quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Baião de Dois

    Naquele dia acordou, se olhou no espelho e viu uma mulher que não era ela, mas era ela mesma.

    O calendário marcava setenta anos de idade, mas aquela figura que a observava do outo lado do vidro não tinha mais que trinta. Rugas, manchas senis, o "código de barras" ao redor da boca, a pele flácida das bochechas, toda a decadência física que vem com a idade havia desaparecido dando lugar a um rosto jovem e tonificado. O que uma série de poderosas plásticas não foi capaz de resolver, não é mesmo?

    Ficou lá se deliciando com sua nova aparência facial que mal notava o resto do corpo ainda padecendo de envelhecimento normal que acometia toda septuagenária. Foi constatando essa dicotomia física que teve a ideia de se matricular numa academia de ginástica. "Se a idade está na cabeça, então o resto do corpo será comandado por ela. Vou malhar até ficar enxuta." Além do que, uma plástica geral no corpo inteiro já lhe adiantaria uns bons vinte anos a menos. Quando punha uma ideia na cabeça não desistia tão cedo, e o melhor de tudo é que tinha dinheiro de sobra para realizar suas excentricidades, além de também comprar a falsa adulação do bando de puxa-sacos que a rodeava.

    Já recuperada das trocentas cirurgias que fizera, seu personal achou que a missão de fazer o corpo de uma ex-setentona/neocinquentona parecer com o de uma trintona seria quase missão impossível. Para se fazer de imprescindível e, claro, receber uma boa grana, a treinaria pesado sete dias por semana, duas vezes ao dia e "dessa maneira a velha vai logo pedir arrego, desistindo de querer o que jamais voltará a ser". Só que não. A solteirona tinha uma força de vontade descomunal e, como não fazia mais nada na vida além de cuidar da própria aparência, a cada dia sua vitalidade aumentava e aos poucos seu corpo realmente foi ganhando massa muscular e ficando cada vez mais torneado. Tanto o personal quanto a entourage calaram a boca diante da sua transformação, tomando-a como um exemplo vivo a ser seguido. Para comemorar suas recentes estéticas de neotrintona, resolveu dar uma festa em sua mansão contratando a melhor promoter para selecionar uma lista só de convidados ricos e famosos, chamando também profissionais para organizar os serviços de decoração de uma renomada loja e o serviço do mais caro e prestigiado restaurante da cidade. Tudo tinha de estar nos trinques para que a sociedade reconhecesse seu rejuvenescimento.

    Nessa festa foi apresentada a um jovem ator de TV, apaixonando-se imediatamente e ficando e ficando disposta a conquistá-lo a qualquer custo. Para tanto, se esforçaria ainda mais para aprimorar o processo de sua transformação física. Quando conseguiu a aparência exterior que desejava e realmente poderia se passar por uma mulher bem mais jovem, tratou de bolar uma maneira de se aproximar do ator. Imaginando que o já conhecido "detalhe" de sua verdadeira idade não atrapalharia sua intenção de jogar as tranças para o jovem ator, marcou um jantar íntimo que imediatamente foi aceito. E que melhor motivo teria ela para passar os próximos dias se produzindo para fisgar o galã, não é mesmo?

    Eis que chega a grande noite. Tão desacostumada estava em cortejar um homem que esqueceu de comprar preservativos, acreditando que talvez devesse rolar um namoro antes de consumar o ato. Sim, ela ainda era old school em matéria de sexo. Estava esplendorosa num vestido ousado que mostrava um par de seios firmes e pernas vigorosas para galã nenhum botar defeito. E ele não botou nenhum defeito mesmo, pois depois do jantar à luz de velas e Barry Manilow como trilha sonora, avançou o sinal, a carregou para o sofá e lá mesmo transaram cegos de desejo. A notícia do caso entre a "milionária sem idade" e o jovem ator ambicioso causou comoção nas redes sociais. "Ele está com ela pelo dinheiro", diziam uns. "Ela está com ele para aparecer na mídia", diziam outros. A verdade é que realmente ambos estavam apaixonados e não demorou a exibirem alianças de noivado, para sofrimento dos invejosos. A última notícia era que o casal radiante anunciava aos quatro ventos a festa nababesca de casamento já marcada para dali a uma semana, quando então todos os movimentos seriam transmitidos ao vivo pelas redes sociais, além de uma entrevista exclusiva que seria concedida a um famoso programa de TV.

    Nessas alturas dos acontecimentos já moravam juntos, mas pensando bem, um casamento nos moldes hollywoodianos seria sempre um acontecimento para "normaloides" e suas miseráveis vidinhas, não é mesmo? Se consideravam até generosos em dividir com pobres infelizes suas ricas aventuras amorosas. A festa foi sucesso de público em todos os veículos de comunicação, comentários sobre o milionário vestido branco da noiva, o bolo de cinco andares, a festa com a presença de políticos de altos cargos administrativos e celebridades do mundo artístico fizeram a alegria dos fofoqueiros de plantão, que se referiam a eles como "o mais bizarro casal feliz do mundo".

    Um dia lá, ambos conversando sobre o futuro dos dois, o jovem ator confessa seu maior desejo: queria envelhecer precocemente para provar que a amava a despeito da diferença de idade. A emocionada socialite tão impressionada ficou com aquele declaração que entendeu perfeitamente a vontade de ser quem não era e se comprometeu a realizar quantas cirurgias o maridinho quisesse para atingir seu objetivo de se transformar num vigoroso septuagenário. Imaginaram que o fato não iria atrapalhar a carreira de ator, mesmo porque, haveriam de contratá-lo para papéis mais relevantes por conta de sua transformação física. AS cirurgias de implantes de pelancas e rugas no rosto foram um sucesso, a mídia aguardava ansiosamente a primeira foto do novo velho homem. Fofoqueiros comentavam que os papéis deles foram trocados externamente, mas que na realidade seriam sempre uma idosa papa-anjo e seu garotão golpe do baú. Mas a torcida dos do contra não vingou. Lá estavam eles na capa de uma famosa revista de fofocas posando felizes dentro de seus novos corpos, onde ela também exibia orgulhosa uma recente e vitoriosa plástica nas mãos.

    Programas diários de TV tratavam a saga dos dois como "a esposa anciã jovem e seu jovem marido velho". Médicos e psiquiatras discutiam e duvidavam da possibilidade daquele quadro clínico continuar dando certo. Parecia que todos aguardavam a tragédia anunciada de que futuramente a milionária poderia virar uma múmia viva e seu marido aventureiro um Liberace às avessas. Diante de tantas conquistas estéticas ninguém mais se atrevia a fazer previsões, mesmo porque entre eles a vida parecia o conto de fadas mais incomum que se poderia imaginar.

    Numa viagem de férias ao exterior, onde ninguém os conhecia, surgiu a ideia de renovarem radicalmente os votos mútuos de amor eterno. Dessa vez iriam trocar de sexo. Ela queria experimentar viver sendo um homem jovem e ele se transformaria no que ela fora no começo de tudo: uma mulher vetusta. As cirurgias do transplante de pênis nela e a castração do órgão genital dele foram um sucesso, agora cada um seguiria com suas doses de testosterona e estrogênio. Passariam um tempo se convalescendo até voltarem ao país como se nada houvesse e os fofoqueiros que se virassem para explicar o inexplicável. Haja dinheiro para custear os milagrosos poderes das plásticas com os melhores cirurgiões do planeta. No caso deles valeu cada milhão de dólar pago. O que aqueles dois não faziam para conseguir realizar seus sonhos mais exóticos, não é mesmo? Ambos se amariam não importasse quem era quem dentro daqueles corpos. Nas festas, eram observados com espanto e todos comentavam a impressionante mudança física, tão bem-feita que até os amigos mais chegados surpreendiam-se, ali estava o exemplo de que quando dois querem um não briga.

    Mas a definitiva prova de amor ainda não se completara. Eles queriam um filho, e como já era quase impossível dizer quem era o macho e quem era a fêmea do casal, optaram por contratar uma barriga de aluguel e cobriram todas as despesas da moça recrutada para realizar o grande sonho. E o que não faltou foram pretendentes ao cargo. Escolheram uma jovem de vinte anos, bonita e simples, acanhada e insegura, limpa e educada, perfeita para o que pretendiam. Para ela, que não conhecia a história do casal, não entendia o que pretendia aquele jovem marido casado com uma velha que não lhe podia dar filhos. Ouvia comentários sobre a possível troca de sexo que teria acontecido entre eles, mas as plásticas eram tão bem-feitas que a moça duvidava do boato e seguia com a gravidez, agora já bem avançada. A ex-septuagenária-atual-marido se percebia mais carinhosa com a dona da barriga e não sabia se fora acometida/o do espírito maternal ou da proteção normal que um macho dedica à sua prole. Por outro lado, o neosseptuagenário-atual-esposa também tratou de oferecer apoio, os resquícios de um ex-macho também se faziam presentes. Resumindo: para o bem da criança que iria nascer, formou-se um triângulo amoroso platônico e a convivência gerou uma aura mágica entre eles, sendo que brevemente a moça daria à luz e era preciso planejar como seria o futuro da família. Sem perder tempo e para a felicidade geral, o casal achou por bem convidar a moça para morar definitivamente com eles, o que ela, agradecida, aceitou no ato. Os laços afetivos haviam se tornado tão fortes que o esperado seria continuarem convivendo na paz e no amor de um ménage à trois.

    Como esperado e desejado, o bebê nasceu lindo e forte trazendo o que se poderia traduzir como a mais completa felicidade que um "casal de três" poderia imaginar. A mãe biológica tinha leite em abundância e cada amamentação era sempre registrada com centenas de fotos, filmes e mil sorrisos. Aconteceu que quando o bebê saiu da barriga, o pediatra ficou surpreso mas, vindo de quem vinha, achou "normal" tais características, e na hora de preencher o primeiro documento da criança escreveu no quesito sexo: hermafrodita.

    A festa do batizado foi noticiada com toda a pompa e circunstância. Lá estavam felizes: o papai que era a mamãe, a mamãe que era o papai e a mamãe dois, que pariu o baby.

    - Como é o nome do neném? - perguntou um jornalista.

    E os três juntos responderam:

    - Maria José. Ou José Maria. Tanto faz.


Conto escrito pela cantora, compositora e escritora Rita Lee e retirado do livro Dropz, Globo Livros, 1ª Edição, 2017.

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