quinta-feira, 29 de setembro de 2022

As almofadas de Dona Lu

Conheci há tempos uma senhora que se chamava Dona Lucinda. Para o marido era eternamente Lu e para os da roda, Dona Lu.

Dona Lucinda veio ao mundo com uma arte ingênua e inspiração irresistível de fazer almofadas, exatamente no tempo em que era requintado o seu uso. Tinha a mania desse inútil pertence. Espalhada na vastidão de sua casa sem criança, Dona Lu contava, rentes, afora, os dois monumentais e bem estofados e bem enfronhados do leito conjugal.

De cima das cadeiras e nos encostos, na assoalho, em todas as direções, na entrada e na saída, tolhendo os passos, e atrapalhando as pernas, estiravam-se, quadravam-se, ou arredondavam-se as almofadas da boa senhora.

Mania interessante que me deixou sempre na dúvida de como a gente se comporta entre elas. Nunca soube ao certo se era para a gente sentar em cima ou ajeitar o corpo cansado; ou se eram  simplesmente para deleite dos olhos. Visitas prudentes, às vezes, antes de se sentarem, punham a almofada no colo.

Tudo quanto caísse do céu por descuido e passasse pelos olhos da excelente senhora, seus dedos ágeis logo transformavam. Retalhos de seda. Vestidos velhos descosidos, ticos de renda, véus usados de noiva, penas de galinha, palmilhas de sapatos velhos. Canhões de meias imprestáveis e até cabelo cortado das amigas, Dona Lu, com sua mania excelsa e habilidade inata, transformava em almofada, tradicional, clássica ou modernista. Era uma inspiração.

Não havia noiva que se casasse, amiga que se lembrasse de fazer anos, casal que festejasse bodas de prata, que não recebessem, para enfeite, deleite ou repouso, uma almofada de Dona Lu. Na teimosa abstinência dos filhos, dedicava-se às almofadas.

O marido conformou-se com a mania (com que não se conformam os maridos depois de 10 anos de vida conjugal?) e passava os dias no escritório porque não tinha em casa onde pôr os pés.

Conheci uma outra senhora, cujo maior pesar era não possuir tantas almofadas como Dona Lu.

Bem sabia ela que o marido da amiga não tinha em casa dois palmos desimpedidos por onde arrastasse descuidado os chinelos caseiros. Tinha o escritório, pensava. Fosse para o escritório.

Com franqueza, depois de dez anos de vida conjugal, o marido só tem mesmo um lugar seguro, apropriado, que lhe vai bem e onde não atrapalha - o escritório.

A amiga relava-se silêncio, no subconsciente. Passou a decorar o feitio, o modelo e a tática de Dona Lu. Logo mais começou a fabricação. Discreta no começo, ganhou impulso e foi longe, querendo mesmo ultrapassar a amiga.

No dia em que terminou a vigésima, discretamente deu uma festinha às pessoas de sua roda mais íntima. Competição sempre teve força e o fabrico continuou. O marido, amigo da paz doméstica, desistiu do dique que tentou opor à avalanche.

Como não tinha escritório fora do lar, diminuiu as passadas pela casa. Fazia voltas prudentes e cautelosas para alcançar um objeto mais afastado.

Pensou no desquite, pensou numa demorada excursão pela selva amazônica, onde não houvesse almofadas, pensou num incêndio, num terremoto e outras muitas coisas.

Afinal, pela força da inação, das pernas e da vontade, acabou paralítico numa cadeira de rodas, rodeado de almofadas.


Conto de Cora Coralina retirado do livro O Tesouro da Casa Velha, seleção de Dalila Teles Veras; Global Editora, São Paulo, 1989.

Nenhum comentário:

Postar um comentário