sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Aos Santos Inocentes

 Depois da Noite de Festa, aos sete e nove anos, recordo-me ter sido levado pela ama Benvenuta de Oliveira, Utinha, para um almoço em companhia de uns meninos e meninas na Rua Ferreira Chaves e depois na Avenida Sachet (Duque de Caxias), em Natal. Ao fundar, fomos brincar enquanto as acompanhantes serviam-se de um cardápio trivial. Houvesse anormalidade, teria lembrança. Nessa época, viajando de Natal ao Recife pela Estrada de Ferro, dormia-se em Guarabira, Paraíba, prosseguindo-se na manhã seguinte. Meus pais hospedavam-se na residência de um comerciante, Saraiva, magro, solene, conversador. Lembro-me que numa destas vezes, creio que em 1908, deixamos a casa em plena efervescência festiva para um almoço às crianças. Pertencendo à classe dos credenciados, lamentei continuar a jornada sem saborear os quitutes que a Senhora Saraiva dedicaria aos pequenos paraibanos. Trinta anos depois atinei tratar-se de uma devoção aos Santos Inocentes, 28 de dezembro, constando caracteristicamente de uma refeição às crianças, máximo de oito anos. As meninas deveriam ter menos idade porque ficam "sabidinhas" muito mais cedo.

Na cidade de Salvador essa festa convergiu para os Santos Cosme e Damião, 27 de setembro, correspondendo aos Ibejes dos pretos nagôs, o Caruru dos Meninos, que terminou não tendo dia certo para a realização. De origem cristã e divulgação familiar, vulgarizou-se como sendo um culto africano por influência dos Candomblés sudaneses na Bahia e áreas sujeitas a sua jurisdição supersticiosa. Indubitavelmente existiu no Rio de Janeiro, onde há vestígios da comemoração doméstica e digestiva aos Santos Inocentes, primeiros mártires em louvor do recém-nascido Jesus de Nazaré. Pereira da Costa já não a registra no Recife, onde será de impossível ausência. Teria havido da Paraíba para todo o Norte porque ainda é contemporânea em Belém do Pará, cidade mística. Direi mesmo, aquém do Rio São Francisco. Para o Sul e Centro, ignoro, mas a presença será ecologicamente lógica.

Pelo interior do Pará as festas íntimas a São Lázaro, 11 de fevereiro, São Roque, 16 de agosto, a Promessa aos Cachorros, incluem, às vezes, convites a um certo número de crianças ou de virgens, presumíveis inocentes.

Na Europa católica, notadamente na França, os Saints Innocents possuíam comemoração popular e burlesca, mesmo na Corte, confundindo-se com a "Festa dos Loucos": Fête des Saints Innocents, dite aussi. Fête des Fous, com amplas liberdades licenciosas, fazendo-se proibir em meado do século XV mas sempre funcionando na predileção jubilosa e erótica de Paris sob a dinastia dos Valois. Cem anos depois da proibição ainda motivada a novela XIV no Heptaméron da Rainha Marguerite de Navarre, para onde envio a possível curiosidade.

Na Sé de Lisboa, véspera do Santos Inocentes, os meninos do coro elegiam entre eles o Bispo Inocente, até o dia seguinte governando o clero, visitando igrejas, distribuindo bênçãos, saindo em procissão, com o mesmo cerimonial litúrgico do verdadeiro prelado. Lembrava o Imperador do Divino, com as efêmeras prerrogativas majestáticas. O reverendo Cabido da Catedral oferecia um lauto jantar aos jovens coristas. Seria a origem do ágape, no mínimo desde o século XVIII, julgado pelo Povo ato devocional por ser promovido pelas autoridades eclesiásticas com anuência do Arcebispo.

No meu tempo de sertão não havia mostras religiosas exteriores, exceto dois Padre-Nossos e três Ave-Marias rezadas pelas velhas donas menos às vítimas meninas do Rei Herodes que aos "Anjos", falecidos "antes da idade da Razão", incluídos na polifonia celestial. Decorrentemente ocorreu nas populações vizinhas, idênticas em sangue, mentalidade, índice cultural. Faziam-na em Guarabira, Fortaleza, Parnaíba, Tutóia. Não seria oblação seguida e regular mas "Promessa" à Nossa Senhora da Conceição, outra invocação e possivelmente aos próprios Santos Inocentes, patronos infantis, com a Anjo da Guarda, face imutavelmente juvenil e louçã. Lentamente os Santos Inocentes, com bem pouca representação plástica, diluíram-se como centro intencional rogatório. A refeição é que restou articulada à outra entidade celícola, sempre no intuito de alegrar crianças numa compensação ideal ao martírio sofrido na Judeia. Festa privada sem nenhuma intervenção sacerdotal. As crianças não oram nem cantam. Comem, bebem refrescos. Brincam depois, Maria de Belém Menezes, colaboradora admirável, informa-me do Pará: - "A Sra. D. Clarisse Rodrigues da Silva relatou que no dia 16 de agosto fez um Almoço dos Inocentes em homenagem a São Roque. Anos há em que ela faz o almoço a 23 de agosto, dia de São Benedito, pois é pobre e junta os dois Santos numa só Festividade, mas o Santo homenageado mesmo com o almoço é São Roque. Reúne doze crianças, desde as que já comem "alguma comidinha", até oito anos no máximo. Oferece picadinho, galinha guizada, arroz, macarrão, purê de batatas.

As crianças sentam em esteiras, em torno da toalha estendida no chão.

Terminado o almoço, amigas convocadas lavam as mãos das crianças e jogam a água nas plantas. À noite tem ladainha. Achei interessante ela contar que no meio da mesa põe uma imagem de São Roque (que mostra uma ferida na coxa), acompanhada de duas velas acesas e um copo d'água.

Perguntei-lhe para que a água e ela disse que era para a "lavagem dos espíritos" e misericórdia, e que acha que nunca saiu nenhuma briga, nem houve "desarrumação" de bêbados, etc. (o bairro em que está a casa dela é muito atrasado ainda) por causa do copo d'água. Esta, depois de oito dias, é jogada na sapata da casa... Soube de um senhor de nome Antônio Rodrigues, que mora na Travessa Curuzu, 784, Bairro da Pedreira, cuja esposa oferece anualmente um almoço em honra de Nossa Senhora da Conceição a doze crianças. Fui até lá e ela me contou que, estando  gravemente enferma, prometeu a Nossa Senhora da Conceição celebrar-lhe a festa com um almoço para doze crianças, o que vem fazendo há vários anos. Como os filhos estão crescendo, à noite querem festa e, disse-me o marido, a promessa está saindo cara, pois no ano passado (1971) chegaram a gastar, no total do almoço e festa, quase 800 cruzeiros!

O número de convidados será de três (Santíssima Trindade) a doze (os Apóstolos) e mesmo que os Santos inocentes não sejam homenageados nominalmente, reaparece o nome na sugestão dos componentes, Almoço dos Inocentes.

Em Portugal os Santos Inocentes, provocavam ruidosa comezaina, sendo nos finais de dezembro, 27/28, consideravam prolongamento do Natal e antecipação de Ano-Bom e Reis, aquecendo com vinho, canto e bailarico as tardes e noites frias do inverno. Essa "festada" não se aclimatou no Brasil. Nem houve eleição do Bispo Inocente ou a permissão de fustigar as raparigas surpreendidas no sono, donner les Innocents ou bailler les Innocents, no uso francês. Reduziu-se a uma refeição à crianças na idade das sacrificadas pela crueldade do Rei Herodes.

Essa seria a forma devocional, permanecendo na tradição brasileira.


Retirado do livro Superstição no Brasil, de Luís Câmara Cascudo; Global Editora, 2ª Edição, 2002.

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