segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Dia de Passeata

    - Eu vou, a menos que você me impeça à força - decidiu a menina.

    O pai, desolado, não sabia o que fazer para convencê-la:

    - Minha filha, você está sendo levada pelo entusiasmo. Ouça a voz da experiência. Minha geração começou em passeatas e acabou na tortura. Amanhã, quando um soldado perder a cabeça e atirar contra um estudante, vocês trocarão Alegria, Alegria por hinos fúnebres. Não é com manifestações de rua que o governo será derrubado. Fique em casa.

    - Não, pai, toda a escola combinou de participar. Não vou ficar de fora, como se eu apoiasse o governo.

    - Quem semeia vento colhe tempestade - advertiu o pai. - Hoje, nas ruas, tudo parece festa, mas amanhã haverá choro e ranger de dentes. Pode ter certeza: se for, sua ficha na polícia ficará suja.

    - Suja? Por quê? O que faço de errado?

    O pai, sentando-se bem junto à menina, como se as paredes tivessem ouvidos, explicou:

    - Disfarçada de fotógrafos de jornais, a polícia registra todas as passeatas, sem que um só manifestante deixe de ser retratado. Depois, as fotos são ampliadas e cada rosto identificado. Daqui a alguns anos, quando estiver formada na faculdade, pode ser que você seja preterida num emprego sem que lhe deem um motivo convincente. Vai ver, a empresa consultou a polícia e foi informada de que a pretendente tem um passado subversivo.

    - Ora, pai, isso já era. Agora estamos em plena democracia. Como vão saber que aquele rosto pintado de verde-amarelo nas faces e risco preto na testa é o meu?

    - O coronel Pafúncio identifica - argumenta o pai numa cartada final.

    - Esse nosso vizinho? Ele nem é mais da ativa, pai. O senhor acha que ele ainda está preocupado em caçar comunistas?

    - Nunca se sabe, filha. Essa gente é treinada para se fazer de boba. Você vê o coronel aí do lado cuidando de passarinhos e limpando gaiolas, como se não tivesse outra preocupação na vida. Não duvido nada que ele ganhe um dinheirinho extra informando tudo o que se passa aqui no prédio. Pode ficar certa, se amanhã você for à passeata, ele vai anotar seu nome.

    - Pois que anote, mas não ficarei de braços cruzados enquanto o governo afunda o país nesse mar de lama.

    Na manhã seguinte, toda equipada para a passeata, a menina deu de cara com o coronel no elevador. Olhou-o espantadíssima. De tênis, o home vestia camisa preta e trazia a bandeira do Brasil nas mãos.

    - Aonde é que o senhor vai assim, coronel?

    - À passeata, minha filha. Se a gente balançar, o governo cai.


Crônica de Frei Betto retirada do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, Agosto de 2003, 2ª Edição.


Em 2003 quando o livro foi lançado, o contexto verde e amarelo com bandeira do Brasil significava outra coisa. Hoje, nesses confusos dias de 2022, essas cores foram, inicialmente, "sequestradas" pela direita conservadora e seus apoiadores boçais. Felizmente, a esquerda também começou a utilizar a bandeira fazendo um contraponto a essa utilização inadequada...

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