre-Deus, Santa Isabel, Sant'Ana dará leite. São Luís facilitará a linguagem. Santo Expedito fará andar. Santa Biliana cuidará das urinas. O Anjo da Guarda vigiará os passos de dia e o sono de noite. São José protegerá o lar. O Espírito Santo, a memória. São Cristóvão os negócios. Os "Bem-casados" (São Lúcio e Santa Bona) garantem o amor conjugal. A jaculatória "Jesus, Maria José minh'alma vossa é!" assistirá a agonia. São Miguel acompanhará o Espírito. Nossa Senhora do Carmo defenderá no Julgamento.

São Miguel é inseparável do culto das Almas, "São Miguel e Almas", como há paróquia em Santos Dumont, Minas Gerais. Santíssimo Sacramento e o Divino Espírito Santo são devoções delicadas, exigentes, cerimoniosas, populares e não vulgares. Apesar dos cortejos e trono da Festa do Divino, onde aparece Imperador coroado ou a Coroa Imperial é exibida em lenta procissão. O Sagrado Coração de Jesus e de Maria não são de emprego confiado na parte masculina. Preferências de mulheres e de área urbana e suburbana e não-corrente no mundo agropastoril. Os Santos letrados, São Tomás, Santo Inácio, São Paulo, Santa Teresa de Jesus, São Francisco de Sales, não alcançam o poviléu reverente.

Divinópolis, em Minas Gerais, tem o Divino Espírito Santo padroeiro. Merece o duplo tratamento de "Divino" e de "Santo". No Divinópolis de Goiás, orgulha-se possuindo o orago resplandecente e único no Brasil: - o Padre Eterno! permitindo muito pouca aproximação pecadora. Voltaire dizia-o esquecido na universal gratidão e ergueu-lhe igreja em Ferney, Deo erexit Voltaire, gravado na fachada.

Os Santos tradicionais na memória viva são os de Junho (Santo Antônio, São João, São Pedro) e mais São José e São Sebastião. Jesus Cristo é Nosso Senhor e Meu Deus. O Divino continua "Deus desconhecido" pela imprecisão dos atributos funcionais. A feitura de pomba não lhe imprime a devida majestade, quando todos os demais assumem formas humanas. Em Portugal, o Divino Espírito Santo já se apresenta como em Zebreira, Beira Baixa, ancião, venerando, coroado, em poltrona de espaldar, recebendo as vênias e dádivas. A devoção mais profunda, instintiva e natural é Nossa Senhora da Conceição, com sua infindável sinonímia que o Povo julga constituir outras tantas Santas distintas. As representações plásticas ajudam a manter a confusão entre os humildes fiéis nos países católicos. É a mesma observação na França, Itália, Espanha, Portugal, permitindo supor que toda a vida religiosa no Povo esteja limitada à contemplação do cerimonial litúrgico. Nas cidades a conclusão não será dessemelhante.

O culto dos Santos é o único interesse psicológico da multidão e a "alta sociedade" já não tem densidade espiritual para impeli-la ao sentimento divino. Indiferentismo que o desinteresse fundamenta pelo atrito diário, ou, nos intelectuais, uma curiosidade cerebral pela química da Fé ou anatomia das crenças. Homens e mulheres, nem mesmo pelo interior do Brasil, têm a visão litúrgica para reforço da Fé, porque vivem distantes das igrejas e da assistência sacerdotal, raramente prestante pela diminuição dos ministros em serviço dos Sacramentos. A necessidade econômica fixa esse Povo em regiões afastadas dos centros urbanos. Vezes, em larga extensão, não se avista em Capela!

Nesse ermo ardem as fogueirinhas de São João e sobem foguetes a São Pedro, Chaveiro do Céu, garantindo a entrada. Rezam a São Sebastião, defensor da Peste, Nossa Senhora da Conceição, arredando as dificuldades. Não podendo prever as modificações acolhedoras do II Concílio Vaticano, o clero moveu guerra de morte às devoções festivas mesmo nos adros das igrejas. Assim, a dança de São Gonçalo foi combatida como sacrilégio pelo Nordeste, apenas resiste no Sul. Duas fileiras devotas saudavam São Gonçalo cantando versos fervorosos, desfilando em marcha divergente, sob a direção de violeiros. Cantam no Sul ante a efígie, engalanada num telheiro rústico. É, como Sant'Antônio, Santo casamenteiro. Nesse plano, obtive na minha pensão de estudante no Recife de 1925 uma "Oração para casar", em versos, que Pereira da Costa divulgou variante em 1908.


Milagroso São Raimundo

Que casais a todo o mundo,

Vá dizer a Santo Antero

Que também casar eu quero.

Poder de São Expedito

Com um noivo bem bonito.

Permita Santo Odorico

Que ele seja muito rico.

E também Santo Agostinho

Que tenha muito carinho.

Assim como a São Roberto

Que o noivo seja esperto.


Com o poder de Santa Rosa

Quero ter nome de esposa.

Na força de Santa Inês

Chegue logo minha vez.

E com o senhor São João

Que me tenha adoração.


Também peço a São Vicente

Que isto seja brevemente.

Ao Anjo São Gabriel

Que seja bem fiel.

Assim como a São Germano

Que não passe deste ano!


Jamais foram "orações" e sim composição urbana e literária, com sua voga humorística desaparecida pela mudança das atenções psicológicas, como ocorria a uma "Ladainha das Moças", que Pereira da Costa salvou do esquecimento.


São Bartolomeu casar-me quer eu.

São Ludovico, com um moço muito rico.

São Nicolau, que ele não seja mau.

São Benedito, que seja bonito.

São Vicente, que não seja impertinente.

São Sebastião, que me leve à função.

Santa Felicidade, que me faça a vontade.

São Benjamin, que tenha paixão por mim.

Santo André, que não tome rapé.

São Divino, que tenha muito tino.

São Gabriel, que me seja fiel.

Santo Aniceto, que ande bem quieto.

São Miguel, que perdure a lua-de-mel.

São Bento, que não seja ciumento.

Santa Margarida, que me traga bem-vestida.

Santa Trindade, que me dê felicidade.


Pelas praias, agrestes, sertão, zona das matas, vales úmidos, essas produções seriam impossíveis num ângulo desinteressado de sátira. Nessas regiões o assunto é tratado a lo divino, a sério, suplicando marido, lar, filhos, legitimidade funcional feminina. A técnica aliciante é decisiva e urgente, alheia aos recursos da excitação citadina. A mulher é a mesma no poderoso instinto de conquista e fixação sexual. Toda mulher é Eva, pregava o Padre Antônio Vieira.

Nalguns sertões, Maranhão, Piauí, Mato Grosso, casavam publicamente ante a fogueira de São João, estabelecendo subsequente vida doméstica, portas adentro, respeitada e normal, até o aparecimento de um padre para "sacramentar" a união de fato. Queixam-se de tudo menos de carência da Fé. Possuem nas lembranças imediatas a presença suficiente e radiosa dos divinos recursos protetores e leais. Nosso Senhor, Nossa Senhora, o Crucificado, a corte dos Santos e Santas tradicionais, ajudam a manter essa autarquia religiosa, obstinada e sensível, na solidão do "desertão" nacional. Das representações de Cristo a de maior confiança, destino das súplicas desesperadas ou de imperioso interesse, é o Crucificado, o Cristo ferido e sangrento, morrendo na cruz. É o Bom Jesus! Centraliza as grandes romarias fervorosas, Bonfim, Lapa, Pirapora, Bom Jesus das Dores, distribuindo graças quando recebia os derradeiros ultrajes. O Povo só se comove realmente ante duas expressões físicas do Messias. O Menino-Deus no presépio e o Bom Jesus no madeiro do Gólgota. A criança determina a floração de ternura no complexo protetor da paternidade. O Crucificado provoca uma piedade de revolta e protesto pela injustiça da violência e a brutalidade da Força onipotente. Vale muito mais com sua coroa de espinhos que o Cristo-Rei no seu diadema de ouro. É o Bom Jesus com o coração aberto pela lança legionária, ampliando o caminho às misericórdias do Entendimento.

Um erudito "desencantado", Charles Guingnebert, quando professor da História do Cristianismo na Sorbonne, perguntava sem responder se La force de résistence des ignorants est-ce vraiment le dogme qui vit en eux? Visto e examinado quando vi e ouvi, documentário humano ao qual me reporto e dou fé, respondo à pergunta do Professor Guingnebert, com uma simples afirmativa: - É!


retirado do livro Superstição no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, 2ª Edição, 2002.

Marina Lima

Quando a belafera Marina Lima lançou no Teatro Ipanema o seu primeiro LP, Simples Como Fogo, em 1979, tudo ficou quente e claro como o verão: o Rio apresentava ao país a sedução de uma de suas melhores garotas de Ipanema. Esta garota é uma cantora de estilo, além de compositora, arranjadora, guitarrista e filósofa de expressões poéticas.

O compositor Caetano Veloso foi o primeiro a anunciá-la como "a cantora mais interessante de uma geração". Vieram depois outros poetas, como Haroldo de Campos, a exaltar em versos a feminilidade felina de Marina: "Deixe cantaras meninas dos olhos, olhos de fera felina, Marina."

Qual seria, então, este estilo de Marina? Os críticos tentaram em vão enquadrá-la nas categorias de rock, funk, blues, MPB. Nada disso. Marina é todas. De uma elaboração tão pessoal que consegue, por exemplo, marcar com a diferença de uma irreverência cool a canção mais tocada de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Depois de Astrud Gilberto, Ella Fitzgerald e Sara Vaughan, veio a Garota de Ipanema bluesy de Marina lançada nos Estados Unidos em clipe da MTV.

O público demorou alguns LPs para descobrir que tinha um ídolo simplesmente fogo. Todas, aliás, é o título do LP, o sexto, que jogou Marina no mercado das 100.000 cópias vendidas. O estouro da cantora de massa já se desenhava no LP anterior, Fullgás, sucesso que fecha o primeiro lado deste LP*. Esta Personalidade* concentra uma única matéria-prima em 14 canções: a paixão. 

Da garganta de Marina, vozes quentes, sussurradas, saltam da romântica Nosso Estranho Amor, de Caetano Veloso, ao funk de bandleader Difícil, de Marina e Antônio Cícero, o irmão mais velho e parceiro principal da artista. Não satisfeito em colocar as  próprias palavras nas cordas de aço de seu violão, Marina assina sozinha e com o irmão, versões singulares, como Pé na Tábua para Ordinary Pain, de Steve Wonder e Doida de Rachar para Maxine, de Donald Fagen, de originais em inglês, a língua que a dupla aprendeu a dominar durante a infância nos Estados Unidos.

Esta garota ousada de Ipanema se determinou ainda a criar novos valores de vida, compatíveis com a multiplicidade de seus desejos, todos expostos em público, até os mais ocultos, descobertos no divã do analista. Derrama inconfundível sensualidade também por canções de amigos, como a delicada Nada Por Mim, de Herbert Vianna e Paula Toller ou Eu Te Amo Você, de Kiko Zambianchi e consagra de uma vez o sucesso de Lobão, Me Chama, com a inquietação rouca de quem se movimenta por libido. Marina é movida a lib, amor em alemão, calor que provoca arrepio.


Texto escrito por Márcia Cezimbra para a contracapa da coletânea em LP intitulada *Personalidade, lançada pela PolyGram em 1991.

A Terra se Expande

Adetutu se viu em meio ao nada, como se coisa nenhuma existisse à sua volta. Estava completamente só, sem ninguém com quem falar, sem nada para fazer. Imaginou como teria sido a solidão de Olorum antes da criação do mundo. Porque, antes do início dos tempos, Olorum, o Ser Supremo, já habitava a eternidade. Ele vivia só, e tudo à sua volta era igual, sem diversidade e sem movimento. Acabou se cansando de tanto nada, de tanta mesmice, e decidiu fazer um mundo onde seu olhar pudesse pousar a cada instante numa coisa diferente. Queria que tudo se movesse e se transformasse. Imaginou o mundo em que até mesmo a repetição daria origem a novidades.

Olorum criou os orixás e atribuiu a cada um deles um de seus poderes, para que juntos governassem o mundo em seu nome.

Antes de mais nada, foi preciso criar a Terra e o firmamento e o que neles deveria existir. Oxalá, o filho mais velho de Olorum, recebeu esse encargo. Olorum entregou-lhe o saco da Criação, que continha toda a matéria necessária para a produção pretendida e disse:

" Vá e crie. "

Antes de Oxalá partir, Olorum recomendou:

" Nada mais será como foi até agora. O mundo começará a existir. Lembre-se de que Exu, o mais novo de seus irmãos, recebeu de mim o poder da transformação. Sem esse poder, nada se faz: não se cria e não se destrói; não se faz crescer ou definhar nem mesmo o mais insignificante dos seres. Faça uma oferenda a Exu, você sabe do que ele gosta e ele o ajudará na criação do mundo. "

Oxalá despediu-se e seguiu estrada afora, levando o saco da Criação nas costas. O fardo era pesado, a viagem, longa e cansativa. Ao passar sob uma árvore de galhos longos e roliços, cortou uma vara e improvisou um cajado para nele se apoiar ao longo da jornada. Ele criaria o mundo, criaria o Sol e as estrelas, a Terra e a Lua. Povoaria a Terra de mares e serras e rios e planícies e planaltos e cachoeiras. Depois cobriria as superfícies de terra firme com plantas de todos os tipos e tamanhos. Criaria os animais. A cada pensamento que surgia na mente fértil de Oxalá, a matéria se agitava no saco da Criação, que parecia ter ganhado um pulsar lento mas regular e ficava cada vez mais pesado. A vida já se manifestava no saco da Criação.

Adetutu seguia Oxalá, cuidando para não ser vista. Já conhecia a história, que a avó lhe contara muitas vezes e queria comprovar com os próprios olhos se era mesmo verdadeira.

De longe, Exu também acompanhava Oxalá, na esperança de ser chamado para dar sua contribuição à grande obra. Ao contrário de Adetutu, Exu fazia questão de se mostrar. Mas Oxalá, preocupado demais em elaborar em sua cabeça o projeto do mundo, nem  notava a presença de Exu.

A cada passo que avançava na viagem da Criação, Oxalá ia se convencendo de que não devia nada ao irmão caçula. Ele criaria o mundo, essa era sua missão, tinha o poder para isso. Ele seria grande, pensava, seria o maior dos orixás e sua obra, inigualável. Não tinha por que se preocupar com Exu. Talvez devesse lhe fazer um agradinho, lhe dar uns inhames assados e meia cabaça de aguardente, de que o irmãozinho tanto gostava. Mas se ele, Oxalá, estava destinado a ser o Grande Orixá, por que razão deveria se preocupar em fazer oferendas ao irmão para que ele o ajudasse? Faria tudo sozinho, tinha o saco da Criação! Em breve seria aclamado por todos. O mundo, agradecido, lhe renderia as devidas homenagens.

Assim pensando, oxalá esqueceu Exu completamente. Não se lembrou de que sem o controle sobre o movimento, poder que pertencia a Exu, nenhuma empreitada poderia dar certo. Nem uma coisinha qualquer, imagine a criação do mundo! Mas Oxalá era Oxalá. Já se imaginava o Criador.

Desgostoso com o descaso do irmão, Exu tratou de lembrá-lo de que sem sua participação nada de concreto resultaria da imaginação.

Naquele tempo Oxalá ainda não tinha esse nome, que na língua dos orixás quer dizer Grande Orixá. Era chamado de Obatalá, que significa Senhor-do-Pano-Branco, nome que ganhara por causa de seu gosto por tudo que era branco e imaculado, a começar de suas vestes.

Para mostrar a Oxalá que ele não era tão autossuficiente e poderoso como imaginava, Exu lhe preparou três incidentes.

Primeiro fez Oxalá cair e sujar as vestes na lama da estrada. Oxalá não suportava a sujeira e teve que voltar para casa para se  trocar. Perdeu um tempão.

Adetutu lamentou a sorte de Oxalá e quis avisá-lo para tomar cuidado com as vasilhas cheias de azeite de dendê que encontraria pela frente, mas ficou em dúvida se ele lhe daria ouvidos. Concluiu que era melhor ficar quieta.

Mais adiante Oxalá tropeçou numa cabaça de azeite de dendê e de novo sua roupa teve que ser substituída.

Exu a tudo assistia e se divertia muito com a caminhada acidentada do irmão mais velho.

Adetutu se mantinha escondida atrás do tronco de uma árvore. Depois de algum tempo, saiu do esconderijo, convencida de que os orixás não se perturbariam com sua presença. Foi quando teve a impressão de que Exu havia piscado para ela, num sinal de cumplicidade. Adetutu ficou com pena de Oxalá, imaginando as armadilhas que Exu ainda ia preparar para ele. Devia intervir, avisar Oxalá? Desistiu. Sabia que de nada adiantaria. Oxalá era famoso pela teimosia. E a história da Criação, afinal, era desse jeito mesmo.

Na terceira vez, foi com carvão que Oxalá se sujou. E lá foi ele de novo se trocar. Que perda de tempo! Mesmo assim Oxalá não se lembrou de pedir auxílio a Exu. Não lhe deu nada de presente, não fez nenhuma oferenda.

Odudua, outro irmão de Oxalá, que acompanhava tudo com muito interesse e certa dose de inveja, resolveu tirar proveito da situação. Uma vez que o desastrado irmão se mostrava incapaz de cumprir logo sua tarefa, por que não tomar para si a incumbência? Afinal, o mundo não podia ficar esperando Oxalá mudar de roupa indefinidamente. Odudua começou a sonhar que bem poderia ser ele o Criador. Cada vez mais convencido da incapacidade de Oxalá, Odudua foi se aconselhar com seu irmão Ifá, um adivinho que sabia tudo sobre o presente, o passado e o futuro.

Adetutu o seguiu. Queria ver como o oráculo funcionava.

Ifá jogou seus dezesseis búzios mágicos no chão, estudou o desenho que eles formaram e disse a Odudua que suas pretensões poderiam se concretizar. Antes de mais nada, deveria oferecer a Exu uma porção de inhames, uma cabaça de aguardente, uma de azeite de dendê e outra de água fresca, além de dezesseis punhados de búzios. Ah! E uma boa porção de pimenta-da-costa. Ao se dirigir para o lugar onde o mundo ia ser criado, deveria levar uma galinha de cinco dedos em cada pé, um camaleão e quarenta e uma correntes de ferro, que alguns dizem ter sido em número de quatrocentas mil e uma. Mas antes tinha que se apropriar do saco da Criação, evidentemente.

É claro todas as coisas mencionadas até aqui existiam apenas na mente dos deuses, pois o mundo de verdade, tal como o conhecemos e tudo o que há nele, ainda não fora criado.

Odudua deixou o presente para Exu numa encruzilhada, de onde ele vigiava quem ia de um lugar a outro e se pôs a caminho do lugar da Criação.

Enquanto isso, Oxalá, prestes a cumprir seu destino, se arrastava sob o sol quente, levando às costas o saco da Criação, que a cada passo ficava mais pesado. O calor era abrasador e uma sede tremenda lhe secava a boca.

Oxalá parou sob um dendezeiro e com seu cajado fez um furo no caule da palmeira. Do buraco jorrou um vinho fresco e encorpado. Oxalá bebeu do vinho-de-palma até matar a sede, mas a bebida lhe deu muito sono. Ali mesmo, na estrada, Oxalá adormeceu, embriagado.

Adetutu só não aproveitou para tirar uma soneca porque não queria perder nada.

Mais que depressa, Odudua, que de longe acompanhava com o maior interesse os movimentos do irmão, aproximou-se e sacudiu Oxalá. Constatando que Oxalá não acordaria tão cedo de seu sono entorpecido, Odudua pegou o saco da Criação, pôs nas costas e seguiu adiante, deixando Oxalá com seus sonhos de Criador.

Chegando ao lugar da Criação, Odudua pegou as quarenta e uma correntes de ferro que trazia, uniu uma à outra para formar uma só corrente e por ela desceu até a superfície das águas. Do saco da Criação tirou um punhado de terra que atirou sobre as águas e ali se formou um montículo, uma pequena ilhota. Em seguida soltou a galinha de pés de cinco dedos e ela se pôs a ciscar, espalhando por todos os lados a terra do montículo. Uma grande superfície sólida foi se formando sob os pés da galinha. O chão alastrou-se até onde os olhos de alguém já não podiam enxergar.

Maravilhada, Adetutu, que se lembrava bem dessa passagem, exclamou junto com Odudua:

" Ilê Ifé. "

Na língua dos iorubás, o povo de Adetutu, Ilê Ifé quer dizer A Terra se Expande. Segundo suas tradições, a cidade de Ilê Ifé estaria localizada no lugar desse episódio da Criação. Ilê Ifé, que hoje é uma cidade da Nigéria, é considerada pelos iorubás tradicionais a origem do mundo, de onde o homem se dispersou pela Terra. É a cidade sagrada dos iorubás, o umbigo do universo.

Desejando verificar se o mundo estava suficientemente sólido, Odudua fez descer pela corrente o camaleão, que andou com segurança pela Terra e voltou são e salvo às suas mãos. Com outros punhados do pó da Criação, foi acrescentando ao mundo tudo o que nele deveria existir.

Pronto! O mundo estava criado. Satisfeito, Odudua voltou para a casa do Pai para lhe dar a boa-nova.

Adetutu foi transportada para o alto e de lá viu o mundo acabado de nascer. Avistou de longe uma terra verdejante, cortada por rios azuis, que seu coração dizia ser o lugar onde no futuro ficaria seu país. Viu o lugar onde, um dia, seus ancestrais fundariam a aldeia em que ela nasceria. Ali seria criada, casaria e teria filhos. Naquele lugar seria feliz, até o dia em que os caçadores de escravo mudariam sua vida por completo..

Lá do alto, ela achou tudo tão bonito que não se conteve e aplaudiu a Criação. Exu, que lhe fazia companhia, se sentiu lisonjeado pelo aplaudo, que julgou ser dirigido exclusivamente a ele. Em retribuição, deu a Adetutu um saquinho de pano com a boca amarrada por um cordão de palha-da-costa.

" É para guardar segredos ", ele disse.

Ela agradeceu e pendurou a sacolinha no pescoço.

No chão do navio, Adetutu se virou. Dormia agora.


Retirado do livro A Criação do Mundo - Contos e Lendas Afro-brasileiros;  escrito por Reginaldo Prandi; Cia. das Letras, São Paulo, 2009.

domingo, 28 de novembro de 2021

Doce de Coco

Venho implorar pra você repensar em nós dois

Não demolir o que ainda restou pra depois

 Sabes que a língua do povo é contumaz traiçoeira

Quer incendiar, desordeira, atear fogo ao fogo...

Tu sabes bem quantas portas tem meu coração

E os punhais cravados pela ingratidão

Sabes também quanto é passageira essa desavença

Não destrates o amor!


Se o problema é pedir, implorar:

Vem aqui, fica aqui, pisa aqui neste meu coração

Que é só teu, todinho seu;

E o escorraça e faz dele de gato e sapato

E o inferniza e o ameaça,

Pisando, ofendendo, desconsiderando

E o descomposturando com todo vigor

Mas se tal não bastar o remédio

É tocar esse barco do jeito que está

Sem duas vezes se cogitar:

Doce de coco, meu bom-bocado, meu mau pedaço de fato

És o esparadrapo que não desgrudou de mim...


Música de Jacob Bittencourt e Hermínio Bello de Carvalho. Regravada por Joanna em seu então LP de 1981 intitulado Chama. No encarte, há uma explicação sobre a canção: a primeira gravação foi do próprio Jacob em 1950. Hermínio colocou a letra em 1980 e Elizeth Cardoso foi a primeira a gravar com a nova letra em 1981.

Os orixás e os mitos

 Para os iorubás tradicionais e os seguidores de sua religião nas Américas, os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou Olorum, também chamado Olofim em Cuba, o Ser Supremo, a incumbência de criar e governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana. Na África, a maioria dos orixás merece culto limitado a determinada cidade ou região, enquanto uns poucos têm culto disseminado por toda ou quase toda a extensão das terras iorubás. Muitos orixás são esquecidos, outros surgem em novos cultos. O panteão iorubano na América é constituído de cerca de uma vintena de orixás e, tanto no Brasil como em Cuba, cada orixá, com poucas exceções, é celebrado em todo o país. Os orixás que protagonizam os mitos aqui reunidos são, em sua maioria, cultuados atualmente tanto na África como na América, mas há também aqueles que são adorados na África e desconhecidos na América ou num dos países americanos em que se cultuam os orixás, assim como aqueles cujo culto se extinguiu na África original, podendo porém, em casos raros, ser encontrados em solo americano.

Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos demais orixás depende de seu papel de mensageiro. Sem ele orixás e humanos não podem se comunicar. Também chamado Legba, Bará e Eleguá, sem sua participação não existe movimento, mudança ou reprodução, nem trocas mercantis, nem fecundação biológica. Na época dos primeiros contatos de missionários cristãos com os iorubás na África, Exu foi grosseiramente identificado pelos europeus com o diabo e ele carrega esse fardo até os dias de hoje.

Ogum governa o ferro, a metalurgia, a guerra. É o dono dos caminhos, da tecnologia e das oportunidades de realização pessoal. Foi, num tempo arcaico, o orixá da agricultura, da caça e da pesca, atividades essenciais à vida dos antigos. Assim, ele é muito próximo de Oxóssi ou Odé e outros orixás caçadores, como Erinlé ou Ibualama, Logum Edé e Otim, que são os donos da vegetação e da fauna, detendo a chave da sobrevivência do homem através do trabalho. Orixá Ocô divide com Ogum o patronato da agricultura, mas foi esquecido no Brasil, provavelmente porque aqui o candomblé se formou como religião urbana.

Nanã é a guardiã do saber ancestral e participa com outros orixás do panteão da Terra, do qual uma antiga divindade, Onilé, ainda recebe em velhos candomblés uma cantiga ou outra em ritos de louvação dos antepassados fundadores da religião. Onilé, a Mãe Terra, é a senhora do planeta em que vivemos. As atribuições de Onilé foram redistribuídas entre Nanã e outros orixás que muitos seguidores consideram filhos seus. Nanã é a dona da lama que existe no fundo dos lagos e com a qual foi modelado o ser humano. É considerada o orixá mais velho do panteão na América. De sua família fazem parte Oxumarê e Omulu e, mais remotamente, Euá. Oxumarê, o arco-íris, é o deus serpente que controla a chuva, a fertilidade da terra e, por conseguinte, a prosperidade propiciada pelas boas colheitas. Omulu ou Obaluaê, também chamado Xapanã e Sapatá, é o senhor da peste, da varíola, da doença infecciosa, o conhecedor de seus segredos e de sua cura. Euá, orixá feminino das fontes, preside o solo sagrado onde repousam os mortos. Muitos candomblés incluem nesse panteão Iroco, a árvores centenária em cuja copa frondosa habitam aves misteriosas, temidas portadoras do feitiço, mas seu culto no Brasil é raro.

Xangô é o dono do trovão, conhecedor dos caminhos do poder secular, governador da justiça. Teria sido um dos primeiros reis da cidade de Oió, que dominou por muito tempo a maioria das demais cidades iorubanas, merecendo Xangô, talvez por essa razão, um culto muito difundido na África. É praticamente o grande patrono das religiões dos orixás no Brasil e seu culto está associado aos de suas esposas Oiá, Obá e Oxum, originalmente orixás de rios africanos. Na América, por razões óbvias, perderam a referência ao seu rio específico e tiveram reforçados outros atributos míticos. Oiá ou Iansã dirige o vento, as tempestades e a sensualidade feminina. É a senhora do raio e soberana dos espíritos dos mortos, que encaminha para o outro mundo. Obá dirige a correnteza dos rios e a vida doméstica das mulheres, no contínuo fluxo do cotidiano. Oxum preside o amor e a fertilidade, é dona do ouro e da vaidade e senhora das águas doces.

O culto aos orixás femininos não se completa sem Iemanjá, a senhora das grandes águas, mãe dos deuses, dos homens e dos peixes, aquela que rege o equilíbrio emocional e a loucura, talvez o orixá mais conhecido no Brasil. É uma das mães primordiais e está presente em muitos mitos que falam da criação do mundo. No Brasil ganhou a soberania dos mares e oceanos, regidos na África por Olocum, orixá esquecido no Brasil e pouco lembrado em Cuba, a antiga senhora do oceano, das profundezas da vida, dos mistérios insondáveis. Também do mar é Ajê Xalugá, de culto inexistente no Brasil, mas lembrada em candomblés que cultivam a busca de raízes culturais, antigo orixá regente da conquista da riqueza, da prosperidade material, dos negócios lucrativos. O culto de Iemanjá na África está associado ao rio Níger e pode ser observado na âmbito da celebração de divindades femininas primordiais, as Iá Oxorongá, literalmente nossas mães ancestrais, donas de todo o conhecimento e senhoras do feitiço, representantes da ancestralidade feminina da humanidade, as nossas mães feiticeiras, mas que entre nós são lembradas muito discretamente em ritos aos antepassados celebrados em velhos candomblés. Associadas ao culto das mães primeiras encontramos duas divindades infantis muito festejadas no Brasil, os gêmeos Ibejis, os orixás crianças que presidem a infância e a fraternidade, a duplicidade e o lado infantil dos adultos.

Presentes na memória de poucos sobreviventes das antigas gerações de candomblé estão Orô, o temido espírito da floresta, de rugido assustador, antigamente cultuado na África pelos membros de uma sociedade secreta encarregada da punição dos bandidos, feiticeiros e mulheres adúlteras, e Oquê, a montanha, elevação que nasce do oceano, a segurança da terra firme, base da vida humana.

Orunmilá ou Ifá é o conhecedor do destino dos homens, o que detém o saber do oráculo, o que ensina como resolver toda sorte de problemas e aflição. Os sacerdotes de Orunmilá na África, os babalaôs, sábios que usam seus mistérios para resolver problemas e curar pessoas, disputam com os sacerdotes de Ossaim a cura de todos os males que destroem a saúde. Ossaim é o conhecedor do poder mágico e curativo das folhas e sem sua ciência nenhum remédio mágico funciona. Ossaim é cultuado em todos os templos de orixá no Brasil, assim como em Cuba, mas a confraria africana dos olossains, seus sacerdotes herboristas, não sobreviveu entre nós. Orunmilá foi muito esquecido no Brasil, mas ainda é celebrado em antigos templos de Pernambuco e em terreiros que procuram recuperar tradições perdidas. Em Cuba, Orunmilá é praticamente um baluarte da religião dos orixás.

Oxalá encabeça o panteão da Criação, formado de orixás que criaram o mundo natural, a humanidade e o mundo social. Oxalá ou Obatalá, também chamado Orixanlá e Oxalufã é o criador do homem, senhor absoluto do princípio da vida, da respiração, do ar, sendo chamado de o Grande Orixá, Orixá Nlá. É orixá e muito respeitado tanto pelos devotos humanos como pelos demais orixás, entre os quais muitos são identificados como filhos seus. Oxaguiã ou Ajagunã é o criador da cultura material, inventor do pilão que prepara o alimento e é quem rege o conflito entre os povos. É considerado no Brasil uma invocação de Oxalá quando jovem e guerreiro. Odudua é o criador da Terra, ancestral dos iorubás e, juntamente com Oraniã, o responsável pelo surgimento das cidades. Na África há uma grande disputa entre os partidários de Obatalá e os de Odudua, mas no Brasil Odudua foi menos feliz e desapareceu quase por completo, sendo confundido com um aspecto do próprio Oxalá. Outros orixás fazem parte desse grupo: o entre nós pouco lembrado Ajalá, que fabrica as cabeças dos homens e mulheres, sendo assim o responsável pela existência de bons e maus destinos, e Ori, divindade da cebça de cada ser humano e portador da sua individualidade, cujo culto vem sendo reconstituído no Brasil com vigor considerável.

Cada orixá pode ser cultuado segundo diferentes invocações, que no Brasil são chamadas qualidades e em Cuba, caminhos. Pode-se, por exemplo, cultuar uma Iemanjá jovem e guerreira, de nome Ogunté, uma outra velha e maternal, Iemanjá Sabá, entre outras. Assim, cada orixá se multiplica em vários, criando-se uma diversidade de devoções, cada qual com um repertório específico de ritos, cantos, danças, paramentos, cores, preferências alimentares, cujo sentido pode ser encontrado nos mitos.

Os iorubás acreditam que homens e mulheres descendem dos orixás, não tendo, pois, uma origem única e comum, como no cristianismo. Cada um herda do orixá de quem provém suas marcas e características, propensões e desejos, tudo como está relatado nos mitos. Os orixás vivem em luta uns contra os outros, defendem seus governos e procuram ampliar seus domínios, valendo-se de todos os artifícios e artimanhas, da intriga dissimulada à guerra aberta e sangrenta, da conquista amorosa à traição. Os orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos quais descendem.

Os mitos dos orixás originalmente fazem parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo e de como ele foi repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade. Na sociedade tradicional dos iorubás, sociedade não histórica, é pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de tudo, é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. Como os iorubás não conheciam a escrita, seu corpo mítico era transmitido oralmente. Na diáspora africana, os mitos iorubás reproduziam-se na América, especialmente cultivados pelos seguidores das religiões dos orixás  no Brasil e em Cuba. A partir do século XIX, primeiramente estudiosos estrangeiros, sobretudo europeus, e mais tarde letrados iorubás iniciaram a compilação desse vasto patrimônio.

Em Cuba os babalaôs cultivaram o hábito de escrever em cadernos os odus do oráculo, que contêm os mitos, interpretações e prescrições sacrificiais, cadernos que mais tarde foram utilizados como fonte primária por pesquisadores das tradições afro-cubanas. No Brasil, onde a instituição oracular baseada na figura do babalaô desapareceu, certamente em razão do papel centralizador aqui desenvolvido pelas mães e pais-de-santo, chefes dos terreiros que agregam os devotos dos orixás, os mitos mantiveram-se difusos na memória ritual e no dia-a-dia das congregações religiosas iorubás-descendentes.

Pesquisadores brasileiros comentam a existência de cadernos  mantidos secretamente pelo povo-de-santo como meio de preservar e passar adiante o conhecimento mítico, mágico e ritual cultivado nos terreiros brasileiros, mas isso é raro e recente, considerando o triste fato de que, até bem pouco tempo atrás, a maioria dos dirigentes dos terreiros e demais iniciados era analfabeta. Até onde se tem notícia, data de 1928 o primeiro documento extenso escrito contendo os mitos da arte oracular, um caderno compilado por Agenor Miranda da Rocha, membro letrado de um dos terreiros da Bahia, em que tradições divinatórias haviam sido preservadas à moda dos antigos babalaôs, mas esse documento somente foi trazido à luz mais de meio século depois de ter sido escrito.

A partir de meados da década de 1930, escritores e cientistas sociais iniciaram o registro mais sistemático de mitos de orixás, embora uns poucos exemplares datem da virada do século XIX para o XX. Nos anos 30, o antropólogo Artur Ramos acreditou que a mitologia iorubá no Brasil estava completamente degradada e perdida (Ramos, 1935), mas Roger Bastide (1945, 1958), sociólogo francês, então professor de sociologia da Universidade de São Paulo, pesquisando na Bahia nas décadas de 40 e 50, discerniu perfeitamente a presença viva dos mitos não só como narrativa, mas como substrato subentendido nos ritos mantidos nos terreiros, sobretudo nas danças, e na própria estrutura mental dos seguidores da religião dos orixás tendo registrado inúmeros mitos.


Retirado do livro Mitologia do Orixás, de Reginaldo Prandi, Companhia das Letras, São Paulo, 2006.