sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Dor de Dente

    Joca acordou danado da vida.

    - Droga de dor de dente!

    Um dente de leite havia doído durante boa parte da noite, deixando o Joca sem dormir direito.

    - Droga, logo hoje que é domingo, esse dente me amolando.

    Mal havia levantado, sua mãe deu a primeira ordem do dia:

    - Joca, vem me ajudar a limpar a cas!

    Isso era costumeiro do domingo de manhã: sem escola para ir, sem tarefa para fazer, não tinha jeito de escapar.

    - Pô, mãe, hoje não! Tô com uma baita dor de dente.

    Meia hora depois, Joca ainda estava carrancudo, queixando-se da maldita dor de dente.

    O pai, como fazia todos os domingos, chamou o filho para ir à feira.

    - Vamos, Joca. Depois te compro um pastel de carne na barraca do chinês.

    - Hoje não, pai.

    O pai de Joca insistiu:

    - Por que não?

    - Tô com dor de dente.

    - Tá doendo muito, Joca?

    - Um pouco.

    E o domingo continuou como tantos outros domingos da vida do Joca.

    Vieram os amigos de sempre: primeiro o Tuta, chamando para soltar pipa no morro perto da escola.

    Depois o Pepê, chamando para andarem de bicicleta na pista cross que eles mesmos fizeram.

    Depois a Ritinha, chamando para um desfile de bandas na praça; o Daniel, chamando para brincar na casa dele; e o Juca, seu irmão, pedindo ajuda para limpar a casa do cachorro.

    Nada. O Joca com dor de dente, amuado, com cara de poucos amigos, sem querer papo com ninguém.

    - Vamos ter que procurar dentista ainda hoje. Esse menino tá muito jururu.

    - Amanhã, mãe. Dá para aguentar até amanhã.

    Depois veio o almoço. Almoço de domingo na casa do Joca é coisa fina: macarrão, carne, molho e muito catchup.

    - Vem comer, Joca.

    - Num quero.

    - Vem comer só um pouco.

    Joca não quis.

    O pai, preocupado com o filho, mas não querendo estragar o domingo da família, levantou-se da mesa e sugeriu:

    - Que tal a gente tomar sorvete na padaria Rainha do Pão Fresco?

    - Oba! - concordaram todos.

    Joca esticou os olhos, ainda borocoxô.

    - Vamos, vamos.

    E puseram-se a caminho. De saída, já na porta, a mãe do Joca, com o coração pequenino, vendo o filho ali adoecido, suspirou:

    - Pena que você não pode ir, né, Joca? Sorvete faz mal pra dor de dente.

    Assim é demais. Ninguém resiste!

    O Joca, num segundo, pôs-se de pé junto ao grupo, meteu um sorriso novo nos lábios e disse:

    - Já passou, mãe. A dor de dente já passou.


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, série Conte Outra Vez, Atual Editora, 14ª Edição, São Paulo, 1988.


Homem pode ser mulher?

     Nós estávamos todos no quartinho dos fundos da casa do Zé Dirceu ensaiando uma peça de teatro para a aula de Língua Portuguesa. Eu, o Zé Dirceu, a Raquel, o Pedrão e o Engasgado (o nome dele não era esse, não: era apelido. Uma vez ele pegou escondido um lanche de um colega e quis comer depressa para não ser descoberto. Aí, já viu... engasgou e ganhou o apelido. O apelido pegou tão bem que hoje ninguém sabe o verdadeiro nome dele).

    Estávamos discutindo e trocando ideias a respeito da distribuição dos papéis. Quem faz o quê? Quem fica com o quê?

    - Eu faço o marido.

    - Eu faço o vendedor.

    O Zé Dirceu, dono da casa, fez biquinho e chantagem:

    - Eu quero é fazer o marido. De todos aqui, eu é que tenho mais jeito de homem.

    - Xiii... lá vem o machão da turma.

    - Que machão, coisa nenhuma! É que eu tenho uma baita cara de bravo!

    - Huummmm... bravinho, hein!?

    - Vamos parar com a brincadeira!

    Resolvi dar um palpite antes que a coisa engrossasse:

    - Tenho uma ideia: cada um escolhe seu papel preferido. A pessoa que escolher um papel e não tiver outro concorrente, já fica com o papel escolhido. O papel que for escolhido por mais de uma pessoa vai pra sorteio. A sorte decide pela gente.

    Pela cara dos meus amigos, percebi que todos tinham aceitado a sugestão. O único que ficou meio assim foi o Zé Dirceu.

    - E se eu não for sorteado para o papel de marido?

    Aí foi a vez do Engasgado falar por nós:

    - Se você não for sorteado, azar o seu. Fica com o papel que sobrar, ora bolas.

    Zé Dirceu tentou negociar:

    - Mas... a casa é minha.

    A Raquel arrematou:

    - Você fica com a casa e nós vamos ensaiar na rua. Está bom assim?

    Acho que isso entupiu a reclamação do Zé Dirceu, pois ele não falou mais nada.

    Fizemos a escolha. Dito e feito: o que todos nós pensamos aconteceu. Sobraram o papel de marido, com duas escolhas: o Zé Dirceu e o Engasgado; e o papel de empregada, sem escolha. Um dos dois ficaria com o papel de marido. O outro... bem, o outro... aí estava o problema: o outro ficaria com o papel de empregada. O sorteio foi feito, sem cambalacho, na frente de todos, com cinco pares de olhos acompanhando tudo, tintim por tintim. Adivinhe o que deu?

        - Engasgado foi sorteado... vai ficar com o papel de marido. Zé Dirceu... pra você sobrou o papel de empregada...

    Imaginem a cara do Zé Dirceu. Nós pensamos que ele fosse estourar. Os olhos brilhando muito, a pele vermelha, o rosto e o peito estufados:

    - Isso nunca!

    Saiu do quartinho dos fundos e entrou em casa. Esperamos mais um pouco e, como ele não deu as caras, fomos embora.

    -Como vamos explicar para a professora?

    - Explicando o que aconteceu, ué!

    - Será que ela vai acreditar?

    - Se não acreditar, paciência!

    Fomos embora. À tarde, teríamos aula e resolveríamos o que fazer. Não dava mesmo para arrumar outro colega, pois a classe inteira já havia sido dividida em grupos.

    Tivemos aula normalmente, cada qual na sua. O Zé Dirceu não falou com ninguém. Ficou jururu o tempo todo. Apenas no fim da tarde deu sinal de vida, mandando um bilhetinho para mim. Abri o papel e li:

Duda, já que vocês insistem e

já que não podem fazer a peça

sem a minha ajuda, avise a

turma que eu aceito ser a empregada.

Amanhã, às 9 horas, no

mesmo lugar.


    No dia seguinte, lá estávamos todos. Com os papéis escolhidos, começamos o ensaio. Foi um quiproquó danado. O Zé Dirceu deu um trabalhão e tanto para fazer o papel de empregada. Mas acabou acertando e dando um jeito.

    No dia da apresentação, ele esteve ótimo. Acho que até que foi por causa dele que fomos tão aplaudidos e convidados a apresentar nossa peça para as outras classes. O Zé Dirceu arrumou uma peruca loira, um sutiã emprestado da mãe, um vestido da irmã e se transformou numa verdadeira mulher. Até voz diferente ele inventou para cumprir bem sua parte.

    Sabe por que eu contei isso?

    Naquela época, eu era menina ainda. Depois cresci, me casei e tive três filhos. Um deles, um menino arteiro pra chuchu, entre uma vidraça quebrada por um chute torto e uma perna machucada por um tombo de bicicleta, de vez em quando resolve vestir minhas roupas para imitar e debochar da irmã mais velha...


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, coleção Conte Outra Vez, Atual Editora, São Paulo, 1988.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

As Cocadas

    Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo.
    Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até apuração do ponto. Vi quando foi batida e estendida na tábua, vi quando cortada em losangos. Saiu uma cocada morena, de ponto brando atravessada de paus de canela cheirosa. O coco era gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da prateleira.
    Duas cocadas só... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada, oito, dez, mesmo. Dias seguidos namorei aquela terrina, inacessível. De noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. Sempre eu estava por ali perto, ajudando nas quitandas, esperando, aguando e de olho na terrina.
    Batia os ovos, segurava gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado almofariz de bronze.
    Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para bater um pão-de-ló. Tudo ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada do seu conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiiii... Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.
    As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.
    Aói minha prima chamou o cachorro: Trovador... Trovador... E veio o Trovador, um perdigueiro de meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido e abanando a cauda. Farejou os doces em interesse e passou a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.
    Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas.
    Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta - má e dolorida - de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro.

Crônica de Cora Coralina retirada do livro O Tesouro da Casa Velha; Global Editora, seleção de Dalila Teles Veras, São Paulo, 1989.

As almofadas de Dona Lu

Conheci há tempos uma senhora que se chamava Dona Lucinda. Para o marido era eternamente Lu e para os da roda, Dona Lu.

Dona Lucinda veio ao mundo com uma arte ingênua e inspiração irresistível de fazer almofadas, exatamente no tempo em que era requintado o seu uso. Tinha a mania desse inútil pertence. Espalhada na vastidão de sua casa sem criança, Dona Lu contava, rentes, afora, os dois monumentais e bem estofados e bem enfronhados do leito conjugal.

De cima das cadeiras e nos encostos, na assoalho, em todas as direções, na entrada e na saída, tolhendo os passos, e atrapalhando as pernas, estiravam-se, quadravam-se, ou arredondavam-se as almofadas da boa senhora.

Mania interessante que me deixou sempre na dúvida de como a gente se comporta entre elas. Nunca soube ao certo se era para a gente sentar em cima ou ajeitar o corpo cansado; ou se eram  simplesmente para deleite dos olhos. Visitas prudentes, às vezes, antes de se sentarem, punham a almofada no colo.

Tudo quanto caísse do céu por descuido e passasse pelos olhos da excelente senhora, seus dedos ágeis logo transformavam. Retalhos de seda. Vestidos velhos descosidos, ticos de renda, véus usados de noiva, penas de galinha, palmilhas de sapatos velhos. Canhões de meias imprestáveis e até cabelo cortado das amigas, Dona Lu, com sua mania excelsa e habilidade inata, transformava em almofada, tradicional, clássica ou modernista. Era uma inspiração.

Não havia noiva que se casasse, amiga que se lembrasse de fazer anos, casal que festejasse bodas de prata, que não recebessem, para enfeite, deleite ou repouso, uma almofada de Dona Lu. Na teimosa abstinência dos filhos, dedicava-se às almofadas.

O marido conformou-se com a mania (com que não se conformam os maridos depois de 10 anos de vida conjugal?) e passava os dias no escritório porque não tinha em casa onde pôr os pés.

Conheci uma outra senhora, cujo maior pesar era não possuir tantas almofadas como Dona Lu.

Bem sabia ela que o marido da amiga não tinha em casa dois palmos desimpedidos por onde arrastasse descuidado os chinelos caseiros. Tinha o escritório, pensava. Fosse para o escritório.

Com franqueza, depois de dez anos de vida conjugal, o marido só tem mesmo um lugar seguro, apropriado, que lhe vai bem e onde não atrapalha - o escritório.

A amiga relava-se silêncio, no subconsciente. Passou a decorar o feitio, o modelo e a tática de Dona Lu. Logo mais começou a fabricação. Discreta no começo, ganhou impulso e foi longe, querendo mesmo ultrapassar a amiga.

No dia em que terminou a vigésima, discretamente deu uma festinha às pessoas de sua roda mais íntima. Competição sempre teve força e o fabrico continuou. O marido, amigo da paz doméstica, desistiu do dique que tentou opor à avalanche.

Como não tinha escritório fora do lar, diminuiu as passadas pela casa. Fazia voltas prudentes e cautelosas para alcançar um objeto mais afastado.

Pensou no desquite, pensou numa demorada excursão pela selva amazônica, onde não houvesse almofadas, pensou num incêndio, num terremoto e outras muitas coisas.

Afinal, pela força da inação, das pernas e da vontade, acabou paralítico numa cadeira de rodas, rodeado de almofadas.


Conto de Cora Coralina retirado do livro O Tesouro da Casa Velha, seleção de Dalila Teles Veras; Global Editora, São Paulo, 1989.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Tanto Mar

Sei que estás em festa, pá

Fico contente

E enquanto estou ausente

Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá

Com a tua gente

E colher pessoalmente

Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei, também, quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá

Cá estou doente

Manda urgentemente

Algum cheirinho de alecrim

Foi bonita a festa, pá

Fiquei contente

Ainda guardo renitente

Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá

Mas certamente

Esqueceram uma semente

N'algum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei, também, quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

Canta primavera, pá

Cá estou carente

Manda novamente

Algum cheirinho de alecrim


Letra original da música Tanto Mar, de Chico Buarque, bem diferente da versão dele no então LP de 1978. Aqui, a gravação é da cantora brasileira Ciça Marinho em seu belíssimo CD intitulado Além Mar, Além Mim, gravado em São Paulo no ano de 2012. Filha de portugueses, manteve o sotaque de seus pais na gravação do disco...

Assim caminha a humanidade

    Há muito tempo que penso nisso e muitas pessoas devem ter pensado a mesma coisa.

    Mas ninguém fala, ninguém diz nada. Por que, não o sei. Trata-se do automóvel. Essa maravilha mecânica, o veículo revolucionário que acabou com os carros de tração animal e expulsou o trem urbano para os longos percursos.

    E agora esse totem da nossa era, o AUTOMÓVEL, também chega ao seu fim, transforma-se num veículo obsoleto. Não serve mais. A finalidade a que se destinava, nas áreas urbanas: transporte individual, rápido, seletivo, perdeu o sentido. Você, hoje, para transpor alguns poucos mil metros, da sua casa para o centro, leva o mesmo tempo que gastaria se fosse caminhando a pé. As ruas de todas as cidades do mundo - pequenas, médias, grandes (ou imensas como São Paulo ou New York) vivem atravancadas por essas tartarugas ninjas, andando a passo de - sim, de tartaruga mesmo, cada uma ocupando um espaço que vai de 10 a 12 metros quadrados, e transporta na sua grande maioria só uma ou duas pessoas, no máximo três, se houver o motorista.

    Arrogante. Nas suas janelas de cristal, na pintura luzidia, nos metais polidos, o automóvel é, acima de tudo, um monstro de egoísmo. A área que ele exige para si, na via pública, em vez de dois personagens lhe ocupando os assentos, daria para, no mínimo, três bancos de três pessoas, folgadamente instaladas. Para quem vem, aqui no Rio, da Barra da Tijuca ao Centro, tem de se inserir logo na avenida das Américas, num imenso, compacto cortejo, andando em velocidade de enterro (qual enterro, já vi enterro marchando um muito maior velocidade!) e carregando todos juntos, um contingente de pessoas que caberia folgadamente dentro de um trem suburbano. E em meio de buzinadas, palavrões, batidas de para-choques ou outros incidentes mais graves, só vai alcançar o seu destino - se der sorte - dentro de, no mínimo, hora e meia.

    É, temos de livrar as ruas disso que Macunaíma  chamava " máquina veículo automóvel ". O carro puxado a cavalos também não desapareceu, por obsoleto? Hoje nem a rainha da Inglaterra o emprega, prefere os seus reluzentes Rolls Royces. Tal como não se podia mais suportar o atropelo e sujeira dos cavalos, das lerdas carruagens do fim do século 19, assim também o automóvel acabou.

    Há que substituí-lo por um transporte coletivo de qualidade, rápido, limpo, confortável. Metrôs, ou mesmo grandes veículos de superfície, sei lá. A cabeça dos técnicos já deve estar trabalhando, a dos urbanistas, a dos chamados cientistas sociais.

    Hoje em dia, se leva mais tempo viajando de casa para o trabalho, do que no trabalho propriamente dito. E como os patrões exigem as suas oito horas, tem-se de sair de casa em plena madrugada e chegar em casa depois das 10 da noite. Quem mora em subúrbio conhece bem essa tragédia. Os ônibus mesmo, que poderiam ser um grande recurso, têm os seus espaços disputados furiosamente pelos carros, e se embaralham, retardam e engarrafam, na confusão geral.

    Quem sabe vai-se recorrer ao transporte aéreo, grandes helicópteros que seriam como ônibus voadores, pousando em heliportos arranjados nos tetos dos grandes edifícios? Não sei... Porque logo apareceriam helicópteros particulares, cada executivo teria o seu, de luxo, importados. O que, aliás, já está acontecendo. Eu mesma viajei num desses, a convite de uma amigo.

    Ou será que os engarrafamentos vão continuar por mais anos e anos, como os assaltos, os sequestros, os meninos de rua, as favelas e demais desgraças dos grandes ajuntamentos urbanos? Então, a solução seria mesmo acabar com os próprios grandes ajuntamentos urbanos. Voltar todo mundo a se espalhar pelo campo, só procurando os centros quando a natureza do seu trabalho o exigisse.

    Até que o campo se deteriorasse também - já que esse é o destino do homem sobre a Terra: acabar com tudo de bom e bonito que a natureza para ele criou.


Crônica de Rachel de Queiroz retirada do livro Deixa que eu Conto, série Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 2003.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Zeppelin em Santa Teresa

    A serra da Carioca vem acabar a leste nesta ponta do morro do Curvelo, onde moro. O Curvelo é um pedacinho de província metido no Rio de Janeiro. Na verdade é uma pequena província. As corografias do Brasil mentem duplamente quando ensinam que o nosso país se compõe de vinte estados. Mentem primeiro porque não se trata de estados, mas de províncias, destituídas de toda autonomia política, como o provou o episódio da última eleição presidencial; mentem segundo porque esquecem a minha provinciazinha do Curvelo.

    Rua sossegada esta, onde pela volta do dia é doce acompanhar o jogo das sombras das fachadas no tabuleiro dos paralelepípedos; as lavadeiras estendem roupa nos paredões que fecham a calçada do lado da perambeira (fica um menino de guarda para dar aviso do aparecimento dos fiscais da municipalidade); a gurizada dos cortiços (naturalmente há um que se chama Buraco Quente) brinca o dia inteiro de gude, que gude!, buraca, pião (bico de aço!), pipa (linha crua!), futebol (a trinca do Curvelo contra a trinca do Cassiano); e pela boca da noite é aqui que todos os namorados das redondezas vêm passear agarradinhos. Todo o mundo sabe da vida dos outros, mas estão acostumados. Dona Júlia diz as últimas a Dona Aninha, Dona Aninha roga pragas, amanhã estão de bem e falando mal da Dona Leonor... A província a dez minutos da avenida Rio Branco. Não é delicioso? E só houve intervenção federal uma vez, quando os comunistas quiseram reunir-se na casa do intendente Otávio Brandão para escolher os seus candidatos à sucessão presidencial às cadeiras do parlamento. Sempre a política estragando o Brasil.

    Desde que começaram a falar na viagem do "Zeppelin" ao Brasil eu fiquei curiosíssimo de ver como o Curvelo reagiria a esse acontecimento empolgante e inédito. Se um simples balão de São João levanta clamores de estádio em momento de gol! Corre daqui. corre ali, as lavadeiras largam da lixívia, as comadres interrompem o fuxico, e os meninos - já sabem:

    - Água-rás! Água-rás!

    Tira a força desse gás!

    ... Às seis e meia ouvi no meu sono um ruído de motor: autocaminhão da ladeira do Cassiano, pensei. Mas de chofre um risco forte na consciência: "Zeppelin!" Pulei da cama e abri a janela. O "Zeppelin" de fato apontava à Barra.

    Antes de vê-lo eu imaginava que não sentiria este alvoroço, tão acostumado estava a ver as fotografias. Em imaginação já o tinha representado tantas vezes em todos os pontos do Rio, - sobre a avenida, para os lados da Tijuca, em cima do meu morro, e sobretudo como eu o via agora, entrando a Barra. Entretanto o espetáculo era perturbantemente inédito, como o do primeiro cometa que vi. Assim que acontece com a mulher por que se está enrabichado. A gente viu cem vezes, mil vezes, duas mil vezes. Sabe de cor. Pois toda vez que aparece é coisa inédita, é coisa nova, é charada novíssima, enfim é "Zeppelin".

    O balão estava dividido em dois pelo cume do Pão de Açúcar. A estranha serenidade disfarçava a velocidade da marcha. Ei-lo agora sobre o canal, a pino da Fortaleza da Laje. Visão de aquário. A Laje, o Pão de Açúcar, Santa Cruz são as pedrinhas do fundo da câmara. Como a água está clara!

    A proporção que o balão avança, a luz modela-o sob todas as faces. Agora de frente é apenas um disco, um escudo cintilante.

    Mas o morro já deu o alarma! Zipilim! Zipilim! Aquele não é balão de São João... Guri nenhum está gritando: "Olha lá um balão-ã-ão!" A palavra que se ouve mais é filha-da-mãe. De repente uma correria danada pelas escadarias acima para ver o bicho do outro lado. Quando chego à porta de casa o balão está atravessando no fim da rua. Confesso que fiquei brutalmente comovido: um Zeppelin por cima da ruazinha tão cotidiana! Também neste momento ela não tem nada de cotidiano. As janelas estão cheias de carinhas e carões estremunhados. Há moças nos telhados. Um grupo de cabras dança em torno de uma vitrola portátil funcionando no meio da calçada... Vão depois falar dos desenhos do Cícero Dias! Na verdade eu estou vendo tudo como nos desenhos de Cícero. Tem um sujeito tocando sanfona trepado numa palmeira da chácara de D. Sebastião Leme! Tem mulheres nuas na platibanda das casas! Tem anjinhos tristes oferecendo rosas ao corpo da mocinha que se matou em Madureira! Tem sujeito jogando tênis com duas bolas! Tem um burro no teto de um bonde em cima dos Arcos!

    Na ponta do terreno baldio na curva do Cassiano a trinca do Curvelo está toda arrumadinha olhando o balão. Mais atenção não é possível. Digo para o "Encarnadinho", treze anos, mulatinho bonito:

    - Vai apanhar o balão, vai!

    Risinho do lado.

    - Não se pode...

    - Por quê?

    - É balão de motô!

    "Piru", dez anos, magricelíssimo, diz que "não adianta" porque o Zeppelin é de alumínio, não se pode dobrar...

    Álvaro - um dia contarei aos senhores a história deste Álvaro, nove anos, ex-entregador de carne de açougue, ex-carregador de marmita, ex-jornaleiro da Noite no Largo da carioca - interpelado por mim não dá confiança e se limita a dizer:

    - Não fala bobagem, Seu Manuel Bandeira!


Crônica de Manuel Bandeira retirado do livro Deixa que eu Conto, série Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 2003.

domingo, 25 de setembro de 2022

A Mente em Ação

    Mais graves que as viroses habituais são aquelas que têm procedência no psiquismo desvairado.

    Por ser agente da vida organizada, a mente sadia propicia o desenvolvimento das micropartículas que sustentam com equilíbrio a organização somática, assim como, através de descargas vigorosas, bombardeia os seus centros de atividade, dando curso a desarmonias inumeráveis.

    Mentes viciosas e pessimistas geram vírus que se alojam no núcleo das células e, destruindo-as, espalham-se pela corrente sanguínea, dando surgimento a enfermidades soezes.

    Além desta funesta realização, interferem na organização imunológica e, afetando-a, facultam a agressão de outros agentes destruidores, que desenvolvem síndromes cruéis e degenerativas.

    Além dos vícios que entorpecem os sentimentos relevantes do homem, perturbando-lhe a existência, o tédio e o ciúme, a violência e a queixa, entre outros hábitos perniciosos, são responsáveis pela desestruturação física e emocional da criatura.

    O tédio é resultado da ociosidade costumeira da mente acomodada e preguiçosa.

    Matriz de muitos infortúnios, responde por neuroses estranhas e depressivas, culminando com o suicídio injustificável e covarde.

    Entregue ao tédio, o paciente transfere responsabilidades e ações para os outros, deixando-se sucumbir na amargura, quando não se envenena pela revolta contra todos e tudo.

    A mente, entregue ao ciúme, fomenta acontecimentos que gostaria se realizassem, a fim de atormentar-se e atormentar, aprisionando ou perseguindo a sua vítima.

    Por sua vez, desconta os centros de equilíbrio, passando à condição de vapor dissolvente da confiança e do amor.

    A violência é distúrbio emocional, que remanesce do primitivismo das origens, facultando o combustível do ódio, que se inflama em incêndio infeliz, a devorar o ser que o proporciona.

    Quando isto não ocorre, dispara dardos certeiros nas usinas da emoção, que se destrambelha, gerando vírus perigosos que se instalam no organismo desarticulado e o vencem.

    A queixa ressuma como desrespeito ao trabalho e aos valores alheios, sempre pronta a censurar e a fiscalizar os outros, lamentando-se, enquanto vapores tóxicos inutilizam os núcleos da ação, que se enferrujam e perdem a finalidade.

    Há todo um complexo de hábitos mentais e vícios morais, prejudiciais, que agridem a vida e a desnaturam.

    É indispensável que o homem se resolva por utilizar do admirável arsenal de recursos que possui, aplicando os valores edificantes a serviço da sua felicidade.

    Vives consoante pensas e almejas, consciente ou inconscientemente.

    Conforme dirijas a mente, recolherás os resultados.

    Possuis todos os recursos ao alcance da vontade.

    Canalizando-a para o bem ou para o mal, fruirás saúde ou doença.

    Tem em mente, no entanto, que o teu destino é programado pela tua mente e pelos teus atos, dependendo de ti a direção que lhe concedas.


Retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 5ª Edição, 2014.

sábado, 17 de setembro de 2022

Correta Visão da Vida

    Quando a criatura se resolve por diluir o véu da ignorância, que encobre a realidade da vida espiritual, começa a libertar-se da mais grave cegueira, que é a propiciada pela vontade.

    Cegos não são apenas aqueles que deixaram de enxergar, senão todos quantos se recusam a ver, sendo piores os que fogem das evidências a fim de permanecerem na escuridão.

    A vida, por sua própria gênese, é de origem metafísica, possuindo as raízes poderosamente fincadas no mundo transcendental, que é o causal. Expressando-se na condensação da energia, que se apresenta em forma objetiva, não perde o seu caráter espiritual; pelo contrário, vitaliza-se por seu intermédio.

    Quando a consciência acorda e as interrogações surgem, aguardando respostas, as contingências do prazer fugaz e sem sentido cedem lugar a necessidades legítimas, que são as responsáveis pela estruturação do ser profundo, portanto, imortal.

    Simultaneamente, os valores éticos se alteram, surgindo novos conceitos e aspirações em favor dos bens duradouros, que são indestrutíveis, e passíveis de incessantes transformações pata melhor, na criatura.

    Desperta-se-lhe então a responsabilidade, e a visão otimista do progresso assenhoreia-se de sua mente, estimulando-a a crescer sem cessar. A sensibilidade se lhe aprimora e seu campo de emoções alarga-se, enriquecendo-se de sentimentos nobres, que superam as antigas manifestações inferiores, tais o azedume, a raiva, o ressentimento, a amargura, a insatisfação...

    Porque suas metas são mediatas, a confiança aumenta em torno da Divindade e as realizações fazem-se primorosas, conquistando sabedoria e amor, de que se exorna a fim de sentir-se feliz.

    Quando a criatura se encontra com a realidade espiritual, toda uma revolução se lhe opera no mundo interior.

    Dulcifica-se o seu modo de ser o torna-se afável.

    Tranquiliza-se ante quaisquer acontecimentos, mesmo os mais desgastantes, porque sabe das causalidades que elucidam todos os efeitos.

    Nunca desanima, porque suas realizações não aguardam apoio ou recompensas imediatas.

    Identifica no serviço do bem os instrumentos para conseguir a perfeita afinidade com o amor, e doa-se.

    Na meditação em torno dos desafios existenciais ilumina-se, crescendo interiormente, sem perigo de retrocesso ou parada.

    Descobre no século os motivos próprios para a revolução e enfrenta-os com alegria, dando-se conta que viver, no mundo, é aprender sempre, utilizando com propriedade cada minuto e acontecimento do cotidiano.

    Usa as bênçãos da vida, porém, não abusa, de cada experiência retirando lições que incorpora às aquisições permanentes.

    Acalma as ansiedades do sentimento, por compreender que tudo tem seu momento próprio para acontecer, e somente sucede aquilo que se encontra incurso no processo da evolução.

    Aprende a silenciar, eliminando palavras excessivas na conversação, e, logrando equilíbrio mental, produz o silêncio mais importante.

    Solidário em todas as circunstâncias, não se precipita, nem recua.

    Conquista a paz e torna-se irmão de todos.

    Quando a criatura compreende que se encontra na Terra em trânsito, realizando um programa que se estenderá além do corpo, na vida espiritual, realiza o autoencontro, e, mesmo experimenta o fenômeno da morte, defronta a vida sem sofrer qualquer perturbação ou surpresa, mergulhando na Amorosa Consciência Cósmica.

    Certamente, pensando em tal realidade, propôs Jesus: - Busca primeiro o Reino de Deus e Sua Justiça, e tudo mais te será acrescentado.

    Despertar para a vida é imperativo de urgência, que não podes desconsiderar.


Retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

sábado, 10 de setembro de 2022

A Arte de Brincar

    É lamentável, mas os tempos andam tão maus que as próprias crianças já não sabem mais brincar.

    Em dias tranquilos, elas gostavam de suas cantigas de roda, tinham um largo repertório, e à tardinha e à noite brincavam pelos quintais e pelas ruas, pelos jardins e pelas praças. Tinham também jogos cantados e falados, resíduos ou esboços de teatro, e com eles se entretinham, alegremente. Os brinquedos simples, primitivos e eternos, fáceis de obter e de conservar, não faltavam nem mesmo às mais pobres; e quase se podia saber em que mês se estava pelo aparecimento dos papagaios de papel ou das bolas de gude, do pião ou do bilboquê. As bonecas ingênuas ocupavam as meninas com preparativos de enxovais de batizado e casamento, conduzindo assim as pequeninas mãos à técnica da costura e do bordado por um caminho de resultados surpreendentes, graças à sua origem terna e sentimental.

    Esses jogos, quase todos de grupo, estabeleciam relações sociais de cordialidade, entre as crianças. Muitas amizades nasceram de partidas de gude ou "cinco Marias", de cirandas e de fogos de artifício. E essa sociabilidade era autêntica, e de longa permanência, pois resistiria às competições dos jogos, às rivalidades aos despeitos, aprimorara o caráter nesses encontros de infância, que é quando se deve aprender a tolerância, a admiração, a justiça e outras coisas mais.

    As crianças de hoje parecem-me irritadas e desnorteadas. Cerca-as uma atmosfera bravia, uma agitada atmosfera, que as deixa sem a suficiente serenidade para apreciar a beleza simples das pequenas coisas e admitir outras vidas, além da sua, neste mundo tão grande.

    Os jogos de conjunto tendem a desaparecer, e são os brinquedos mecânicos que os substituem. Mas uma das coisas interessantes naqueles jogos era a sua barateza. Não há rua tão infeliz que não tenha pelo menos uma dúzia de crianças. Exceto aos pais, essas crianças não custam nada. É só reuni-las, fazê-las entoar umas tantas cantigas, e já temos uma festa, meio desafinada, meio rouca - mas há alguma festa que não seja meio rouca ou meio desafinada? Nunca vi.

    Agora com as bicicletas e os patins e os automóveis destes temos de velocidade, a história é outra. Nem todos os pais podem adquirir coisas tão caras para a sua prole. E, como os possuidores de tão custosas prendas, graças exatamente à sua qualidade de brinquedos velozes, podem estar quase ao mesmo tempo em muitas partes, resulta que uma boa porção da criançada sofre - sofre profundamente - por ver essas belas máquinas fora do alcance das suas possibilidades.

    Não me quero deter na análise dos sentimentos que essa situação desperta na alma infantil. "Há muitas coisas neste mundo, Horácio", que as crianças não podem entender

    Ainda uma coisa me parece pior: que os pais também sofram com essa situação. Esse sofrimento não resolve nada. E se um sofrimento não resolve nada, é inútil e deve ser eliminado. Deve ser substituído por uma coisa que resolva. A coisa que resolve é uma compreensão diferente da vida, e uma interpretação mais pura, mais sadia, mais isenta. E eu sei que dá um certo trabalho ter-se uma tal concepção do mundo que tudo deixe em seus lugares sem perturbar a paz de espírito de cada um. Mas, enquanto não se tem essa concepção, também não se tem essa paz, e, assim é mister começar pelo único lado que é, verdadeiramente, começo.

    Se os pais se lamentarem de não dar a seus filhos todas essas máquinas atraentes, mas um pouco tediosas que se inventam para brinquedo, podem causar um grande mal às crianças, aumentando o interesse naturalmente suscitado por essas coisas. Mas se não lhes derem grande atenção, se estiverem, eles mesmos, enamorados da infância e da beleza do mundo, conseguirão inspirar em seus filhos a sedução profunda de coisas que não custam nada, ou custam muito pouco, e encerram uma poesia delicada e imortal.

    Outro dia eu estava muito quieta contemplando esta cena: um pequeno pássaro da serra mirou e remirou o menino veranista que possuía uma dessas bicicletas fabulosas com que, nos circos, se fazem bailados de prata; por fim, propôs-lhe um negócio que, à sua experiência de pequeno comerciante, lhe parecia de alta vantagem: ele dava uma voltinha de bicicleta e o veranista, duas voltinhas no seu cavalo.

    Mas o veranista, como é da sua condição, dava uma grande importância a si mesmo e à sua propriedade. De modo que o negócio não se fez.

    Está claro que a minha conclusão é desfavorável ao veranista; pois que o menino rude da montanha ache surpreendente aquela máquina cintilante e queira ver como funciona é natural; mas que o veranista, pessoa já alfabetizada, geralmente com casa própria e professor de inglês, não saiba apreciar a vantagem de uma voltinha a cavalo - cavalo, bicho que vive, relincha, sacode a crina, e pisa com um garbo de jovem de dezoito anos na Cinelândia - ah, isso é inconcebível.

    E é por isso que eu digo que a arte de brincar se vai perdendo. A máquina está gastando a infância. Qualquer dia as criaturas humanas nascerão de barbas brancas, como Lao-Tsé.

    Oxalá se vierem com sua sabedoria...


Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Deixa que eu Conto, série Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 2003.

Viagens

    Ambicionas viajar, mudar de ares, viver novas experiências, conhecer outras pessoas...

    Sentes-te saturado por fazer as mesmas coisas, repetir os trabalhos habituais, conviver com as criaturas de todos os dias.

    A imaginação te desenha cenas empolgantes, enriquecidas de ilusões, convidando-te a conhecer outras terras, passear pelas regiões paradisíacas.

    Os lugares onde ainda não estiveste se te apresentam encantadores, ricos de promessas e de realizações, ensejando-te a felicidade que se te faz escassa, muito distante daquilo que anelas.

    Os promotores de turismo apresentam recepcionistas risonhos, vivendo um clima de festa permanente, de verdadeiro encantamento.

    Fascinado, acreditas que lá, no lugar onde não está, tudo são alegrias e brilho, jogos de prazeres e constante renovação de festa.

    Se não consegues, de imediato, realizar os projetos que traças, na esperança de fruir essas satisfações, deixas-te dominar pela amargura, pela frustração, tomando em estados depressivos ou de revolta contra tudo e todos.

    Retifica, porém, a maneira de encarar a vida.

    A dor, a dificuldade e o problema, a alegria e a tristeza, a saúde, a enfermidade e a morte visitam a todos e se apresentam em todos os lugares.

    Quem vive lá, no lugar que desejas ardentemente visitar, atormenta-se pelo desejo irreprimível de vir cá, onde te encontras, com idênticas impressões.

    Ali se padece de situações iguais às tuas.

    Há um fluxo contínuo e crescente destes que vão e daqueles que vêm.

    Sorridentes e joviais aqui, comunicativos e ligeiros, lá, são taciturnos e tristes, vivem cansados e deprimidos, qual ocorre contigo e com os indivíduos daqui.

    Há festa em toda parte e programações especiais para vender sensações, que deixam ressaibos de insatisfação e dor.

    Provocam paixões que se desvanecem, tornando-se cinzas e rescaldo dos incêndios que proporcionam.

    Enquanto na Terra, ninguém passa isento de provações.

    Cada criatura experimenta e vive sua quota, conforme as suas necessidades evolutivas.

    Não te iludas, portanto.

    Aqueles que se te fazem modelos de felicidade e beleza, também sofrem muito. Estão, apenas, disfarçados, guindados ao profissionalismo do qual retiram o pão diário, e, às vezes, o veneno com que se matam lentamente.

    Não imaginas o que lhes sucede...

    Há um lugar ao teu alcance, onde a felicidade te aguarda e nada a perturbará.

    Não te exige muito, nem te atormenta.

    Esse reduto maravilhoso é o coração. Põe nele o teu tesouro, conforme propôs Jesus, e aí o desfrutarás.

    Se viajares e te alegrares, levarás contigo a verdadeira alegria, e se não puderes sair de onde vives, manterás a mesma bênção sem qualquer conflito.

    Já que desejas, porém, viajar, faze-o como uma experiência para dentro, descobrindo o mundo íntimo profundo, e aí fruirás da plenitude que nunca se acabará.


Retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Medo

    Não há nada de que a criatura humana tenha mais pavor do que de morto. Deve haver realmente e de forma obscura uma força tremenda, invisível e imensurável da parte de quem morreu sobre aquele que anda firme na vida, anulando neste a capacidade de resistir à presença, ao contato ou à simples suspeita da aproximação daquele. Daí as inibições físicas e psíquicas, incontroladas, mesmo quando se trata de pessoas queridas que já se foram.

    O pavor domina o vivo obliterando todo o mecanismo do raciocínio e da capacidade de indagação e pesquisa esclarecedora do sobrenatural quando este se apresenta espontaneamente. Falta aos mais destemidos e temerários a coragem de perguntar.

    Nem os descrentes e corajosos e afoitos se sentem com a coragem de fazer perguntas ou indagar qualquer coisa quando o caso apresenta.

    Desse modo, medo obscuro, profundo e selvagem que a criatura não conseguiu disciplinar, surgem os casos trágicos, cômicos e humorísticos acontecidos com alguns mortos aparentes que tornaram à vida e até, mesmo, a simples aparência, suposição e engano, ligados à ideia da morte.

    Viajava uma jardineira, expresso ou perua, como se diz, de Goiânia para Goianápolis. Levava na coberta, entre malas e trouxas, um caixão vazio de defunto, destinado para uma pessoa falecida naquele distrito.

    Logo adiante na estrada, um homem parado, dá sinal e a perua para.

    Dentro, tudo cheio. O homem que precisava de seguir sua viagem aceitou de viajar na coberta com os volumes e o caixão vazio. Subiu. O tempo tinha se fechado para chuva e logo começou a pingar grosso. O sujeito em cima achou que não seria nada demais ele entrar dentro do caixão e ali se defender da chuva. Pensou e melhor fez. Entrou, espichou bem as pernas, ajeitou a cabeça na almofadinha que ia dentro, puxou a tampa e, bem confortado, ouvia a chuva cair.

    Mais adiante, dois outros esperavam condução. Deram sinal e a perua parou de novo; os homens subiram a escadinha e se acocoraram no alto. Iam conversando e molhados com a chuva fina e insistente.

    Passado algum tempo o que ia resguardado escutando a conversa ali em cima levantou devagarinho a tampa do caixão e perguntou de dentro, só isto: "Companheiro, será que a chuva já passou?". Foi um salto só, que os dois embobados fizeram do coletivo, correndo.

    Um quebrou a perna, o outro partiu braços e costelas e ficaram ambos estatelados do suto e sem fala, na estrada.


Crônica de Cora Coralina retirada do livro Deixa que eu Conto, série Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 2003.

Conto Familiar

    Era um velho que estava na família há noventa e nove anos, há mais tempo que os velhos móveis, há mais tempo até que o velho relógio de pêndulo. Por isso estava ele farto dela, e não o contrário, como poderiam supor. A família o apresentava aos forasteiros, com insopitado orgulho: "Olhem! Vocês estão vendo como 'nós' duramos?!"

    Caduco? Qual nada! Tinha lá suas ideias. Tanto que, numa dessas grandes comemorações domésticas, o pobre velho envenenou o barril de chope.

    No entanto, como era obviamente impraticável - a não ser em novelas policiais - deitar veneno nas bebidas engarrafadas, apenas sobreviveram os inveterados bebedores de coca-cola.

    - Mas como é possível - lamentava-se agora tardiamente o pobre velho - como é possível passar o resto da vida com esses? Com gente assim? Porque a coca-cola não é verdadeiramente uma bebida - concluiu ele, - a coca-cola é um estado de espírito...

    E, assim pensando, o sábio ancião se envenenou também.


Crônica de Mário Quintana retirada do livro Deixa que eu Conto, série Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 2003.

sábado, 3 de setembro de 2022

Uso da Palavra

    A palavra é emissão do pensamento que se verbaliza, portadora do conteúdo mental, que busca  alcançar um fim. 

    Mesmo quando procura dissimular os sentimentos íntimos, é veículo de alta carga vibratória que a desvela.

    O seu uso correto faz que se torne instrumento de grande poder, favorecendo quem a explicita.

    Quando carregada de sinceridade e fé, age como onda vibratória que estiola as forças negativas que envolvem o indivíduo, promovendo as aspirações de que se reveste.

    Se portadora de pessimismo, dúvida e acusações, atrai por sintonia mental enfermidades, sombras e malquerenças, que terminam por vencer aquele que a exterioriza.

    A educação da vontade contribui de maneira especial para o exercício feliz da palavra.

    Falar, sem pensar, é ato comum, automático.

    Pensar, antes de falar, resulta da conquista dos valores morais e espirituais que dignificam o homem.

    A palavra é semente que se deposita no solo das vidas.

    Conforme a sua qualidade, ressurge em colheita de frutos que serão portadores de paz ou desgraça.

    A sementeira, portanto, deve ser realizada de forma consciente, com os olhos postos no futuro.

    Quando se silencia uma palavra infeliz, ela permanece subjugada; porém, se expressa, faz-se verdugo implacável.

    Falar é uma ciência e uma arte.

    Ciência, porque deve ser sempre mensageira de sabedoria de amor, portadora de fé. E arte, porque se deve revestir da correspondente modulação ao que informa.

    Estabeleceu-se como correto, na arte da palavra, "que nem sempre é o que se diz, mas como se diz", que provoca a reação do ouvinte.

    Assim, coloca a dose de emoção correta no teu verbo, de modo a torná-lo objetivo, claro e saudável.

    Fala, emitindo ondas positivas, afirmações sinceras, com correspondente carga de amizade.

    Diante de uma situação negativa, não faças coro geral, com palavras rudes, pejorativas, portadoras de azedume e ira.

    Além de não resolverem a ocorrência e desequilíbrio.

    A palavra apaixonada pelo mal tem sido responsável por guerras lamentáveis, assim como aquela, que se faz mensageira de compreensão e lucidez, tem podido intermediar e conseguir a paz.

    A palavra propele ao trabalho, à ação do bem, ou à revolta, à indolência, à injustiça.

    A palavra é uma flecha que, disparada, não mais pode ser detida, alcançando o alvo.

    Tem cuidado com ela.

    Falando, Jesus alterou completamente a filosofia existencial, então vigente na Sua pátria, e abriu as fronteiras da esperança de felicidade para as criaturas de todos os tempos futuros.


Retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 4ª Edição.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Baião de Dois

    Naquele dia acordou, se olhou no espelho e viu uma mulher que não era ela, mas era ela mesma.

    O calendário marcava setenta anos de idade, mas aquela figura que a observava do outo lado do vidro não tinha mais que trinta. Rugas, manchas senis, o "código de barras" ao redor da boca, a pele flácida das bochechas, toda a decadência física que vem com a idade havia desaparecido dando lugar a um rosto jovem e tonificado. O que uma série de poderosas plásticas não foi capaz de resolver, não é mesmo?

    Ficou lá se deliciando com sua nova aparência facial que mal notava o resto do corpo ainda padecendo de envelhecimento normal que acometia toda septuagenária. Foi constatando essa dicotomia física que teve a ideia de se matricular numa academia de ginástica. "Se a idade está na cabeça, então o resto do corpo será comandado por ela. Vou malhar até ficar enxuta." Além do que, uma plástica geral no corpo inteiro já lhe adiantaria uns bons vinte anos a menos. Quando punha uma ideia na cabeça não desistia tão cedo, e o melhor de tudo é que tinha dinheiro de sobra para realizar suas excentricidades, além de também comprar a falsa adulação do bando de puxa-sacos que a rodeava.

    Já recuperada das trocentas cirurgias que fizera, seu personal achou que a missão de fazer o corpo de uma ex-setentona/neocinquentona parecer com o de uma trintona seria quase missão impossível. Para se fazer de imprescindível e, claro, receber uma boa grana, a treinaria pesado sete dias por semana, duas vezes ao dia e "dessa maneira a velha vai logo pedir arrego, desistindo de querer o que jamais voltará a ser". Só que não. A solteirona tinha uma força de vontade descomunal e, como não fazia mais nada na vida além de cuidar da própria aparência, a cada dia sua vitalidade aumentava e aos poucos seu corpo realmente foi ganhando massa muscular e ficando cada vez mais torneado. Tanto o personal quanto a entourage calaram a boca diante da sua transformação, tomando-a como um exemplo vivo a ser seguido. Para comemorar suas recentes estéticas de neotrintona, resolveu dar uma festa em sua mansão contratando a melhor promoter para selecionar uma lista só de convidados ricos e famosos, chamando também profissionais para organizar os serviços de decoração de uma renomada loja e o serviço do mais caro e prestigiado restaurante da cidade. Tudo tinha de estar nos trinques para que a sociedade reconhecesse seu rejuvenescimento.

    Nessa festa foi apresentada a um jovem ator de TV, apaixonando-se imediatamente e ficando e ficando disposta a conquistá-lo a qualquer custo. Para tanto, se esforçaria ainda mais para aprimorar o processo de sua transformação física. Quando conseguiu a aparência exterior que desejava e realmente poderia se passar por uma mulher bem mais jovem, tratou de bolar uma maneira de se aproximar do ator. Imaginando que o já conhecido "detalhe" de sua verdadeira idade não atrapalharia sua intenção de jogar as tranças para o jovem ator, marcou um jantar íntimo que imediatamente foi aceito. E que melhor motivo teria ela para passar os próximos dias se produzindo para fisgar o galã, não é mesmo?

    Eis que chega a grande noite. Tão desacostumada estava em cortejar um homem que esqueceu de comprar preservativos, acreditando que talvez devesse rolar um namoro antes de consumar o ato. Sim, ela ainda era old school em matéria de sexo. Estava esplendorosa num vestido ousado que mostrava um par de seios firmes e pernas vigorosas para galã nenhum botar defeito. E ele não botou nenhum defeito mesmo, pois depois do jantar à luz de velas e Barry Manilow como trilha sonora, avançou o sinal, a carregou para o sofá e lá mesmo transaram cegos de desejo. A notícia do caso entre a "milionária sem idade" e o jovem ator ambicioso causou comoção nas redes sociais. "Ele está com ela pelo dinheiro", diziam uns. "Ela está com ele para aparecer na mídia", diziam outros. A verdade é que realmente ambos estavam apaixonados e não demorou a exibirem alianças de noivado, para sofrimento dos invejosos. A última notícia era que o casal radiante anunciava aos quatro ventos a festa nababesca de casamento já marcada para dali a uma semana, quando então todos os movimentos seriam transmitidos ao vivo pelas redes sociais, além de uma entrevista exclusiva que seria concedida a um famoso programa de TV.

    Nessas alturas dos acontecimentos já moravam juntos, mas pensando bem, um casamento nos moldes hollywoodianos seria sempre um acontecimento para "normaloides" e suas miseráveis vidinhas, não é mesmo? Se consideravam até generosos em dividir com pobres infelizes suas ricas aventuras amorosas. A festa foi sucesso de público em todos os veículos de comunicação, comentários sobre o milionário vestido branco da noiva, o bolo de cinco andares, a festa com a presença de políticos de altos cargos administrativos e celebridades do mundo artístico fizeram a alegria dos fofoqueiros de plantão, que se referiam a eles como "o mais bizarro casal feliz do mundo".

    Um dia lá, ambos conversando sobre o futuro dos dois, o jovem ator confessa seu maior desejo: queria envelhecer precocemente para provar que a amava a despeito da diferença de idade. A emocionada socialite tão impressionada ficou com aquele declaração que entendeu perfeitamente a vontade de ser quem não era e se comprometeu a realizar quantas cirurgias o maridinho quisesse para atingir seu objetivo de se transformar num vigoroso septuagenário. Imaginaram que o fato não iria atrapalhar a carreira de ator, mesmo porque, haveriam de contratá-lo para papéis mais relevantes por conta de sua transformação física. AS cirurgias de implantes de pelancas e rugas no rosto foram um sucesso, a mídia aguardava ansiosamente a primeira foto do novo velho homem. Fofoqueiros comentavam que os papéis deles foram trocados externamente, mas que na realidade seriam sempre uma idosa papa-anjo e seu garotão golpe do baú. Mas a torcida dos do contra não vingou. Lá estavam eles na capa de uma famosa revista de fofocas posando felizes dentro de seus novos corpos, onde ela também exibia orgulhosa uma recente e vitoriosa plástica nas mãos.

    Programas diários de TV tratavam a saga dos dois como "a esposa anciã jovem e seu jovem marido velho". Médicos e psiquiatras discutiam e duvidavam da possibilidade daquele quadro clínico continuar dando certo. Parecia que todos aguardavam a tragédia anunciada de que futuramente a milionária poderia virar uma múmia viva e seu marido aventureiro um Liberace às avessas. Diante de tantas conquistas estéticas ninguém mais se atrevia a fazer previsões, mesmo porque entre eles a vida parecia o conto de fadas mais incomum que se poderia imaginar.

    Numa viagem de férias ao exterior, onde ninguém os conhecia, surgiu a ideia de renovarem radicalmente os votos mútuos de amor eterno. Dessa vez iriam trocar de sexo. Ela queria experimentar viver sendo um homem jovem e ele se transformaria no que ela fora no começo de tudo: uma mulher vetusta. As cirurgias do transplante de pênis nela e a castração do órgão genital dele foram um sucesso, agora cada um seguiria com suas doses de testosterona e estrogênio. Passariam um tempo se convalescendo até voltarem ao país como se nada houvesse e os fofoqueiros que se virassem para explicar o inexplicável. Haja dinheiro para custear os milagrosos poderes das plásticas com os melhores cirurgiões do planeta. No caso deles valeu cada milhão de dólar pago. O que aqueles dois não faziam para conseguir realizar seus sonhos mais exóticos, não é mesmo? Ambos se amariam não importasse quem era quem dentro daqueles corpos. Nas festas, eram observados com espanto e todos comentavam a impressionante mudança física, tão bem-feita que até os amigos mais chegados surpreendiam-se, ali estava o exemplo de que quando dois querem um não briga.

    Mas a definitiva prova de amor ainda não se completara. Eles queriam um filho, e como já era quase impossível dizer quem era o macho e quem era a fêmea do casal, optaram por contratar uma barriga de aluguel e cobriram todas as despesas da moça recrutada para realizar o grande sonho. E o que não faltou foram pretendentes ao cargo. Escolheram uma jovem de vinte anos, bonita e simples, acanhada e insegura, limpa e educada, perfeita para o que pretendiam. Para ela, que não conhecia a história do casal, não entendia o que pretendia aquele jovem marido casado com uma velha que não lhe podia dar filhos. Ouvia comentários sobre a possível troca de sexo que teria acontecido entre eles, mas as plásticas eram tão bem-feitas que a moça duvidava do boato e seguia com a gravidez, agora já bem avançada. A ex-septuagenária-atual-marido se percebia mais carinhosa com a dona da barriga e não sabia se fora acometida/o do espírito maternal ou da proteção normal que um macho dedica à sua prole. Por outro lado, o neosseptuagenário-atual-esposa também tratou de oferecer apoio, os resquícios de um ex-macho também se faziam presentes. Resumindo: para o bem da criança que iria nascer, formou-se um triângulo amoroso platônico e a convivência gerou uma aura mágica entre eles, sendo que brevemente a moça daria à luz e era preciso planejar como seria o futuro da família. Sem perder tempo e para a felicidade geral, o casal achou por bem convidar a moça para morar definitivamente com eles, o que ela, agradecida, aceitou no ato. Os laços afetivos haviam se tornado tão fortes que o esperado seria continuarem convivendo na paz e no amor de um ménage à trois.

    Como esperado e desejado, o bebê nasceu lindo e forte trazendo o que se poderia traduzir como a mais completa felicidade que um "casal de três" poderia imaginar. A mãe biológica tinha leite em abundância e cada amamentação era sempre registrada com centenas de fotos, filmes e mil sorrisos. Aconteceu que quando o bebê saiu da barriga, o pediatra ficou surpreso mas, vindo de quem vinha, achou "normal" tais características, e na hora de preencher o primeiro documento da criança escreveu no quesito sexo: hermafrodita.

    A festa do batizado foi noticiada com toda a pompa e circunstância. Lá estavam felizes: o papai que era a mamãe, a mamãe que era o papai e a mamãe dois, que pariu o baby.

    - Como é o nome do neném? - perguntou um jornalista.

    E os três juntos responderam:

    - Maria José. Ou José Maria. Tanto faz.


Conto escrito pela cantora, compositora e escritora Rita Lee e retirado do livro Dropz, Globo Livros, 1ª Edição, 2017.