sábado, 27 de agosto de 2022

Questão de Consciência

    A consciência da culpa torna-se azorrague de lamentável aflição para quem delinque, constituindo presença indesejável na vida irregular.

    Todos os homens com mediana capacidade de discernimento sabem como se devem conduzir e quais os mecanismos corretos de que se podem utilizar, a fim de lobrigarem êxito nos tentames de uma existência sadia.

    O erro, que é fator para a aprendizagem, ensinando a melhor metodologia para a fixação do acerto, na área do comportamento moral, assume papel preponderante, gerando consequências de breve ou longo curso, conforme a ação negativa desencadeada.

    Na Terra, em face dos compromissos ético-sociais que impõem a aparência, não raro em detrimento da realidade, aquela exige que os indivíduos se permitam duas condutas: a que se aceita e aquela que se vive na intimidade do ser.

    Tal atitude desencadeia distúrbios emocionais que se transformam em processos de alienação mental e comportamental infelizes.

    Não suportando a carga da dicotomia emocional que se impõe, o indivíduo foge pelos episódios neuróticos, jugulando-se a patologias que o tempo agrava, caso não se permita a necessária terapia e a mudança de ação moral.

    Fora do corpo, a questão da consciência da culpa assume proporções mais graves, tomando aspectos mais infelizes.

    A impossibilidade que experimenta o culpado de dissimular o delito, e a presença da sua vítima inocente, que o não acusa em momento nenhum, quando é nobre e elevada, tornam-se-lhe um tormento inominável.

    Se, todavia, estagia no mesmo padrão de conduta e é incapaz de compreender e perdoar, ei-la transformada em cobrador implacável, iniciando-se o processo de obsessão cruel, que se alongará na carne futura que o calceta busca a fim de esquecer e reabilitar-se...

    Age corretamente sempre.

    Não te anestesies com os vapores do erro moral ou de qualquer outra procedência.

    Sofre hoje a falta, de modo a não padeceres longamente, mais tarde, o que usaste de forma indevida.

    O júbilo de poucos momentos não vale o remorso de muito tempo.

    Felicidade sem renúncia é capricho dourado que se converte em pesadelo.

    Tudo passa!

    Eis que o tempo, na sucessão das horas, conceder-te-á em paz o que agora te falta, durante o conflito.

    Tem a paciência e persevera no Bem, na retidão.

    As Leis de Deus encontram-se registradas na consciência humana, para que saibamos como agir, para que agir e por que agir sempre de maneira melhor para todos.

    Assim, não te comprometas com o mal, o crime, o vício, liberando-te da culpa por antecipação.

    Tal atitude será, na tua felicidade, uma questão de consciência.


Retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 3ª Edição.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Dia de Passeata

    - Eu vou, a menos que você me impeça à força - decidiu a menina.

    O pai, desolado, não sabia o que fazer para convencê-la:

    - Minha filha, você está sendo levada pelo entusiasmo. Ouça a voz da experiência. Minha geração começou em passeatas e acabou na tortura. Amanhã, quando um soldado perder a cabeça e atirar contra um estudante, vocês trocarão Alegria, Alegria por hinos fúnebres. Não é com manifestações de rua que o governo será derrubado. Fique em casa.

    - Não, pai, toda a escola combinou de participar. Não vou ficar de fora, como se eu apoiasse o governo.

    - Quem semeia vento colhe tempestade - advertiu o pai. - Hoje, nas ruas, tudo parece festa, mas amanhã haverá choro e ranger de dentes. Pode ter certeza: se for, sua ficha na polícia ficará suja.

    - Suja? Por quê? O que faço de errado?

    O pai, sentando-se bem junto à menina, como se as paredes tivessem ouvidos, explicou:

    - Disfarçada de fotógrafos de jornais, a polícia registra todas as passeatas, sem que um só manifestante deixe de ser retratado. Depois, as fotos são ampliadas e cada rosto identificado. Daqui a alguns anos, quando estiver formada na faculdade, pode ser que você seja preterida num emprego sem que lhe deem um motivo convincente. Vai ver, a empresa consultou a polícia e foi informada de que a pretendente tem um passado subversivo.

    - Ora, pai, isso já era. Agora estamos em plena democracia. Como vão saber que aquele rosto pintado de verde-amarelo nas faces e risco preto na testa é o meu?

    - O coronel Pafúncio identifica - argumenta o pai numa cartada final.

    - Esse nosso vizinho? Ele nem é mais da ativa, pai. O senhor acha que ele ainda está preocupado em caçar comunistas?

    - Nunca se sabe, filha. Essa gente é treinada para se fazer de boba. Você vê o coronel aí do lado cuidando de passarinhos e limpando gaiolas, como se não tivesse outra preocupação na vida. Não duvido nada que ele ganhe um dinheirinho extra informando tudo o que se passa aqui no prédio. Pode ficar certa, se amanhã você for à passeata, ele vai anotar seu nome.

    - Pois que anote, mas não ficarei de braços cruzados enquanto o governo afunda o país nesse mar de lama.

    Na manhã seguinte, toda equipada para a passeata, a menina deu de cara com o coronel no elevador. Olhou-o espantadíssima. De tênis, o home vestia camisa preta e trazia a bandeira do Brasil nas mãos.

    - Aonde é que o senhor vai assim, coronel?

    - À passeata, minha filha. Se a gente balançar, o governo cai.


Crônica de Frei Betto retirada do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, Agosto de 2003, 2ª Edição.


Em 2003 quando o livro foi lançado, o contexto verde e amarelo com bandeira do Brasil significava outra coisa. Hoje, nesses confusos dias de 2022, essas cores foram, inicialmente, "sequestradas" pela direita conservadora e seus apoiadores boçais. Felizmente, a esquerda também começou a utilizar a bandeira fazendo um contraponto a essa utilização inadequada...

sábado, 20 de agosto de 2022

Hermes, o deus condutor dos caminhos e meios para se viver na Terra. O condutor das almas para a ressurreição!

    Hermes é um deus singular na mitologia grega. Não tem lugar fixo na hierarquia olímpica. É o único que pode deslocar-se do Olimpo para a Terra e para o mundo subterrâneo dos mestres. Por isso tem asas na cabeça - para ensinar os homens a se elevar - e nos pés - para ensinar os homens a descer, pois "quem não souber descer jamais servirá para subir" (Tábua das Esmeraldas, conjunto de ensinamentos sagrados, atribuída ao próprio Hermes). Queria isso dizer que quem não aprender a ser simples e humilde jamais poderá se aproximar dos deuses.

    É filho de Zeus e Maia (a aparência, a ilusão), significando que a criação, ao unir-se à aparência e à ilusão, deu origem a uma divindade que ensinou aos mortais as muitas possibilidades e meios para viver na Terra e que, se muitas podem ser verdadeiras, outras podem ser falsas. Seu culto remonta a épocas muito arcaicas e as evidências apontam sua origem no deus egípcio Toth.

    Nasceu em uma gruta e seu nome deriva do sânscrito "Hemú", que significa a pedra guardiã sagrada da ressurreição. 

    Homero dá na Ilíada uma versão muito divertida de seu nascimento e das primeiras peripécias com seu irmão, o deus Apolo. Conta que nasceu no Monte Cileno e que "naquela aurora tocou a lira pela noite e praticou o célebre roubo dos bois de Apolo". Ao sair de sua gruta, Hermes encontrou uma tartaruga, matou-a e limpou seu casco, e das tripas de uma ovelha esticou sete cordas que prendeu no casco... Assim nasceu a primeira lira, que se pôs a tocar.

    Ao pôr-do-sol, dirigiu-se à Pieria, onde se encontravam os bois sagrados de Apolo. Apoderou-se de cinquenta reses e, para dissimular sua fuga, retirou-se andando de frente para trás, apagando com arbustos seus rastros e os dos animais. Chegou com o rebanho em Pilos, escondeu os bois e imolou dois, dividindo a carne em doze partes, uma para cada deus, e assou-a como oferenda. Ele próprio nada comeu e retornou para casa contando a sua mãe o episódio. Esta, admoestou-o, e seu irmão Apolo, como tinha o dom da profecia, logo descobriu tudo. Dirigiu-se ao monte Cileno e exigiu a devolução dos bois, mas o pequeno Hermes recusou-se a fazê-lo.

    Decidiu então levar o pleito ao próprio Zeus, que muito se divertiu ao saber do ocorrido, ordenando, no entanto, a restituição do rebanho sagrado a seu dono.

    Hermes não se deu por vencido e, para aplacar a ira do irmão, pôs-se a tocar a lira. Apolo ficou imediatamente fascinado e aceitou o instrumento em troca dos bois.

    Tão logo as mãos de Apolo tocaram o instrumento, ela se transformou na famosa lira de ouro que sempre o acompanhará como um de seus mais importantes símbolos.

    Hermes recebeu, além dos bois, um cajado de ouro de Apolo, no qual imediatamente entrelaçaram-se duas serpentes, formando seu símbolo, o caduceu, que será erroneamente associado à medicina.

    Finalmente, Hermes recebeu de Apolo o dom da adivinhação, mas não o da profecia, sendo considerado o deus protetor dos jogos de azar.

    Em Hesíodo, na Teogonia, esse deus é descrito como o "Psicopompo", o condutor das almas após a morte no caminho da ressurreição e do voltar a viver. Com efeito, os antigos gregos e egípcios acreditavam que após a morte voltavam a viver em um novo corpo e que encontrariam esse caminho por meio de Hermes.

    A palavra "hermético" tinha esse significado original, ou seja, cada um deve descobrir seu caminho - com a ajuda de Hermes - para conquistar a vida após a morte. Essa busca só poderia ser feita pelo diálogo interior com Hermes, não sendo possível com mais ninguém. Esse diálogo adquiriu então uma conotação de secreto ou incompreensível, o que na modernidade redefiniu como sendo "hermético", quer dizer, "indecifrável". Isso apenas revela como nos tornamos superficiais e incapazes de ouvir nossa voz interior (que não deve ser confundida com consciência moral!)

    O culto de Hermes tinha enorme importância na antiguidade. Ele é retratado como de extraordinária inteligência, tolerância, benevolência e indulgência, o que o fazia muito amado pelos deuses e pelos homens. É acima de tudo o arauto do Olimpo e indica os caminhos do destino aos homens. Seus símbolos são as asas nos pés e na cabeça, e o cajado de ouro (o caduceu) que...

* É de ouro e retilíneo, porque indica o caminho para a imortalidade.

* Tem no topo um oito aberto. O círculo significa o divino (pois este não tem começo, meio ou fim), e o semicírculo é a dualidade dos princípios divinos, o masculino e o feminino.

* As duas serpentes entrelaçadas no cajado significam a ambiguidade fundamental da condição humana, a morte e a vida, a essência e a aparência e a dualidade do amor, que é sacrifício e desejo, alma e matéria, alegria e tristeza, busca e perda, e assim por diante.

    É, mais do que tudo, a maravilhosa esperança, sempre renovada, de viver e amar. Para Hermes, tudo é alegria e graça, e condena severamente aqueles que levam a vida muito a sério. Tudo nele encontra uma solução, sendo considerado o deus mais amigo dos homens e em especial dos adolescentes, que o adoravam por seu humor e "brejeirice".

    Tão popular era, que todas as casas tinham na frente uma estátua ou estrela de Hermes como falo ereto, símbolo de que a casa era fecunda e plena de paixão. (O falo ereto não tinha nem de longe o significado que o falso moralismo judaico-cristão lhe conferiu.)

    Era ainda considerado o deus da comunicação - interior e exterior. Em cada esquina das cidades helênicas, uma estrela de Hermes funcionava como indicador de direção, nomeando os logradouros e tinha inscrições para ajudar os transeuntes a encontrar seu caminho interior. Algumas dessas inscrições ficaram famosas e citamos algumas, tão úteis ontem como hoje e sempre:

* "O microcosmos é idêntico ao macrocosmo; lá encontrarás o conhecimento dos deuses e do universo." Ou seja, é no seu interior, que é idêntico à imensidão cósmica, que você encontrará deus e o entendimento dos mistérios do incomensurável.

* "A riqueza é destinada ao uso; seu acúmulo é tolo e vão; tudo deixarás aqui."

* "Você deve partir daqui com o corpo completamente gasto. Gaste-o, mas gaste-o bem; transforme tua matéria em nobreza, beleza e bondade e partirás daqui leve como uma pluma, pronto para renascer."

    Iniciação e hermetismo para os antigos gregos não eram senão a arte de aplicar esses ensinamentos de Hermes, não tendo nada de esotérico ou misterioso. Ao contrário, eram fórmulas muito práticas para atingir a verdadeira espiritualidade.


Trecho retirado do livro Mitologia Viva - Aprendendo com os deuses a arte de viver e amar; Viktor D. Salis, Editora Nova Alexandria, São Paulo, 2003.

Homens Vazios

    Em uma sociedade injusta, que é o fruto amargo da cultura materialista, o homem vê-se massificado, desconhecido, com a sua identidade desnaturada, sem objetivo.

    Os esforços que empreende são dirigidos para metas que se caracterizam pelo imediatismo responsável pelas necessidades comuns, sem o apoio dos ideais compensadores, que iluminam a vida e dão-lhe significado.

    Acomodando-se aos padrões absorventes do cotidiano, ele sente-se comprimido pela ansiedade que o aturde, sem encontrar solução para os estados conflitivos da personalidade que o assaltam.

    Torna-se, em consequência, homem vazio, verdadeiro espectro que se movimenta no grupo social, que participa das atividades corriqueiras, sem que viva as emoções que dão beleza e significado à dignidade de ser senciente.

    Em torno dele agrupam-se outros que sofrem a mesma enfermidade, que mal disfarçam as suas aflições, mediante conversas que primam pela banalidade dos temas ou derrapam nas conceituações da promiscuidade moral em voga.

    Quando a conversação perde o tom do agradável e útil, o comentário proveitoso e sadio, o grupo social apresenta-se enfermo, em decomposição de sentido e de propostas.

    A vida inteligente emerge dos objetivos que constituem a manutenção do corpo e a continuidade das suas sensações.

    Pairam, em nível mais alto e mais ambicioso, os ideais de construção do bem, de criatividade nobre, de rendimento emocional dignificante, que se tornam essenciais na vida dos indivíduos. A ausência desses elementos responde pela impermanência da identidade psicológica de cada um, arrojando-o ao despenhadeiro do vazio íntimo.

    O homem vazio não consegue amar, porque não aprendeu a viver essa faculdade, base do comportamento de ser livre. Adaptou-se a ser amado ou disputado, sem preocupação de retribuir.

    Imaturo, antes reagia às expressões da emotividade nobre, preferindo o jogo arbitrário das sensações. Nele havia a preocupação de ser conhecido, de receber convites, de encontrar-se presente nas reuniões sociais, não porque estas lhe fizessem bem, porém, por medo da solidão, de ser esquecido... Em tais reuniões, a convivência emprestava brilho ao seu ego, em face da tagarelice, do consumo de alcoólicos, do tabagismo, que significavam status elevados.

    Assim, sem identidade, o homem vazio é uma pessoa morta.

    Há muita gente sem previdência, que inveja as pessoas colunáveis, vazias.

    Não que seja um mal participar da sociedade e preocupar-se com a projeção da personalidade no grupamento social. Só que, a maioria desses indivíduos-mitos é formada por solitários que se buscam, sem que se tornem solidários que se ajudam,

    Disputam homenagens e guerreiam-se entre sorrisos, no desfile do luxo e do exibicionismo, nos quais escondem os conflitos, quando assim o fazem, e as profundas necessidades afetivas.

    Tal conduta leva-os à melancolia e à depressão, ou a lamentáveis estados de irritabilidade, de mau humor que os tornam rudes, insuportáveis na intimidade, embora considerados sociáveis e educados.

    Essa ambiguidade no comportamento culmina com a instalação de neuroses que se agravam, desestruturando-os a médio prazo.

    O homem acumula vácuo, porque se sente impotente para alcançar plenitude.

    Acostumando-se à competição nos negócios, nos relacionamentos, espera ser o primeiro, o mais considerado. Se o logra, esvazia-se, de imediato. Quando não o consegue, frustra-se, perdendo-se da mesma forma.

    Os conflitos se instalam e ele se desama, deixa de sentir, de viver. Transfere-se, emocionalmente, para a ribalta do desespero e da futilidade.

    Este mecanismo de evasão mais o aturde, porque o desnatura.

    Pode-se, de certo modo, afirmar que estes são dias de homens vazios, homens-sombra.

    Se já travaste contato com as lições de Jesus, poderás insculpi-las no comportamento, transferindo-te do estado de vácuo para o de realizações.

    Compreenderás o significado da tua existência e saltarás o abismo que te ameaça, preenchendo as tuas lacunas emocionais com o idealismo que deflui do amor, base da plenificação humana.

    Viverás em sociedade sem conflitos íntimos e a elegerás por afinidade de propósitos e fins, começando a instalar aí e no coração o Reino de Deus, iluminado e pleno. E o farás porque terás por modelo e guia Jesus, o Homem-Luz de todos os tempos.


Retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2015, 4ª Edição.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Sendo chegada a hora de descansar

    Num fundo buraco do chão, quase poço. Ali vivia sem nunca ter saído, desde o nascimento. Alimentava-se de ervas, raízes,

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Cantata Dividida

    Desde os tempos de namoro, amavam-se numa língua que só os dois conheciam. Com ela trocaram juras, com ela inventaram uma canção. E mesmo depois de casados, embora falassem outras línguas na rua, ao fechar a porta de casa só em sua língua se entendiam.

    Foi também também em sua língua que se desentenderam e, depois de muitas brigas, resolveram separar suas vidas. Dividiram os discos, partilharam os livros, ficou ela com os móveis do quarto, escolheu ele os da sala, e até o piano dado pelos padrinhos foi feito em dois, cabendo a ela as teclas brancas, enquanto ele se contentava com as pretas.

    Apesar perda da metade do cotidiano, ela lutava para conduzir a vida a uma nova ordem quando uma tarde, sentada frente ao que restava do piano, a revelação gelou-lhe as mãos. Só naquele instante, preparando-se para cantar, percebeu que o amor nunca mais lhe seria possível. O marido havia levado todas as consoantes da sua língua. E, subreptício, carregava consigo o segundo verso da canção.


Crônica de Marina Colasanti retirada do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

Enquanto o cão espia

    Para evitar que fosse devorado pelo cão, colocaram o gato na grande gaiola branca que pendia do teto presa por uma corrente.

    Entre finas barras e delicadas volutas, moveu-se ele em fúria. Pelo eriçado, orelhas baixas, fustigava o rabo no mínimo espaço, ondulando a cabeça de um lado ao outro, à procura do momento para o salto, da brecha para a fuga. Nem deixou que ninguém dormisse à noite, seus miados estridentes talhando o sono, incendiando o silêncio até o raiar do dia.

    Entretanto, renovado o leite no pires, oferecida a sardinha, pareceu aquietar-se o animal, como se o espaço não lhe fosse mais tão restrito, e um entendimento se fizesse entre ele e sua nova acomodação. Agora, farejava pelos cantos, espiava curioso os detalhes, brincava com a pata na correntinha da portinhola. E à noite, cedo se escondeu atrás das pálpebras a luz verde dos seus olhos.

    Em pouco, o gato parecia feliz com a sua segurança. E, talvez para exercitar os músculos, passou a subir com frequência nos poleiros que haviam pertencido ao antigo ocupante, ali deixando-se ficar quieto durante horas, observando o mundo do alto.

    A família que habitava aquela casa já estava tão acostumada a ver o felino na gaiola, que ninguém se surpreendeu na manhã em que, mais claro o dia ou mais leve a brisa que ondulava a cortina, o gato saltou para o seu poleiro. E, erguendo a cabeça, docemente, começou a trinar.


Crônica de Marina Colasanti retirada do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

domingo, 14 de agosto de 2022

Com a chegada da primavera

    Primeiro num vaso, depois em outro, e logo em latas e canteiros de caixotes, o homem plantou bulbos e ficou à espera das flores.

    Mas antes das flores ou de qualquer germinar, ervas daninhas começaram a despontar na plantação. Atento, o homem arrancou uma por uma, sacudindo bem as raízes para poupar a terra preciosa. E mais regou, sabendo que as flores logo chegariam.

    Despontavam as primeiras folhas prenunciando jacintos e narcisos, e já as daninhas se multiplicavam, ameaçando sufocar a brotação delicada. Novamente o homem foi obrigado a intervir, arrancando impiedosamente as invasoras.

    Até a chegada daqueles dias mais amenos em que, uma por uma, as flores começaram a se abrir, encharcando o ar de perfume, colorindo os canteiros de matizes. Aproximou-se o home com seu canivete e, escolhendo as mais bonitas, degolou-lhes o caule, empunhando o buquê que levaria para enfeitar alguma casa. Não teve tempo de fazê-lo. Antes que deixasse o jardim, as flores o arrancaram, daninho.


Conto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

De água nem tão doce

    Criava uma sereia na banheira. Trabalho, não dava nenhum, só a aquisição dos peixes com que se alimentava. Mansa desde pequena, quando colhida em rede de camarão, já estava treinada para o cotidiano da vida entre azulejos.

    Cantava. Melopeias, a princípio. Que aos poucos, por influência do rádio que ela ouvia na sala, foi trocando por músicas de Roberto Carlos. Baixinho, porém, para não incomodar os vizinhos.

    Assim se ocupava. E com os cabelos, agora pálido ouro, que trançava e destrançava sem fim. "Sempre achei que sereia era loura", dissera ele um dia trazendo tinta e água oxigenada. E ela, sem sequer despedir-se dos negros cachos no reflexo da água da banheira, começara dócil a passar o pincel.

    Só uma vez, nos anos todos em que viveram juntos, ele a levou até a praia. De carro, as escamas da cauda escondidas debaixo de uma manta, no pescoço a coleira que havia comprado pra prevenir um recrudescer do instinto. Baixou um pouco o vidro, que entrasse ar de maresia. Mas ela nem tentou fugir. Ligou o rádio, e ficou olhando as ondas, enquanto flocos de espuma caíam dos seus olhos.


Conto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

sábado, 13 de agosto de 2022

Pequena Fábula de Diamantina

    Tendo herdado a casa do avô na cidade distante, para lá mudou-se com toda a família, contente de retomar o contato com suas origens. Em poucos dias, já trocava dedos de prosa com o farmacêutico, o tabelião, o juiz. E por eles, ficou sabendo, entre uma conversa e outra, que as casas daquela região eram construídas com areia de aluvião, onde não raro se encontravam pequenos diamantes.

    A notícia incrustou-se em sua mente. Olhava os garimpeiros que à beira de rios e córregos ondulavam suas bateias, olhava os meninos que cavucavam os montes de areia já explorada onde, ainda assim, talvez fosse possível descobrir o brilho amarelado da pedra bruta. Ouvia as estórias de fantásticos achados.

    Por fim, uma tarde, alegando cansaço após o almoço farto, trancou-se no quarto e, afastado o armário, começou com a ajuda de uma faca a raspar a parede por trás deste. Raspava, examinava a cavidade, os resíduos que tinha na mão e que cuidadoso despejava num saco de papel. E recomeçava. Assi, durante mais de hora. Assim, a partir daí, todas as tardes.

    Já estava quase transparente a parede atrás do armário, e ele se preparava para agir atrás da cômoda quando, tendo esquecido de trancar a porta, foi surpreendido pela mulher. Outro remédio não teve senão explicar-lhe o porquê de sua estranha atividade. Ao que ela, armada por sua vez de faca e reclamando posse territorial, partiu para a parede da despensa. Onde, dali a pouco, foi descoberta pela empregada. A qual reivindicou direito às paredes da cozinha. Tão evidentes, que rapidamente as crianças perceberam, atacando cada uma um lado do corredor.

    De dia e de noite, raspam e raspam os familiares, álacres como ratos, abrindo vãos, esburacando entre as estruturas, roendo com suas facas na procura cada vez mais excitada. Abre-se aos poucos a casa descarnada, recortadas em renda suas paredes. Geme o telhado, cedem as estruturas. Até que tudo vem abaixo numa grande nuvem de pó.

    Agora com as unhas, raspam os familiares o monte de entulho. Quem sabe, sob os escombros espera, escondido, o diamante.


Conto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

Na hora do sono

    O repouso mediante o sono é indispensável ao equilíbrio psicofísico dos seres, especialmente do homem.

    O sono representa um grande contributo à saúde, à harmonia emocional, à lucidez mental, à ação nos diversos cometimentos da existência humana.

    Enquanto se processa o entorpecer de determinadas células corticais, responsáveis pelo sono, liberam-se os clichês do inconsciente, que se transforma em catarse valiosa para a manutenção da paisagem mental equilibrada.

    Sobrecarregado pelas emoções refreadas, pelas reminiscências dolorosas, pelas frustrações, ansiedades, que se transformam em conflitos e complexos variados, o inconsciente se desvela nos estados oníricos, que dão origem aos sonhos, de valor inegável aos psicanalistas para o estudo do comportamento e da personalidade.

    O sono natural é de relevante significação para a vida e sua preservação durante a existência corporal, na qual o Espírito processa a sua evolução.

    Com alguma justeza, alguns estudiosos do psiquismo afirmam que "dormir é uma forma de morrer".

    Parecem-se, sem dúvida, os dois fenômenos biológicos, porquanto, no sono, o Espírito se desprende parcialmente do corpo, enquanto que, na ocorrência da morte, dá-se o desligamento total dos liames espirituais.

    Assim, conforme se durma, ou se morra, isto é, de acordo com as ideias acalentadas e aceitas, manifestam-se as consequências idênticas.

    No caso do sono, o Espírito ressuma as emoções que lhe são agradáveis, acontecidas ou não, o mesmo sucedendo na morte, o que, por sintonia, propicia vinculação com outras mentes, com outros espíritos semelhantes.

    Sonhos ou pesadelos, desdobramentos de pequeno, médio ou longo porte, são resultados do estado emocional do indivíduo.

    Quando busques o repouso, cuida do panorama emocional através da meditação e renova a mente recorrendo à oração.

    Repassa as atividades do dia e propõe-te à reabilitação nos incidentes que consideres infelizes, nos quais constantes os teus erros.

    Não conduzas ao leito de dormir pensamentos depressivos, angustiantes, coléricos, perturbadores...

    Os momentos que precedem o sono devem ser de higiene mental, de preparação para atividades outras, que ocorrerão durante o processo de repouso físico e mental.

    Outrossim, liberta-te das ideias perniciosas que são cultivadas com intensidade. O hábito de as fixares cria condicionamentos viciosos que atraem entidades semelhantes, que se te acercam e exploram-te as energias, exaurindo-te e dando início a lamentáveis processos de sutis obsessões, que se alongam, normalmente, durante o novo dia, repetindo-se, exaustivamente, até além da morte.

    Planeja o bem, vitaliza-o com a mente, vive-o desde antes de dormires, e, tão pronto se dê o fenômeno biológico, amigos devotados do mundo espiritual te conduzirão às Regiões Felizes, a fim de mais te equipares para os tentames, onde ouvirás preciosos ensinamentos, vivendo momentos de arte, beleza e encorajamento, que se poderão refletir nos teus painéis mentais, como sonhos agradáveis, revigoradores, que te deixarão sensações de inefável bem-estar.

    Da mesma forma, quando arrastado aos recintos licenciosos que o pensamento acalenta, o contato com os seres infelizes se transformará em pesadelos inqualificáveis, desgaste e exaustão, que se manifestarão como irritabilidade, indisposição e enfermidades outras.

    Os momentos precedentes ao sono são de vital importância para o período de repouso.

    Assim, não te descures da educação da mente, da manutenção dos hábitos saudáveis e dos programas edificantes, a fim de que todas as tuas horas sejam proveitosas para teu crescimento interior e uma existência de paz.


Texto retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Só uma palavra poderia salvá-lo

    "Há uma palavra a caminho", revelou-lhe a cartomante. "Mas se você a pronunciar, morrerá." E mais não disse, que a bola de cristal, subitamente turva, recusava-se a mensagens.

    Em pânico, resolveu calar-se para evitar o perigo. E já punha a alma em paz, quando percebeu que, embora muda, sua mente dialogava, e, como se atravessa um rio por sobre pedras, varava o silêncio interior, evitando palavras que pudessem estar contaminadas. Temia o risco da palavra pensada.

    Só o sono amordaçaria seu pensamento. Assim decidindo, deitou-se. E dormiu, dormiu, dormiu.

    Mas num esgarçar-se daquele torpor em que voluntariamente mergulhara, o aflorar da consciência comunicou-lhe que no sono sonhava. E no sonho falava.

    Já não lhe era permitido dormir. Nem ficar acordado. Cada letra, cada fonema, cada canção solta no ar podia esconder o alçapão que o precipitaria no negro abismo. Suor gelado empapou-lhe a fronte. Os minutos rosnaram à sua frente. Um dia que fosse já era longo demais. E a morte, de repente, pareceu-lhe um alívio, única salvação possível contra o terror da morte. Mas, sem saber-lhe o nome, como fazer para chamá-la?


Conto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Travessuras

Eu insisto em cantar

Diferente do que ouvi

Seja como for recomeçar

Nada mais há de vir


Me disseram que sonhar

Era ingênuo, e daí?

Nossa geração não quer sonhar

Pois que sonhe, a que há de vir


Eu preciso é te provar

Que ainda sou o mesmo menino

Que não dorme a planejar travessuras

E fez do som da tua risada um hino


Me disseram que sonhar

Era ingênuo, e daí?

Nossa geração não quer sonhar

Pois que sonhe, a que há de vir


Eu preciso é te provar

Que ainda sou o mesmo menino

Que não dorme a planejar travessuras

E fez do som da tua flauta um hino


Música de Oswaldo Montenegro gravada em seu então LP de 1990 lançado pela Gravadora Som Livre e relançado em CD posteriormente...

domingo, 7 de agosto de 2022

O Nascimento do Mundo

No início só havia Kore, a energia, vagando na escuridão do espaço infinito. Então veio a luz e surgiram Ranginui, o Pai Céu, e Papatuanuku, a Mãe Terra. Rangi e Papa tiveram muitos filhos: Tangaroa, deus das águas; Tane, deus das florestas; Tawhirmatea, deus dos ventos; Tumatauenga, deus da guerra, que deu origem aos seres humanos; e Uru, que não era deus de nada.

Rangi e Papa viviam num perpétuo abraço de amantes. Acontece que esse enlace apaixonado não deixava a luz penetrar entre seus corpos, onde ficavam os filhos. Obrigados a viver apertados e sempre no escuro, os jovens resolveram dar um basta na situação.

- Vamos matar Rangi e Papa e ficar livres deles! - disse Tumatauenga.

- Não! - disse Tane. - Vamos apenas separá-los, empurrando um para cima e deixando o outro embaixo. Assim sobrará espaço para nós e a luz vai poder entrar.

Todos acharam a ideia excelente.

Tane, que era o mais forte de todos, firmou bem os pés em Papa, encaixou os ombros no corpo de Rangi e o empurrou para cima com toda a força.

Os pais se separaram mas - oh, decepção! - só um pouco de luz chegou ao mundo dos filhos. Além disso, Rangi e Papa estavam nus e, longe um do outro, sentiam muito frio.

Comovido com a situação, Tane abrigou o pai com o negro manto da noite.

Para a mãe fez um vestido com as mais verdes e tenras folhas e as flores mais coloridas. Em torno dela fez ondular as águas azuis dos mares e rios de Tangaroa. Os ventos de Tawhirmatea sopravam suavemente seus cabelos. Os filhos de Tumatauenga já começavam a povoar o mundo recém-criado.

Olhando lá de cima os lindos trajes da mulher e sua participação no novo mundo. Ranginui ficou doente de inveja. Sua dor cobriu o mundo com uma névoa úmida e cinzenta.

Refugiado em uma dobra do manto paterno, Uru chorava e chorava por não ter sido útil em nada aos pais e aos irmãos. Para que ninguém percebesse suas lágrimas, escondia-as em cestas e mais cestas. Mas Tane tudo percebera:

- Uru, meu irmão, preciso de sua ajuda!

- Nada tenho para dar, você bem sabe!

- Ora, Uru, você tem tantas cestas...

Surpreso e com medo de ser descoberto em sua fraqueza, Uru abaixou a cabeça: - Não tem nada dentro delas, irmão.

Tane avançou e destampou uma das cestas. Dela voaram luzes faiscantes e risonhas para todos os lados. As lágrimas de Uru haviam se transformado em crianças-luz (para nós, estrelas)!

- Uru, será que você podia me ceder duas de suas cestas? Seus filhos poderiam enfeitar e iluminar a morada de nosso pai...

Uru concordou. As duas cestas foram passadas para Te Waka o Tamareriti, uma canoa muito especial. Tane conduziu a canoa até o céu, espalhando sobre o manto de Rangi milhares de estrelinhas que riam e piscavam umas para as outras o tempo todo.

Quando Tane ia pegar a segunda cesta, esta tombou e se abriu, deixando as estrelas se espalharem numa grande faixa chamada Ikaroa, que cruzou o céu de lado a lado (para nós, a Via Láctea). Tane deixou Ikaroa e Waka o Tamareriti (que é a cauda da nossa constelação do Escorpião) no espaço celeste, onde se tornaram os guardiães das estrelas.


Lenda Maori recontada por Maria de la Luz. Publicada na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril.

O rei que virou vaca

    Certa vez, um rei convocou os nobres da corte e declarou que era um vaca. Os nobres ficaram assustados. O soberano disse mais: desejava ser morto e ter sua carne cortada e distribuída ao povo.

    Achando que o rei havia enlouquecido, os nobres convocaram os principais médicos do reino. Remédios e unguentos foram experimentados mas, infelizmente, sem nenhum resultado.

    Enquanto isso, o monarca piorava. Mugia o dia inteiro. Sujava o chão do palácio. Dez vez em quando, saía galopando, dando coices e cabeçadas.

    Passado um tempo, o rei chamou novamente seus principais nobres e ministros. Parecia contrariado. Esbravejou. Disse que, porque suas ordens não haviam sido cumpridas, a partir daquele dia não ia comer mais nada.

    Uma nuvem negra pousou no futuro do reino. O povo, angustiado, acompanhava o drama de seu querido rei, cada vez mais magro, fraco e abatido.

    Um dia, um famoso cientista apareceu no reino. Diziam que era um grande médico. Diziam que era um filósofo capaz de lidar com os mais intrincados segredos da alma humana.

    O sábio foi ao palácio examinar o rei. Deitado na cama, o monarca repetiu ao médico suas alucinações. Mugiu. Confirmou que era uma vaca. Confirmou que seu único desejo era ser morto, cortado e ter sua carne distribuída ao povo.

    Coçando a longa barba, o sábio declarou que o rei tinha razão. Ordens reais eram leis que precisavam ser cumpridas imediatamente. Em seguida, abrindo a porta, chamou o açougueiro.

    Um homem imenso, vestido de branco, entrou no quarto com uma faca na mão. Perguntou onde estava a tal vaca.

    - Estou aqui! - gemeu o soberano, exultante, com os olhos alegres de loucura.

    O açougueiro aproximou-se da cama. Levantou, cuidadoso, a perna fina e branca do monarca. Balançou a cabeça, decepcionado. Aquela vaca estava magra demais. De que adiantava matar um animal que era só pele e osso? Cortar o quê? Distribuir o quê?

    - Primeiro - aconselhou ele -, é necessário que essa vaca aprenda a se cuidar, a comer, dormir direito e caminhar pelas montanhas, até ficar forte, alegre e cheia de saúde.

    Dizendo que só voltaria quando a vaca estivesse no ponto certo, o açougueiro guardou a faca e foi embora.

    A partir desse dia, o rei decidiu alimentar-se de novo. Aos poucos, foi engordando, as cores voltaram a brilhar em seu rosto, ficou forte e acabou esquecendo de vez que um dia havia sido vaca.


Versão de um conto popular recontado por Ricardo Azevedo publicado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Outubro de 1999.

sábado, 6 de agosto de 2022

Cruz de Provações

    Anotas, angustiado, as ocorrências afligentes da existência e não podes sopitar as exclamações de pessimismo, considerando-te desditoso.

    Referes-te a enfermidades dilaceradoras que te alcançaram durante a existência física e arrolas os sofrimentos morais que te surpreenderam, inúmeras vezes, aturdindo-te e desencorajando-te.

    Registras soledade nos momentos ásperos, como se a tua vida não tivesse qualquer significado para aqueles que te cercam no grupo familial ou social no qual te demoras.

    Consideras as ingratidões que te feriram a alma, reiteradas vezes, partidas de pessoas às quais brindaste afeto, enriquecendo-lhes as horas de devotamento, de bondade e de alegria.

    Muitas vezes, foste surpreendido pela calúnia infeliz que te azucrinou as horas, recebendo a bofetada do descrédito que te não poupou os valores morais íntimos.

    Em outras ocasiões, foste surpreendido pela ironia de pessoas simpáticas em quem confiavas, relatando-lhes os limites e problemas, de que então se utilizaram para levar-te à praça da zombaria.

    Sentes cansaço; agora acalentas o tédio, a desconfiança, entregando-te à decepção.

    Reage e reflexiona com isenção de ânimo.

    Esta é a tua cruz de provações.

    Todas as criaturas transitam no mundo sob madeiros pesados, que lhes arrebentam as resistências, afligindo-as, amedrontando-as. Todavia, não é esta a finalidade deles, alguns invisíveis, portanto, mais dilaceradores.

    Ignoras as dores ocultas do teu próximo, que se encontra atirado sobre catres misérrimos ou imobilizado por paralisias insidiosas, irrecuperáveis.

    Não sabes das decepções que asfixiam os portadores do mal de Hansen, da Aids, da decomposição orgânica em vida, nem das macerações da alma, que empurraram para os pélagos da loucura verdadeiras multidões...

    A dor, na Terra, ainda é processo expurgador de mil delitos que não foram justiçados e de vícios hediondos que permaneceram ocultos.

    A Misericórdia de Deus faculta ao espírito calceta recuperar-se pelo sofrimento, depurar-se mediante a cruz das provações, em cujas traves reconsidera atitudes, programa atividades dignificantes, alça-se ao bem.

    Assim mesmo, não são poucos aqueles que, ao invés de retemperarem o ânimo na forja da agonia, deixam-se consumir pelas chamas da revolta, que somente piora e própria situação.

    Aberto à Vida está o amor. Todavia, ei-lo vilipendiado no chão da mesquinhez e na promiscuidade do primitivismo.

    Possuidor dos recursos de edificação, é posto nos desvãos de delinquência, permanecendo nos porões do vício...

    O amor, no entanto, é o hífen de ligação do homem com o seu irmão e com Deus, quando logra permear de vida aquele que se lhe permite penetrar.

    Deste modo, se te sentes atado à cruz das provações dolorosas, adorna-a com as flores do amor fraterno, transformando as tuas dores em fontes de esperança em relação ao futuro.

    Com resignação dinâmica, supera os momentos mais graves e alegra-te, tendo em mente que dos braços dessa cruz te alçaras mais rapidamente à elevadas esferas da libertação.


Retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 5ª Edição, 2014.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Folhas Secas

    Eu estava dando uma aula de Matemática e todos os alunos acompanhavam atentamente. Todos?

    Quase: Carolina equilibrava o apontador na ponta da régua, Lucas recolhia as borrachas dos vizinhos e construía um prédio, Renata conferia as canetas e os lápis do seu estojo vermelhíssimo e Hélder olhava para o pátio.

    O pátio? O que acontecia no pátio?

    Após o recreio, dona Natália varria calmamente as folhas secas e amontoava e guardava tudo dentro de um enorme saco plástico azul. Terminando o varre-varre, dona Natália amarrou a boca do saco plástico e estacionou aquele bafuá de folhas secas perto do portão. Hélder observava atentamente. E eu observava a observação de Hélder - sem descuidar da minha aula de Matemática. De repente, Hélder foi arregalando os olhos e franzindo a testa.

    Qual o motivo do espanto?

    Hélder percebeu alguma coisa no meio das folhas movendo-se desesperadamente, com aflição, sufoco, falta de ar. Hélder buscava interpretações para a cena, analisava possibilidades, mas o perfil do passarinho já se delineava na transparência azul do plástico. Um pássaro novo tinha caído do ninho e, confundido-se com as folhas secas, foi varrido e agora lutava pela liberdade.

    - Ele tá preso!

    O grito de Hélder interrompeu o final da multiplicação de 15 por 127. Todos os alunos olhavam para o pátio. E todos nós concordamos, sem palavras: o bico do passarinho tentava romper aquela estranha pele azul. Hélder saiu da sala e nós fomos atrás. E antes que eu pudesse pronunciar a primeira sílaba da palavra "calma", o saco plástico simplesmente explodiu, as folhas voaram e as crianças pularam de alegria.

    Alguns alunos dizem que havia dois passarinhos presos. Outros viram três passarinhos voando felizes e agradecidos. Lucas diz que era um beija-flor. Renata insiste que era uma cigarra. Eu, sinceramente, só vi folhas secas voando.

    E, para concluir esta inesquecível aula de Matemática, pegamos vassouras, pás e sacos plásticos e fomos varrer novamente o pátio.


Conto de Francisco Marques (Chico dos Bonecos) publicado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Novembro de 1999.

Anunciação

Na bruma leve das paixões que vem de dentro

Tu vens chegando pra brincar no meu quintal

No teu cavalo peito nu cabelo ao vento

E o sol quarando nossas roupas no varal

Tu vens tu vens

Eu já escuto os teus sinais

A voz do anjo sussurrou no meu ouvido

E eu não duvido já escuto os teus sinais

Que tu virias numa manhã de domingo

Eu te anuncio nos sinos da catedral


Música de Alceu Valença que faz parte do então LP Anjo Avesso, gravado em 1983 e lançado pelo Gravadora Ariola. Relançado, posteriormente em CD em uma caixinha com três títulos: os discos de 1981 (Cinco Sentidos), 1983 (Anjo Avesso) e 1984 (Mágico). Os outros LPs desse época foram relançados de forma avulsa...

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

A dança do arco-íris

    Há muito tempo, vivia sobre uma planície de nuvens uma tribo muito feliz. Como não havia solo para plantar, só um emaranhado de fios branquinhos e fofos como algodão-doce, as pessoas se alimentavam da carne de aves abatidas com flechas, que faziam amarrando em feixe uma porção dos fios que formavam o chão. De vez em quando, o chão dava uma sacudidelas, a planície inteira corcoveava e diminuía de tamanho, como se alguém abocanhasse parte dela.

    Certa vez, tentando alvejar uma ave, um caçador errou a pontaria e a flecha se cravou no chão. Ao arrancá-la, ele viu que se abrira uma fenda, através da qual pôde ver que lá embaixo havia outro mundo.

    Espantado, o caçador tampou o buraco e foi embora. Não contou sua descoberta a ninguém.

    Na manhã seguinte, voltou ao local da passagem, trançou uma longa corda com os fios do chão e desceu até o outro mundo. Foi parar no meio de uma aldeia onde uma linda índia lhe deu as boas-vindas, tão surpresa em vê-lo descer do céu quanto ele de encontrar criatura tão bela e amável. Conversaram longo tempo e o caçador soube que a região onde ele vivia era conhecida por ela e seu povo como "o mundo das nuvens", formado pelas águas que evaporavam dos rios, lagos e oceanos da terra. As águas caíam de volta como uma cortina líquida, que eles chamavam de chuva.

    "Vai ver, é por isso que o chão lá de cima treme e encolhe", ele pensou. Ao fim da tarde, o caçador despediu-se da moça, agarrou-se à corda e subiu de volta para casa. Dali em diante, todos os dias ele escapava para encontrar-se com a jovem. Ela descreveu para ele os animais ferozes que havia lá embaixo. Ele disse a ela que lá no alto as coisas materiais não tinham valor nenhum.

    Um dia, a jovem deu ao caçador um cristal que havia achado perto de uma cachoeira. E pediu para visitar o mundo dele. O rapaz a ajudou a subir pela corda. Mal tinham chegado lá nas alturas, descobriram que haviam sido seguidos pelos parentes dela, curiosos para ver como se vivia tão perto do céu.

    Foram todos recebidos com uma grande festa, que selou a amizade entre as duas nações. A partir de então, começou um grande sobe-e-desce entre céu e terra. A corda não resistiu a tanto trânsito e se partiu. Uma larga escada foi então construída e o movimento se tornou ainda mais intenso. O povo lá de baixo, indo a toda a hora divertir-se nas nuvens, deixou de lavrar a terra e de cuidar do gado. Os habitantes lá de cima pararam de caçar pássaros e começaram a se apegar às coisas que as pessoas de baixo lhes levavam de presente ou que eles mesmos desciam para buscar.

    Vendo a desarmonia instalar-se entre sua gente, o caçador destruiu a escada e fechou a passagem entre os dois mundos. Aos poucos, as coisas foram voltando ao normal, tanto na terra como nas nuvens. Mas a jovem índia, que ficara lá em cima com seu amado, tinha saudade de sua família e de seu mundo. Sem poder vê-los, começou a ficar cada vez mais triste. Aborrecido, o caçador fazia tudo para alegrá-la. Só não concordava em reabrir a comunicação entre os dois mundos: o sobre-e-desce recomeçaria e a sobrevivência de todos estaria ameaçada.

    Certa tarde, o caçador brincava com o cristal que ganhara da mulher. As nuvens começaram a sacudir sob seus pés, sinal de que lá embaixo estava chovendo. De repente, um raio de sol passou pelo seu cristal e se abriu num maravilhoso arco-íris que ligava o céu e a terra. Trocando o cristal de uma mão para outra, o rapaz viu que o arco-íris mudava de lugar.

    - Iuupii! - gritou ele. - Descobri a solução para meus problemas!

    Daquele dia em diante, quando aparecia o sol depois da chuva, sua jovem mulher escorregava pelo arco-íris abaixo e ia matar a saudade de sua gente. Se alguém lá de baixo se metia a querer visitar o mundo das nuvens, o caçador mudava a posição do cristal e o arco-íris saltava para outro lado. Até hoje, ele só permite a subida de sua amada. Que sempre volta, feliz, para seus braços.


Lenda indígena recontada por João Anzanello Carrascoza retirada da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, dezembro de 1999.

Homem invisível no mundo invisível

 Vejo o mundo inteiro

Numa espécie tosca de carrossel

Cada lugar um bicho

Corrida maluca pra pagar o aluguel


Nesse consumismo

Plastificado o rosto, amor, religião

Carregando status

Num mundo invisível angustiado cidadão


Parem esse mundo que eu quero descer

Tudo é dinheiro e o amor pra onde vai

Quero um abraço dos meus bons amigos, pois

Nenhum dinheiro compra um verdadeiro

Mestre de luz, saúde e proteção

Seus pensamentos são a sua condição

Se você não acredita no mundo invisível

Como é que explica se te toca a minha voz

Se a minha voz te toca


Quando se está cansado

Repare que tudo acontece pra te testar

Sua dignidade

Mantenha sua inteligência, caráter, persistência

Mestres de luz conduzindo cada um de nós

Dessa nossa vida levaremos apenas nossa poesia


Parem esse mundo que eu quero descer...


Música de Vanessa da Mata que faz parte do seu CD Segue o Som, lançado pela Gravadora Sony Music em parceria com o selo dela intitulado Jabuticaba no ano de 2014.