terça-feira, 24 de outubro de 2023

Zazá... Patsy... Pagu

Ela é até hoje um assombro nos meios literários. E uma grande esquecida. A multifacetada Patrícia Rehder Galvão foi militante política, escritora, jornalista, diretora de teatro, poeta, feminista e um dos grandes nomes do movimento modernista no Brasil, mesmo sem ter participado da Semana de Arte Moderna - à época, tinha apenas 12 anos.

Pagu (1910 - 1962) teve sua vida marcada por uma pulsão ardente de contemporaneidade e desejos de mudar o mundo. Varrida para debaixo do tapete da história da literatura brasileira por décadas, sua imagem era propagada como uma mulher louca, normalmente relacionada às que fogem aos padrões de comportamentos impostos pela sociedade machista. Mas a loucura de Pagu pedia uma nova concepção de vida, com sua escrita engajada.

A trajetória da garota, a terceira de quatro irmãos, filhos de Thiers Galvão de França, advogado e jornalista, e de Adélia Rehder Galvão, começa em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Aos dois anos, muda-se com a família para a capital paulista. Morou na Liberdade, Brás, Aclimação, Bela Vista e em uma chácara no então município de Santo Amaro.

Ainda era Zazá, mas já dona de uma personalidade ímpar, dando uma banana à sociedade da época: fumava na rua, dizia palavrões, deixava seus cabelos revoltos ao tempo, eriçados, usava roupas transparentes... Começou cedo a escrever. Aos 15 anos, a poeta, que estudava para ser professora na Escola Normal, colaborava com o Brás Jornal, sob o codinome Patsy. No mesmo ano, frequenta, além da Escola Norma, o Conservatório Dramático e musical de São Paulo, no qual lecionavam Mário de Andrade e Fernando Mendes de Almeida. O apelido Pagu surgiu com o poeta Raul Bopp, segundo seu biógrafo Augusto de Campos. À época, o escritor sugeriu que ela usasse um nome literário com as primeiras sílabas de seu nome e sobrenome. Mas houve um engano, pois ele pensou que o nome dela fosse Patrícia Goulart, já era tarde: Bopp escreveu um poema, intitulado "O coco de Pagu", e o pseudônimo acabou virando sua assinatura.


VIDA LOUCA E CADEIA


Se, em 1922, era muito nova para participar de movimentos culturais, em 1929 aproxima-se do grupo de intelectuais paulistanos que estava à frente do movimento modernista brasileiro. Com 19 anos, conheceu Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, que eram casados, e foi apresentada por eles ao movimento antropofágico, passando a colaborar na Revista de Antropofagia. Passa a viver praticamente com o casal e acaba tendo um romance com Oswald, que se separa de Tarsila em 1930. Um ano depois, Pagu e Oswald se casam, têm um filho, Rudá de Andrade, e ambos ingressam no Partido Comunista. Torna-se uma ativista ferrenha e ainda em 1930 inicia uma série de protestos no Cambuci, em São Paulo, contra o governo provisório. Depois comanda uma greve de estivadores em Santos, onde chegou a trabalhar como operária, e é presa pela primeira vez, das 23 que ainda iriam ocorrer, tornando-se a primeira mulher encarcerada no Brasil por motivos políticos. Apesar de todo empenho, o partido não estava satisfeito com as origens burguesas de Pagu e ela, mesmo questionando internamente os seus comandos, colocava-os em prática para demonstrar o seu total envolvimento com a causa. Assim, deixou Oswald de Andrade, seu primeiro marido, por recomendações do PC e, a ele entregue a criação de seu filho. Tanto esforço resultou infrutífero e acaba rompendo com o Partido Comunista, para aderir ao Socialista, pelo que tenta se eleger deputada estadual em 1950.


NASCE A ESCRITORA


O primeiro livro, Parque Industrial, é lançado em 1933, sob pseudônimo de Mara Lobo. Sua escrita é eivada da estética modernista, com a qual Pagu se alinhava. Na obra, ataca o stablishment político e acadêmico e inventa na linguagem uma das características da literatura moderna, talvez herança de Oswald, que no mesmo ano publica Serafim Ponte Grande.

Parque Industrial instiga o leitor a ponto de indigná-lo. Longe da literatura defendida pelo partido, que esperava que ela edificasse e idealizasse a classe operária, foi marginalizada pela crítica e pela historiografia. Nela, a classe operária é a personagem principal, mas é a mulher operária do Brás, bairro em início de industrialização, que ganha cores e tintas fortes. Com relação ao primeiro romance, Patrícia afirma, na autobiografia publicada postumamente: "Pensei em escrever um livro revolucionário. Assim nasceu a ideia de Parque Industrial. Ninguém havia feito literatura nesse gênero. Faria novela de propaganda com pseudônimo, esperando que as coisas melhorassem". Segundo a pesquisadora Larissa Satico Ribeiro Higa, mestra em Teoria e História Literária pela Unicamp, a ênfase dada ao retrato das mulheres trabalhadoras que são duplamente exploradas, pelo sexo e pelo trabalho, é recorrente ao longo do romance e indica o tipo de feminismo defendido pela autora.

Como jornalista, Pagu foi também correspondente em vários jornais e visitou o Japão, a China, os Estados Unidos e a União Soviética. Em Verdades e Liberdade, evidenciou sua decepção com o comunismo. A poeta também filiou-se ao Partido Comunista da França, onde fez cursos na Sorbonne, em Paris, e foi detida como militante estrangeira, em 1935.

No mesmo período, Patrícia e Oswald se separaram e ela começou a trabalhar no jornal A Plateia. Durante a revolta comunista de 1935, foi presa e torturada mais uma vez. Dentro da prisão, escreveu, em 1939, o romance Microcosmo. Ao sair da cadeia, em 1940, a escritora casa-se com o jornalista Geraldo Ferraz, com quem teve seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz, nascido em 1941. Com ele, publica A Famosa Revista pela America Edit, em 1945. Volta ao texto engajado em 1950, com Verdade e Liberdade, em edição dela própria.

Trabalhou, ainda, nos jornais cariocas A Manhã e O Jornal, e nos paulistanos A Noite e Diário de São Paulo. Sob pseudônimo de King Shelter, escreveu contos de suspense para a revista Detetive, dirigida pelo dramaturgo Nelson Rodrigues. A série de contos rendeu publicação póstuma: Safra Macabra, pela editora José Olympio. A editora Unisanta, por meio da maior pesquisadora sobre Pagu, Lúcia Maria Teixeira Furlani, publicou em 2004 os desenhos do Caderno de Croquis de Pagu, produção de estreia de uma Patrícia Galvão no fervor dos seus vinte anos.

E, em 2005, a Ediouro trouxe a público Paixão Pagu - A autobiografia precoce de Patrícia Galvão, texto autobiográfico, de alto impacto emocional, escrito originalmente como uma longa carta ao marido Geraldo Ferraz.

Em 1954, Pagu mudou-se para Santos (SP), onde atuou como crítica literária, teatral e de televisão no jornal A Tribuna. Na cidade, liderou a campanha para a construção do Teatro Municipal, além de fundar a Associação dos Jornalistas Profissionais e a União do Teatro Amador de Santos.

A escritora voltou para Paris em setembro de 1962 para ser operada em decorrência de um câncer, mas a cirurgia não obteve sucesso e ela tentou suicídio. Já muito doente, viveu até dezembro do mesmo ano. Seu último texto, o poema "Nothing", foi publicado em A Tribuna na véspera de sua morte.


Texto de Maria Beatriz retirado da revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, Dezembro 2008/Janeiro 2009, Ano 8, Edição 74.

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