segunda-feira, 30 de outubro de 2023

E se... Não houvesse fronteiras?

Do espaço elas não são vistas, mas estão entre as criações humanas mais antigas e, desde sempre, foram impostas pela força e pelo poder, motivando disputas sangrentas, algumas irreversíveis. Elas reúnem e afastam povos. Mas e se, de repente, eliminássemos as fronteiras entre os países? Como seria o mundo sem estrangeiros?

A primeira ideia que vem à cabeça é um mundo de migrantes, onde os homens se deslocariam livremente em busca de melhores oportunidades e qualidade de vida. Segundo André Martins, professor de Geografia regional e política da Universidade de São Paulo (USP), o nascimento dos países se deu por causa da agricultura. A fixação do homem na terra ocorreu há cerca de 10 mil anos. Em torno dos campos férteis foram naturalmente surgindo povoados, vilas, cidades e depois países. "Abolidas as fronteiras, veríamos grandes movimentos migratórios motivados, principalmente, pela busca de emprego. Pois, se no passado a posse da terra era necessária para prover a subsistência, hoje o capital e a oferta de trabalho  assumiriam esse papel", diz. Seria comum ver latino-americanos indo para os Estados Unidos e africanos em busca de emprego na Europa. Legalmente.

"É provável que sem fronteiras, em pouco tempo, estivéssemos todos falando o mesmo idioma e andando com dólares no bolso", diz Alexandre Rochman, coordenador do curso de relações internacionais da Fundação escola de Sociologia e Política, em São Paulo. Não é uma situação tão irreal para quem mora nas grandes cidades, está acostumado às palavras em inglês e segue as oscilações da moeda americana, como se disso dependesse a felicidade.

A economia sofreria mudanças, cujas tendências já podem ser percebidas. De acordo com Rochman, a Área de Livre Comércio  das Américas e a União Europeia refletem esse espírito. "A formação de mercado comuns é uma forma de passar por cima das fronteiras econômicas", diz. Sem barreiras e taxas alfandegárias o comércio e o turismo seriam bastante beneficiados.

Se alguma integração vem ocorrendo do ponto de vista cultural e econômico, no âmbito político as coisas seriam diferentes. A ausência de fronteiras e o fim das nações exigiriam novo conceito de cidadania. "Hoje, o local de nascimento é determinante para estabelecer os direitos do homem. Seriam necessárias novas leis e organismos supranacionais para garantir os direitos e deveres desses cidadãos do mundo", afirma Rochman. A Comunidade Europeia já discute uma proposta de Constituição comum.

"Teríamos de aprender a viver em uma grande nação com religiões, etnias e culturas diferentes", diz Martins. Para ele, se o fim das nações não for um processo de integração e de acordos  internacionais, seriam mantidas as divergências que hoje motivam conflitos.

Se eliminar as fronteiras não colocaria ponto final às guerras, em alguns casos repararia uma situação artificial criada pela sanha expansionista e imperialista dos europeus, durante o século 19. É o caso da África e do Oriente Médio. "Nos dois casos, não foram levados em conta os interesses das populações locais, e por isso existem tantas guerras nessas regiões", diz Martins.

Mas há quem veja na ausência das fronteiras um avanço rumo a uma sociedade baseada menos nos poderes de governos e instituições e mais nos direitos básicos do cidadão. Nada de políticos, nada de tribunais, nada de polícia, nada de ladrão. Parece letra de música do Raul Seixas, mas não é. Este é o mundo sem países, de acordo com Edson Passetti, professor do Núcleo de Estudos de Sociedade Libertária, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. "Viveríamos o idela da vida em comum em harmonia", diz.


Texto de Fernando Neves retirado da Revista Superinteressante, Edição 184, Janeiro 2003, Editora Abril, São Paulo.

O que é a Interpol?

Com sede na cidade de Lyon, na França, a Interpol é a polícia internacional encarregada de crimes que não se restringem às fronteiras de um só país. Com 181* países filiados, é a segunda maior organização internacional, atrás apenas da ONU, com 191** países membros. Sua importância é cada vez maior com a chamada "globalização do crime" que opera por meio de redes terroristas, cartéis de tráfico de drogas e quadrilhas de contrabando de armas. 

Mas, ao contrário do que muitos filmes fazem supor, os agentes da Interpol não são "detetives universais" dotados de imunidade diplomática e com poderes de aprisionar pessoas em qualquer ponto do planeta. A organização não pode se sobrepor aos sistemas legais de cada país, nem possui um quadro próprio de policiais ao redor do mundo. No Brasil, por exemplo, seu efetivo é composto de funcionários da própria Polícia Federal. 

"A Interpol atua basicamente em três vertentes: a área da inteligência, que é a busca dos dados em si, a coordenação de operações policiais em um ou mais países e a busca de informações para uma investigação já iniciada por outra polícia", diz o chefe da Interpol no Brasil, Washington Melo***. 

Seu órgão máximo, a Assembleia Geral, reúne-se uma vez por ano para traçar estratégias de combate aos três tipos mais comuns de criminosos internacionais: aqueles que agem em mais de um país, como os contrabandistas; aqueles que não viajam, mas cujos crimes afetam mais de um país, como falsificadores de obras de arte e aqueles que cometem o crime num país e fogem para outro. Toda a sua estrutura é mantida pelas contribuições de cada país filiado, de acordo com sua capacidade financeira. 

A história da organização começa em 1923, quando o chefe da polícia de Viena, Johann Schober, inaugurou na Áustria, junto com outros 14 países, a primeira sede da Polícia Internacional. A iniciativa de Schober vinha tentar coibir a facilidade com que os criminosos da Europa, na época, escapavam da lei ao atravessarem a fronteira em direção a um país vizinho. Quando a Alemanha de Adolf Hitler anexou a Áustria, em 1938 (junto com os arquivos da Interpol), suas atividades foram suspensas. Somente em 1946 a polícia internacional foi recriada, com sede em paris, onde permaneceu até 1989, quando foi transferida para a atual sede em Lyon. Seu nome oficial é Organização Internacional de Polícia Criminal.


Pesquisa de Márcio Ferrari; Revista Superinteressante, Janeiro 2003, Edição 184, Editora Abril, São Paulo.

*195 países em setembro de 2023; **193 membros em setembro de 2023; *** atual (outubro de 2023) chefe da Interpol no Brasil, Rodrigo Carnevale; (Valdecy Urquiza - São Luís - MA. -  é vice-presidente da Interpol).

sábado, 28 de outubro de 2023

Admirável Mundo Novo

Futurismo ou ficção científica em 1931 revela a face hegemônica da sociedade atual e serve como alerta para os tempos que virão


Em seu apocalíptico romance, que dá título a essa reflexão, o escritor inglês Aldous Huxley imaginou uma sociedade distópica, formada por pessoas programadas em laboratório, adestradas para cumprir seu papel em uma sociedade de castas biologicamente definidas já no nascimento. O ano seria 2540, o grande ídolo é empreendedor norte-americano Henry Ford, e os sistemas de produção em massa criada pelo empresário louvam o avanço da técnica da linha de montagem e da produção em série. Nesse universo, a música, a pintura e a literatura servem apenas para referendar e solidificar o conformismo.

Admirável mundo novo também é nosso. Descobrimos água em Marte, nossas infovias levam informações a uma velocidade impensável por todo o planeta, nos comunicamos daqui do Brasil com alguém em Kanpur, na Índia, como se fosse nosso vizinho de porta. Aprendemos pela internet, compramos pela internet, comemos com um click na internet, amamos pela internet, aprendemos como matar e como morrer pela internet. Pequenos aparelhinhos luminosos nos dizem aonde ir, o que falar, quem odiar, como amar, quantos amigos podemos ter e como apagar uma pessoa da sua vida a um simples delete.

Sabemos tanta coisa: trocamos de coração, fígado, rins e até a face se for preciso.

Nossos livros viraram e-books e são consumidos na hora que quisermos em nossa biblioteca digital. Se a memória é pouca, deletamos aqueles de que menos gostamos ou até os que ainda não temos. Nossas playlists musicais não nos deixam em silêncio um minuto. Temos excesso de comida brotando em rincões e carros tão velozes que nunca atingiremos sua potência total. Técnicas avançadas em clareamento dental nos colocam um sorriso magnífico. E assim seguimos, dando um touch aqui e ali. Como somos sofisticados.


A distopia total


Também apoiamos a construção de muros que impeçam que indivíduos menos agraciados venham a se imiscuir em nossa cultura. E para que tudo permaneça como está, matamos aqueles que são diferentes, enquanto continuamos operando nossas máquinas para que não se rompa o sistema de produção. Evoluímos tanto que já nem precisamos nos comunicar verbalmente. Mas ainda interagimos através de mensagens. A comunicação dá-se por meio de sinais e carinhas/bonequinhos que nos representam. E, quando algo novo se prenuncia nesse nosso admirável mundo, apelamos para o retrocesso e as forças de segurança. Que nada mude de lugar. Assim caminhamos nessa nova humanidade.

Mas fiquemos espertos, porque a distopia atual não nos permite o controle. A fome domina nações inteiras, crianças são mantidas presas porque seus pais decidiram ir em busca de uma vida melhor, guerras aniquilam populações, doenças já erradicadas começam a se espalhar assustadoramente. São as potencialidades autoritárias do próprio mundo que criamos. E basta que um único homem dê ordens para que alguém aperte o temível botão.

É preciso estarmos atentos e fortes.


Texto de Maria Beatriz retirado da Revista Língua Portuguesa - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, Ano 8, Edição 72, Agosto/Setembro 2018.

Novos meios de se comunicar

Ele veio para ficar: o letramento midiático faz parte das propostas da BNCC e tem entusiasmado professores e alunos


Em tempos em que ninguém mais desgruda do celular, é necessário discutir o letramento midiático. O pesquisador americano e professor da University of Souther California, Henry Jenkins, cunhou o conceito de letramento midiático, que, segundo ele, consiste em explicar o fato de que diversas mídias estão se utilizando da internet para manter-se vivas e atualizadas.

Mas em um país onde três em cada dez pessoas são analfabetas funcionais, falar em letramento requer cuidados, porque saber ler e escrever tem se revelado condição insuficiente para responder adequadamente às demandas contemporâneas.

Para o doutor em Linguística e apaixonado por tecnologia Alfredo Gutierrez, letramento midiático não é algo que se pode ter ou não ter. "Eu considero que é um processo já enraizado na sociedade de informação. E há uma diversidade tal impensável até há poucos anos. Porque há aqueles que vão para a internet apenas buscar entretenimento, outros para se manter informados, e há os que querem disseminar suas ideias, influenciar a opinião alheia. Entre meus alunos, há muitos youtubers, influencers mesmo. E a grande questão que se impõe é como isso se dá, o que está sendo propagado", considera, lembrando que o grande instrumento que os consumidores têm em mão é o smartphone. "Com esse aparelhinho em mão, eles detêm um poder incalculável, e as escolhas são imensas, complexas. E aí está o grande perigo, porque surgem as fake news, a persuasão sem limites", explica.

Gutierrez utiliza a prática em sala de aula: "Uma das atividades que introduzi é produzirem e interpretarem mensagens de twitters. Em 280 caracteres têm de codificá-los e decodificá-la.


CARÁTER SOCIOCULTURAL


O escritor e especialista em Educomunicação Abrahão Costa de Freitas é enfático: "De acordo com o Grupo de Nova Londres, as novas mídias e as ferramentas tecnológicas do mundo contemporâneo demandam práticas de uso da linguagem voltadas para a esfera da comunicação digital. A escola já não é a única agência de letramento de que dispomos. Por essa razão, autores como Jay Lemke - que pesquisa o ensino de ciências e novas tecnologias - e Manuel Castells - doutor em Sociologia, professor de comunicação e planejamento urbano e regional e pesquisador dos efeitos da informação sobre a economia, a cultura e a sociedade em geral - enfatizam o caráter sociocultural das práticas de letramento, insistindo que o letramento multimidiático, assim como o letramento multissemiótico, é um imperativo de uma sociedade na qual as práticas letradas são determinadas por um momento sóci-histórico no qual a polifonia e o plurilinguismo se ampliam no espaço público das tecnologias eletrônicas".

Alfredo Gutierrez faz um alerta: "É preciso que se discuta isso, urgentemente. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) incentiva, por exemplo, o uso do celular, do smartphone, em sala de aula. Só não ensina o pulo do gato, não diz como nos apropriarmos dessa estratégia, como trabalhamos esse letramento midiático que se impõe".


Texto retirado da Revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, da coluna Reflexão da Redação, Editora Escala, São Paulo, Ano 8, Edição 72, Agosto/Setembro 2018.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Que tempos são esses?

Os dias estão sombrios. Em todo o planeta, o ódio tem mostrado sua face intransigente. E ela parece com a nossa! Isso é o que, de fato, assusta. O poder da morte e da destruição ao alcance da nossa mão. A um click, a uma nota assinada por algum  poderoso mandatário...

No centro de tudo, a Palavra.

Tenho visto brigas completamente desnecessárias no trânsito, homens e mulheres que dão espaço a uma verdadeira entidade guerreira graças a uma ultrapassagem indevida ou a uma simples buzinada. Jovens e adolescentes que se agridem pelas redes sociais. Políticos que usam o verbo para separar nações, apontar o dedo para cidadãos, enaltecer guerras.

No centro de tudo, a Palavra.

Diante dos temores da nossa época - e de todas as épocas - é a palavra que define o que somos. Na era da disseminação fácil, rápida e aleatória, notícias falsas podem produzir o andamento da história. Ou o contrário dela. Defender uma ideia, mesmo que levemente, pode determinar sua exclusão de um grupo social ou da própria família.

No centro de tudo, a Palavra.

A vida está sombria. E aquele que acha graça em uma brincadeira de criança, ou se delicia com um inocente sorvete, é visto com reservas, taxado de desvairado ou desvairada, com certeza falta-lhe um parafuso.

No centro de tudo, a Palavra.

Dos livros sagrados, da interpretação do que está escrito nessas obras, sempre em nome de Deus, se formam milícias, exércitos, alguém entra em uma mesquita e atira em uma centena de pessoas. Não sem antes deixar claro em vídeo o que vai em sua mente. Ao vivo. Ou um jovem escreve uma mensagem enigmática e assassina seus antes colegas da sua antiga escola. Pela dor que as palavras produziram em sua alma.

No centro de tudo, a Palavra.

Os corações estão sombrios. E é preciso urgentemente que se dê uma nova ordem à ordem social. Que se escancarem os risos, as canções, as histórias encantadas, as lendas... Que venham as fadas, os duendes, elfos, bruxos e bruxas nos ensinarem, novamente, a razão da vida. E que isso não seja um pecado.

No centro de tudo, a Palavra.

Mas, como disse o grande escritor e dramaturgo Bertold Brecht, que fez da indignação com as sombras sua bandeira: "Que tempos são esses, quando falar sobre flores é quase um crime?"


Texto de Jussara Saraíba retirado da revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Ano 8 nº 76, Editora Escala, São Paulo, Abril/Maio 2019.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Zazá... Patsy... Pagu

Ela é até hoje um assombro nos meios literários. E uma grande esquecida. A multifacetada Patrícia Rehder Galvão foi militante política, escritora, jornalista, diretora de teatro, poeta, feminista e um dos grandes nomes do movimento modernista no Brasil, mesmo sem ter participado da Semana de Arte Moderna - à época, tinha apenas 12 anos.

Pagu (1910 - 1962) teve sua vida marcada por uma pulsão ardente de contemporaneidade e desejos de mudar o mundo. Varrida para debaixo do tapete da história da literatura brasileira por décadas, sua imagem era propagada como uma mulher louca, normalmente relacionada às que fogem aos padrões de comportamentos impostos pela sociedade machista. Mas a loucura de Pagu pedia uma nova concepção de vida, com sua escrita engajada.

A trajetória da garota, a terceira de quatro irmãos, filhos de Thiers Galvão de França, advogado e jornalista, e de Adélia Rehder Galvão, começa em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Aos dois anos, muda-se com a família para a capital paulista. Morou na Liberdade, Brás, Aclimação, Bela Vista e em uma chácara no então município de Santo Amaro.

Ainda era Zazá, mas já dona de uma personalidade ímpar, dando uma banana à sociedade da época: fumava na rua, dizia palavrões, deixava seus cabelos revoltos ao tempo, eriçados, usava roupas transparentes... Começou cedo a escrever. Aos 15 anos, a poeta, que estudava para ser professora na Escola Normal, colaborava com o Brás Jornal, sob o codinome Patsy. No mesmo ano, frequenta, além da Escola Norma, o Conservatório Dramático e musical de São Paulo, no qual lecionavam Mário de Andrade e Fernando Mendes de Almeida. O apelido Pagu surgiu com o poeta Raul Bopp, segundo seu biógrafo Augusto de Campos. À época, o escritor sugeriu que ela usasse um nome literário com as primeiras sílabas de seu nome e sobrenome. Mas houve um engano, pois ele pensou que o nome dela fosse Patrícia Goulart, já era tarde: Bopp escreveu um poema, intitulado "O coco de Pagu", e o pseudônimo acabou virando sua assinatura.


VIDA LOUCA E CADEIA


Se, em 1922, era muito nova para participar de movimentos culturais, em 1929 aproxima-se do grupo de intelectuais paulistanos que estava à frente do movimento modernista brasileiro. Com 19 anos, conheceu Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, que eram casados, e foi apresentada por eles ao movimento antropofágico, passando a colaborar na Revista de Antropofagia. Passa a viver praticamente com o casal e acaba tendo um romance com Oswald, que se separa de Tarsila em 1930. Um ano depois, Pagu e Oswald se casam, têm um filho, Rudá de Andrade, e ambos ingressam no Partido Comunista. Torna-se uma ativista ferrenha e ainda em 1930 inicia uma série de protestos no Cambuci, em São Paulo, contra o governo provisório. Depois comanda uma greve de estivadores em Santos, onde chegou a trabalhar como operária, e é presa pela primeira vez, das 23 que ainda iriam ocorrer, tornando-se a primeira mulher encarcerada no Brasil por motivos políticos. Apesar de todo empenho, o partido não estava satisfeito com as origens burguesas de Pagu e ela, mesmo questionando internamente os seus comandos, colocava-os em prática para demonstrar o seu total envolvimento com a causa. Assim, deixou Oswald de Andrade, seu primeiro marido, por recomendações do PC e, a ele entregue a criação de seu filho. Tanto esforço resultou infrutífero e acaba rompendo com o Partido Comunista, para aderir ao Socialista, pelo que tenta se eleger deputada estadual em 1950.


NASCE A ESCRITORA


O primeiro livro, Parque Industrial, é lançado em 1933, sob pseudônimo de Mara Lobo. Sua escrita é eivada da estética modernista, com a qual Pagu se alinhava. Na obra, ataca o stablishment político e acadêmico e inventa na linguagem uma das características da literatura moderna, talvez herança de Oswald, que no mesmo ano publica Serafim Ponte Grande.

Parque Industrial instiga o leitor a ponto de indigná-lo. Longe da literatura defendida pelo partido, que esperava que ela edificasse e idealizasse a classe operária, foi marginalizada pela crítica e pela historiografia. Nela, a classe operária é a personagem principal, mas é a mulher operária do Brás, bairro em início de industrialização, que ganha cores e tintas fortes. Com relação ao primeiro romance, Patrícia afirma, na autobiografia publicada postumamente: "Pensei em escrever um livro revolucionário. Assim nasceu a ideia de Parque Industrial. Ninguém havia feito literatura nesse gênero. Faria novela de propaganda com pseudônimo, esperando que as coisas melhorassem". Segundo a pesquisadora Larissa Satico Ribeiro Higa, mestra em Teoria e História Literária pela Unicamp, a ênfase dada ao retrato das mulheres trabalhadoras que são duplamente exploradas, pelo sexo e pelo trabalho, é recorrente ao longo do romance e indica o tipo de feminismo defendido pela autora.

Como jornalista, Pagu foi também correspondente em vários jornais e visitou o Japão, a China, os Estados Unidos e a União Soviética. Em Verdades e Liberdade, evidenciou sua decepção com o comunismo. A poeta também filiou-se ao Partido Comunista da França, onde fez cursos na Sorbonne, em Paris, e foi detida como militante estrangeira, em 1935.

No mesmo período, Patrícia e Oswald se separaram e ela começou a trabalhar no jornal A Plateia. Durante a revolta comunista de 1935, foi presa e torturada mais uma vez. Dentro da prisão, escreveu, em 1939, o romance Microcosmo. Ao sair da cadeia, em 1940, a escritora casa-se com o jornalista Geraldo Ferraz, com quem teve seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz, nascido em 1941. Com ele, publica A Famosa Revista pela America Edit, em 1945. Volta ao texto engajado em 1950, com Verdade e Liberdade, em edição dela própria.

Trabalhou, ainda, nos jornais cariocas A Manhã e O Jornal, e nos paulistanos A Noite e Diário de São Paulo. Sob pseudônimo de King Shelter, escreveu contos de suspense para a revista Detetive, dirigida pelo dramaturgo Nelson Rodrigues. A série de contos rendeu publicação póstuma: Safra Macabra, pela editora José Olympio. A editora Unisanta, por meio da maior pesquisadora sobre Pagu, Lúcia Maria Teixeira Furlani, publicou em 2004 os desenhos do Caderno de Croquis de Pagu, produção de estreia de uma Patrícia Galvão no fervor dos seus vinte anos.

E, em 2005, a Ediouro trouxe a público Paixão Pagu - A autobiografia precoce de Patrícia Galvão, texto autobiográfico, de alto impacto emocional, escrito originalmente como uma longa carta ao marido Geraldo Ferraz.

Em 1954, Pagu mudou-se para Santos (SP), onde atuou como crítica literária, teatral e de televisão no jornal A Tribuna. Na cidade, liderou a campanha para a construção do Teatro Municipal, além de fundar a Associação dos Jornalistas Profissionais e a União do Teatro Amador de Santos.

A escritora voltou para Paris em setembro de 1962 para ser operada em decorrência de um câncer, mas a cirurgia não obteve sucesso e ela tentou suicídio. Já muito doente, viveu até dezembro do mesmo ano. Seu último texto, o poema "Nothing", foi publicado em A Tribuna na véspera de sua morte.


Texto de Maria Beatriz retirado da revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, Dezembro 2008/Janeiro 2009, Ano 8, Edição 74.

domingo, 22 de outubro de 2023

O gênio maldito

Negro, boêmio, rebelde, alcoólico, pobre, anarquista, insano. Essas são as credenciais do visionário Lima Barreto, autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma, que o Brasil teima em esquecer.


Em 2017 falaram dele. Esteve em todos os grandes cadernos de literatura ou culturais. Menos por sua obra que pela grandeza do evento que o homenageava, a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2017. De repente, o negro, boêmio, rebelde, alcoólico, pobre, anarquista, internado duas vezes em um manicômio, ganhava o status que sempre mereceu: o de grande escritor brasileiro.

Mas passou. Próximo de completar dois anos quase ninguém mais fala em Lima Barreto. O esquecimento parece uma constante quando o assunto é esse escritor, que com o tom formal do Parnasianismo, antes de os modernistas darem o tom, a partir de 1922.

Neto de escravos e filho de pais livres, nascido no dia 13 de maio de 1881, na mesma data em que sete anos depois a Lei Áurea colocaria um fim na escravidão, Lima abordou o tema a partir de sua própria experiência. Sua obra, nesse sentido, é extremamente autobiográfica.

Affonso de Henriques de Lima Barreto teve uma infância conturbada: a mãe, uma negra livre, morreu quando ele tinha sete anos, a isso seguiu-se a demência do pai, e, segundo um de seus mais célebres biógrafos, Francisco de Assis Barbosa, um acontecimento teria marcado profundamente sua infância de menino mulato, órfão e descendente de escravos: a assinatura da Lei Áurea e os festejos da Abolição, no dia em que completou sete anos. Já não se diria o mesmo de outra data simbólica: o dia 15 de novembro de 1889. Sobre seu significado, o próprio Lima Barreto afirmou, em crônica incluída na obra póstuma Coisas do reino do Jambon, que "via-a com desgosto", acentuando que, com o regime republicano ali inaugurado, o Brasil se tornara "uma vasta comilança"; era "a subida do partido conservador ao poder, sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados".

Não espere de Lima Barreto uma literatura fácil, palatável. Enquanto seu contemporâneo, o enorme Machado de Assis, também negro e de origem humilde, era aclamado pelos críticos por sua literatura elegante e dentro das normas, Lima, com sua escrita à flor da pele negra, com seu vocabulário das ruas, incomodava. É quase possível sentir a textura dos cabelos de seus personagens, sentir a fé que professam, a maneira como vivem, o tipo de habitação. Com isso, Lima Barreto antecipa-se mais de um século e faz uma literatura negra por opção. Ela já falava de feminicídio, corrupção, racismo naquela época. Por isso, sua obra transpira atualidade. Para a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, autora da biografia Lima Barreto: Triste Visionário, lançada junto à FLIP 2017, "... os personagens, nas tramas, em escritos pessoais, a atenção para a questão racial e as descrições dos tipos físicos dos personagens estão sempre em evidência", frisa.

Isso em uma época - o começo do século XX - em que mestiços e negros eram considerados biologicamente mais fracos. Lima vai na contramão do conceito e deixa isso bem claro em seu Diário, em 1904: "A capacidade mental do negro é medida a priori, a do branco a posteriori"


CACHAÇA, LITERATURA E MANICÔMIO


Em 1914, Lima Barreto foi internado pela primeira vez no Hospício Nacional, no Rio de Janeiro, com o diagnóstico de alcoolismo. O branqueamento de algumas celebridades e alguns intelectuais corria solto. Com Lima foi assim: em sua ficha lia-se branco, abaixo sua foto desmentia a descrição. Mas se para alguns isso parecia benéfico, não a ele, que a questão da negritude e de o Brasil ser o último país a abolir a escravidão do mundo foram temas centrais em sua obra.

Recordações do escrivão Isaías Caminha, seu primeiro livro, publicado em 1909, já dizia a que vinha. Ácido, não fazia concessões: atacava a sociedade carioca, e nem mesmo os mandachuvas do jornalismo foram poupados, a ponto de O Jornal do Commercio, o mais influente da época, proibir que se escrevesse uma linha a seu respeito. Em pouco tempo, toda a imprensa seguia o ditame. Portanto, Lima viu-se com o livro embaixo do braço e sem divulgação. Apenas José Veríssimo, um dos maiores críticos e historiadores da literatura brasileira, debulhou-se em elogios para Recordações... Lima Barreto foi fino e retribui-lhe a gentileza indo visitá-lo em sua residência.

Sua obra mais conhecida - e hoje admirada pelos estudiosos -, Triste Fim de Policarpo Quaresma, saiu em 1911. Mas não havia quem quisesse arriscar a editá-lo, fato que só aconteceu em 1915. E dessa vez - talvez graças aos esforços de José Veríssimo - foi bem recebido pela crítica.

O romance foi publicado inicialmente em folhetim pelo próprio Jornal do Commercio, que havia batido a porta em sua cara, anos antes. O protagonista de Triste Fim... é o retrato de um nacionalismo patético e ufanista, ao qual Lima Barreto, ao qual Lima Barreto se opunha veementemente. A história traz uma crítica mordaz à perversão dos ideais republicanos pelos militares e grandes fazendeiros. O maior atingido por esse livro foi o presidente Floriano Peixoto.

O nacionalismo do major Policarpo Quaresma deságua em grande confusão, quando ele é condenado por traição à pátria, crime que ele não cometeu. O subsecretário do Arsenal de Guerra, nacionalista até a raiz dos cabelos, começa a se interessar por tudo que acha genuinamente brasileiro: tocar violão, instrumento marginalizado no fim do século XIX, aprende tupi-guarani, passa a estudar folclore, usos e costumes dos índios. O tupi-guarani o fascina tanto que o subsecretário envia um requerimento à Câmara solicitando que a língua indígena passe a ser oficial no Brasil. É considerado louco, e para em um manicômio.

O mesmo acontece com Lima Barreto. Nem mesmo a boa recepção da crítica e público o tiram do atoleiro em que se meteu: além das dificuldades financeiras, o escritor estava bebendo cada vez mais. E viver de literatura somente nunca foi fácil por aqui: em 1922 foram lançados em folhetim O Chamisco ou O Querido das Mulheres, Entra Senhórr! e no final do ano As Aventuras do Doutor Bogóloff. Para comer , pagar seu aluguel e a conta do bar, trabalhava como amanuense, na Secretaria da Guerra, algo como os escreventes de hoje. Já não estava bem. Ácido, teria proferido: "O Brasil não tem povo, tem público".

Em 1914 começa a ter alucinações. É quando o rebelde acaba internado no manicômio pela primeira vez. Numa e Ninfa foi escrito logo após Lima ter saído do hospício, no final daquele ano, e publicado pelo jornal A Noite, também como folhetim, entre março e julho de 1915. No seu Diário, no começo de 1917, ele relata que está novamente tendo problemas com a bebida. É internado no Hospital Central do Exército devido a contusões obtidas por causa das alucinações e, em 1919, já aposentado do funcionalismo público, volta para o Hospital Nacional dos Alienados, com o mesmo diagnóstico de alcoólico (alcoólatra na época). Dessa vez, suas experiências renderam um retrato ácido e cru sobre as instituições psiquiátricas no Brasil, o livro Cemitério dos Vivos, publicado em 1920.

Em 1922, ano em que as artes no Brasil colocaram tudo de cabeça para baixo, Affonso de Henriques de Lima Barreto morre. Fim do mulato carioca, como era chamado, defensor "das gentes" dos subúrbios, que deixou gravado em seu Diário: "É difícil não nascer branco" e "A raça para os brancos é conceito, para os negros pré-conceito".

É preciso resgatá-lo para sempre.


Texto de Maria Beatriz retirado do revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, Edição 77, Junho/Julho 2019.

sábado, 21 de outubro de 2023

Profissão de risco

Há alguns anos, tem-se percebido aumento da procura por atendimento psiquiátrico por parte de professores do ensino médio de escolas públicas, sejam elas municipais ou estaduais. Depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático têm sido os principais diagnósticos para esses trabalhadores, e, não raramente, muitos deles acabam necessitando permanecer afastados do trabalho por longos períodos.

E por qual motivo? O nome da "doença" que causa essa doença é violência. O professor tem sido vítima de vários tipos de violência, um monstro de várias cabeças que não ataca silenciosamente: gestores truculentos e insensíveis; perseguições e assédio moral no ambiente de trabalho; violência psicológica e mesmo física por parte de alunos e até de pais de alunos; remuneração insuficiente, que obriga professores a cargas horárias triplas, exaustivas e inviáveis do ponto de vista da saúde. Tudo isso muitas vezes vem em bloco e se soma aos problemas na vida pessoal desses que, muitas vezes, escolheram a profissão pelo sonho em exercer a vocação de ensinar, o que tem se tornado cada vez mais difícil nesse contexto tão árido.

A violência não para por aí. Grande parte dos professores que precisa recorrer ao atendimento psiquiátrico nos hospitais aos quais têm direito se vê desamparada e descoberta de um atendimento de qualidade. E quando necessitam se afastar do trabalho, têm seus direitos muitas vezes negados, com suspensão e negativas de licenças. Além disso, quando afastados do trabalho, perdem muitas das premiações, e seus rendimentos são drasticamente reduzidos em um momento bastante crítico da vida.

O cenário é bem crítico, e as soluções parecem cada vez mais difíceis de ser encontradas. Aos iniciantes na carreira, pode ser um pouco mais fácil, porque há mais chances de esse professor encontrar novos caminhos profissionais, seja na rede de ensino privado, seja até mudando de profissão; mas como resolver o dilema de professores que dedicaram a vida ao ensino e suas opções profissionais se encontram mais estreitas? Em um momento em que o ensino público  encontra-se cada vez mais sucateado, a saúde psíquica dos nossos mestres vai sendo cada vez mais estrangulada.

Mais recentemente, um novo ataque: a chamada "Escola sem partido" e o aumento da vigilância sobre o livre pensamento daqueles que teriam por função primordial desenvolver o senso crítico e a capacidade de reflexão nas mentes dos indivíduos em formação.

Diante de problemas tão complexos, o risco de adoecer mentalmente torna-se uma rápida e crescente realidade. Entretanto, uma vez que se adoece, é imprescindível buscar tratamento, sendo que, muitas vezes, o apoio psiquiátrico com medicação faz-se necessário. Além disso, o apoio psicológico é de fundamental importância, porque é preciso, com a ajuda de um profissional capacitado, fortalecer-se para poder garantir a volta ao trabalho ou até tomar decisões que envolvam novos rumos profissionais.

Mas, antes de adoecer, é recomendável que esses profissionais procurem apoio psicológico preventivo: psicoterapias, atividade física, atividade artísticas e de lazer podem funcionar como válvulas de escape par o estresse ocupacional e afastar as doenças para longe.


Texto de Marcelo Niel retirado da revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, edição 75, ano 8. Fevereiro/Março 2019.

sábado, 14 de outubro de 2023

A importância da alfabetização midiática

O advento das inovações tecnológicas trouxe como contrapartida novos tipos de problemas para os jovens que as utilizam. O contato com a mídia e a tecnologia acontece cada vez mais cedo devido à facilidade dos nativos digitais em utilizarem smartphones, tablets e computadores. Hoje é comum ver bebês que nem mesmo sabem andar ou falar ainda, mas que já dominam a técnica de passar o dedinho em telas iluminadas. Mas essas ferramentas trazem alguns perigos para a nova geração, como o uso inapropriado das redes sociais até as fake news. Os jovens precisam, portanto, ser educados para aprender a utilizar as novas mídias de forma segura. Eis que surge, então, um novo conceito capaz de mudar a educação básica, permitindo discernir os conteúdos vinculados às mais diferentes mídias. É a media literacy (alfabetização midiática).

O celular é hoje o principal meio utilizado por 49% da população brasileira para acessar a internet. Uma pesquisa da TIC Kids apontou que 80% dos jovens de 9 a 17 anos utilizam a grande rede. Com isso, a alfabetização midiática surge com o objetivo de desenvolver, em crianças e jovens, a habilidade de pensar sobre as informações que criam e consomem usando os mais diferentes canais de mídia. Isso inclui a possibilidade de distinguir fato de opinião e a capacidade de criar um pensamento crítico com base em uma informação recebida. Hoje, mais do que nunca, alunos precisam ser educados em diferentes tópicos durante sua formação. Dessa forma, esses alunos poderão compreender melhor o papel e as funções da mídia na sociedade.

Nos Estados Unidos e na Europa, o debate sobre a importância da alfabetização midiática está a todo vapor com o aumento das fakes news. O Brasil também já começa a engatinhar nesse assunto. As notícias falsas são um fenômeno mundial; elas têm maior facilidade de ser aceitas quando veiculadas por grupos de conversa instantânea ou compartilhadas nas redes sociais por amigos e pessoas próximas. E essas notícias falsas podem influenciar negativamente o poder de decisão do leitor.

É preciso ensinar crianças e jovens a entenderem que os fatos existem, mas que opiniões são interpretações ou pontos de vista sobre esses fatos. Pais e educadores podem - e devem - instigar esses jovens a fazer perguntas sobre o conteúdo que leem, além de orientá-los sobre a importância de verificar uma notícia antes de tomá-la como verdadeira. Motivar os alunos a pensar se o conteúdo parece verdadeiro; se uma URL parece legítima; se o que é debatido é uma opinião ou uma apuração - tudo isso são ferramentas propostas nesse novo modelo de alfabetização.

A educação mudou, os meios mudaram, e o conteúdo a ser transmitido precisa acompanhar as tendências. Como temos visto, alfabetizar vai bem além de ensinar a ler e a escrever. O bê-á-bá agora é bem mais amplo, e o currículo escolar precisa abranger essas interdisciplinaridades. No entanto, como o educador é, na maioria das vezes, um "imigrante digital" que precisa entender como as novas mídias funcionam, é preciso capacitá-lo para que ele atue com maestria nesse processo. Uma preparação escolar midiática pode ajudar os jovens a selecionarem  mensagem que recebem, navegando, assim, de forma segura, evitando os perigos do mundo virtual.


Texto de Luís Antônio Namura Poblacion retirado da revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, Edição 74, ano 8. Edições Dezembro 2018/Janeiro 2019.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Sobre a Inteligência

Trata-se de um poder sem discriminação moral, que desconhece o bem e o mal


Tenho vergonha do que pensei quando adolescente. Mais que vergonha, tenho raiva de mim mesmo, do que fui. Eu fui aquilo que hoje detesto: arrogante e presunçoso. Fui assim por causa das ideias religiosas em que eu acreditava. E me pergunto: "Como é que eu pude acreditar naquelas doideiras?". Fui religioso fundamentalista e acreditei com certeza absoluta na existência do inferno. O Vinícius e o Chico também sofreram perturbação semelhante quando adolescentes.

E eu me pergunto: Onde estava a minha inteligência? Onde estava a inteligência deles?

As histórias das Mil e uma noites me ajudam a entender. Lá se encontram lâmpadas e garrafas onde vivem gênios aprisionados com poderes ilimitados. Se alguém - místico ou bandido, não importa - abre a tampa da garrafa, o gênio sai e se torna escravo daquele que o libertou. O gênio tem o poder dos deuses. Mas não tem vontade própria. Faz o que seu mestre ordena.

O místico lhe dirá que deseja ver Deus. O gênio, sem discutir, o levará ao Paraíso. O bandido dirá que deseja roubar o tesouro de Ali Babá. O gênio o levará até a gruta e a abrirá dizendo "Abre-te Sésamo".

Assim é a inteligência: ela é um poder sem discriminação moral, desconhece o bem e o mal. Tanto pode produzir armas letais como pode produzir vacinas. Para distinguir o bem do mal, a inteligência teria de ser serva da sabedoria. Mas, como o gênio da garrafa, ela é serva do coração do seu dono... A sabedoria mora em outro lugar.

Então o meu problema nada tinha a ver com a minha inteligência, que era então o que ela é hoje. O problema tinha a ver com o coração do dono da garrafa: eu.

A inteligência se parece com as lâmpadas. As lâmpadas servem para iluminar. Para isso são dotadas de potências de iluminação diferentes. Há lâmpadas de 60, 100, 150 watts... Esse número em watts diz o poder de iluminação da lâmpada.

Também as inteligências servem para iluminar. Nos gibis, os ilustradores desenham uma lâmpada acesa sobre a cabeça de alguém que tenha tido uma ideia  brilhante. E as inteligências, à semelhança das lâmpadas, também têm potências de iluminação diferentes.

Os psicólogos inventaram testes com o objetivo de medir o poder de iluminação da inteligência, a que deram o nome de QI. Eu prefiro, em vez de QI, as letras "WI", "wattagem" da inteligência. Essa imagem ilumina mais.

Há WIs as mais diferentes. Inteligências de WI 200 têm um extraordinário poder de iluminação. Havia um professor universitário que se gabava de ter WI 200 e, para provar, mostrava a carteirinha.

Mas as lâmpadas, a gente não fica olhando para elas. Olhamos para o objeto que elas iluminam. Uma lâmpada de 200 watts pode iluminar o rosto de dor de um homem numa câmara de torturas, enquanto uma lâmpada de 60 watts pode iluminar uma mãe embalando o filhinho.

As lâmpadas valem pelas cenas que iluminam e não pelo seu poder de iluminar. Há inteligências de QI 200 que só iluminam esgotos e cemitérios. E há inteligências modestas que iluminam as asas de uma borboleta.

A inteligência, como as lâmpadas, não tem vontade. Ela obedece a mão que direciona o seu foco. É mandada. Como o gênio.

O problema não estava na minha inteligência, mas no objeto que ela iluminava. Doideira. A escolha do objeto não é coisa da inteligência. É coisa do coração, onde mora a sabedoria.


Texto de Rubem Alves retirado do Revista Educação, Editora Segmento, São Paulo, janeiro de 2008,  ano 11, nº 129.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A árvore que floresce no inverno

E ele me falou, naquela linguagem que só as plantas entendem, que o inverno de fora não lhe importava


Os sinais eram inequívocos. Aquelas nuvens baixas, escuras... O vento que soprava desde a véspera, arrancando das árvores folhas amarelas e vermelhas. É, estava chegando o inverso. Deveria nevar. Viriam então a tristeza, as árvores peladas, a vida recolhida para funduras mais quentes, os pássaros já ausentes, fugidos para outro clima, e aquele longo sono da natureza, bonito quando cai a primeira nevada, triste com o passar do tempo... Resolvi passear, para dizer adeus às plantas que se preparavam para dormir, e fui, assim, andando, encontrando-as silenciosas e conformadas diante do inevitável, o inverno que se aproximava. E foi então que me espantei ao ver um arbusto estranho. Se fosse um ser humano, certamente o internariam num hospício, pois lhe faltava o senso da realidade, não sabia reconhecer os sinais do tempo. Lá estava ele, ignorando tudo, cheio de botões, alguns deles já abrindo, como se a primavera estivesse chegando. Não resisti e, me aproveitando de que não houvesse ninguém por perto, comecei a conversar com ele. Perguntei se não percebia que o inverno estava chegando, que os seus botões seriam queimados pela neve naquela mesma tarde.

Argumentei sobre a inutilidade daquilo tudo, um gesto tão fraco que não faria diferença alguma. Dentro em breve tudo estaria morto... E ele me falou, naquela linguagem que só as plantas entendem, que o inverno de fora não lhe importava, o seu era um ritmo diferente, o ritmo das estações que havia dentro. Se era inverno do lado de fora, era primavera lá dentro dele, e seus botões eram um testemunho da teimosia da vida que se compraz mesmo em fazer o gesto inútil. As razões para isso? Puro prazer. Ah! Há tantas canções inúteis, fracas para entortar o cano das armas, para ressuscitar os mortos, para engravidar as virgens, mas não tem importância, elas continuam a ser cantadas pela alegria que contêm... E há os gestos de amor, os nomes que se escrevem em troncos de árvores, preces silenciosas que ninguém escuta, corpos que se abraçam, árvores que se plantam para gerações futuras, lugares que ficam vazios, à espera do retorno, poemas inúteis que se escrevem para ouvidos que não podem mais ouvir, porque alguma coisa vai crescendo por dentro, um ritmo, uma esperança, um botão - pela pura alegria, um gozo de amor. E me lembrei de um pôster que tenho no meu escritório, palavras de Albert Camus: "No meio do inverno, eu finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível".

E aí a alucinação teológica tomou conta da minha cabeça, e me lembrei de uma velha tradição de Natal, ligada à árvore. As famílias levavam arbustos para dentro das casas. E ali, neve por todas as partes, elas os faziam florescer, regando-os com água aquecida. Para que não se esquecessem de que, em meio ao inverno, a primavera continuava escondida em alguma parte.

Inverno: o frio, a neve, o silêncio, a morte.

Herodes: cascos de cavalos, espadas de aço e queixos de ferro.

Quando as plantas florescem na primavera, ali os homens escrevem os seus nomes. Mas quando as plantas florescem no inverno, ali se escreve o nome do Grande Mistério...


Texto de Rubem Alves retirado do Revista Educação, Editora Segmento, São Paulo, Ano 11, nº 128, Dezembro de 2007.