sábado, 30 de março de 2024

Ergamo-nos (13)

 "Levantar-me-ei e irei ter com meu pai..." - (LUCAS, 15:18)


Quando o filho pródigo deliberou tornar aos braços paternos, resolveu intimamente levantar-se.

Sair da cova escura da ociosidade para o campo da ação regeneradora.

Erguer-se do chão frio da inércia para o calor do movimento reconstrutivo.

Elevar-se do vale da indecisão para a montanha do serviço edificante.

Fugir à treva e penetrar a luz.

Ausentar-se da posição negativa e absorver-se na reestruturação dos próprios ideais.

Levantou-se e partiu no rumo do Lar Paterno.

Quantos de nós, porém, filhos pródigos da Vida, depois de estragarmos as mais valiosas oportunidades, clamamos pela assistência do Senhor, de acordo com os nossos desejos menos dignos, para que sejamos satisfeitos? Quantos de nós descemos, voluntariamente, ao abismo e, lá dentro, atolados na sombria corrente de nossas paixões, exigimos que o Todo-Misericordioso se faça presente, ao nosso lado, através de seus divinos mensageiros, a fim de que os nossos caprichos sejam atendidos?

Se é verdade, no entanto, que nos achamos empenhados em nosso soerguimento, coloquemo-nos de pé e retiremo-nos da retaguarda que desejamos abandonar.

Aperfeiçoamento pede esforço.

Panorama dos cimos pede ascensão.

Se aspiramos ao clima da Vida Superior, adiantemo-nos para a frente, caminhando com os padrões de Jesus.

- Levanter-me-ei, disse o moço da parábola.

- Levantemo-nos, repitamos nós. 


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 29 de março de 2024

Primavera em campo de batalha

Sozinho no bunker em longa vigília, pensava nas cerejeiras que agora estariam florindo nos campos da sua terra. Via-se deitado de costas sobre o chão pedregoso, debaixo da espuma branca em que as abelhas  zumbiam atarefadas enquanto o perfume escorria pelas encostas.

Perseguindo a lembrança, pegou o giz das anotações e desenhou uma branca flor de cerejeira sobre a parede de cimento. Depois outra. Mais outra. Outra ainda. Até o cinzento desaparecer, anulados na floração paredes e teto.

Deitado de costas sobre o cimento, debaixo daquela espuma branca, aspirou fundamente. Mas o perfume só lhe submergiu a cabeça quando, pela estreita seteira do bunker, começaram a entrar as abelhas.


Texto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

quinta-feira, 28 de março de 2024

A companhia dos amigos

O jogo estava marcado para as 10 horas, mas começou quase 11. O time de Ipanema e Leblon tinha alguns elementos de valor, como Aníbal Machado, Vinícius de Morais, Lauro Escorel, Carlos Echenique, o desenhista Carlos Thiré, e um cunhado do Aníbal que era um extrema-direita tão perigoso que fui obrigado a lhe dar uma traulitada na canela para diminuir-lhe o entusiasmo. Eu era beque do Copacabana e atrás de mim o guardião e pintor Di Cavalcanti. Na linha média e na atacante jogavam um tanto confusamente Augusto Frederico Schmidt, Fernando Sabino, Orígenes Lessa, Newton Freitas, Moacir Werneck de Castro, o escultor Pedrosa, o crítico Paulo Mendes Campos. Não havia juiz, o que facilitou muito a movimentação da peleja, que se desenrolou em três tempos, ficando convencionado que houve dois jogos. Copacabana venceu o primeiro por 1x0 (houve um gol anulado porque Di Cavalcanti declarou que passara por cima da trave; e, como não havia trave, ninguém pôde desmentir). O segundo jogo também vencemos, por 2 a 1. Esse 1 deles foi feito passando sobre o meu cadáver. Senti um golpe no joelho, outro nos rins e outro na barriga; elevei-me no ar e me abati na areia, tendo comido um pouco da mesma.

A torcida era composta de variegadas senhoras que ficavam sob as barracas e chupavam melancia. Uma saída do center-forward Scmidt (passando a bola gentilmente para trás, para o center-half) e uma defesa de Echenique foram os instantes de maior sensação.

Carlos Drummond de Andrade deixou de comparecer, assim como outros jogadores do Copacabana, como Sérgio Buarque de Holanda e Chico Assis Barbosa. Afonso Arinos de Melo Franco jogará também no próximo encontro, em que o Leblon terá o reforço de Fernando Tude e Édison Carneiro, além de Otávio Dias Leite e outros. Joel Silveira mora em Botafogo, mas como sua casa é perto do Túnel Velho jogará no Copacabana.

Assim nos divertimos nós, os cavalões, na areia. As mulheres riam de nosso "prego". Suados, exaustos de correr sob o sol terrível na areia quente e funda, éramos ridículos e lamentáveis, éramos todos profundamente derrotados. Ah, bom tempo em que eu jogava um jogo inteiro - um meia-direita medíocre mas furioso - e ainda ia para casa chutando toda pedra que encontrava no caminho.

Depois mergulhamos na água boa e ficamos ali, uns 30 homens e mulheres, rapazes e moças, a bestar e conversar na praia. Doce é a  companhia dos amigos; doce é a visão das mulheres em seus maiôs, doce é a sombra das barracas; e ali ficamos debaixo do sol, junto ao mar, perante as montanhas azuis. Ah, roda de amigos e mulheres, esses momentos de praia serão mais tarde momentos antigos. Um pensamento horrivelmente besta, mas doloroso. Aquele amará aquela, aqueles se separarão; uns irão para longe, uns vão morrer de repente, uns vão ficar inimigos. Um atraiçoará, outro fracassará amargamente, outro ainda ficará rico, distante e duro. E de outro ninguém mais ouvirá falar, e aquela mulher que está deitada, rindo tanto sua risada clara, o corpo molhado, será aflita e feia, azeda e triste.

E houve o Natal. Os Bragas jamais cultivaram com muito ardor o Natal; lembro-me que o velho sempre gostava de reunir a gente num jantar, mas a verdade é que sempre faltava um ou outro no dia. Nossas grandes festas eram São João e São Pedro - em São João havia fogueira no quintal, perto do grande pé de fruta-pão, e em São Pedro, padroeiro da cidade, havia uma tremenda batalha naval aérea inesquecível de fogos de artifício. Hoje não há mais nem São João, nem São Pedro, e continua não havendo Natal. Tomei um suco de laranja e fui dormir. A cidade estava insuportável, com milhões de pessoas na rua, os caixeiros exaustos, os preços arbitrários, o comércio, com o perdão da palavra, lavando a égua, se enchendo de dinheiro. Terá nascido Cristo para todo ano dar essa enxurrada de dinheiro aos senhores comerciantes, que já em novembro começam a espreitar o pequenino berço na estrebaria com um olhar cupido?

Atravessarei o ano na casa fraterna de Vinícius de Moraes. Estaremos com certeza bêbados e melancólicos - mas, em todo caso, meus amigos,  se eu não ficar melancólico farei ao menos tudo para ficar bêbado. Como passam os anos! Ultimamente têm passado muitos anos. Mas não falemos nisso.


Crônica de Rubem Braga retirado do livro 200 Crônicas Escolhidas - As melhores de Rubem Braga, Editora Record, 9ª Edição, Rio de Janeiro, 1993.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Inferno Nacional

A historinha abaixo transcrita surgiu no folclore de Belo Horizonte e foi contada lá, numa versão política. Não é o nosso caso. Vai contada aqui no seu mais puro estilo folclórico, sem maiores rodeios.

Diz que era uma vez um camarada que abotoou o paletó. Em vida o falecido foi muito dado à falcatrua, chegou a ser candidato a vereador pelo PTB, foi diretor de instituto de previdência, foi amigo do Tenório, enfim... ao morrer nem conversou: foi direto para i Inferno. Em lá chegando, pediu audiência s Satanás e perguntou:

- Qual é o lance aqui?

Satanás explicou que o Inferno estava dividido em diversos departamentos, cada um administrado por um país, mas o falecido não precisava ficar no departamento administrado pelo seu país de origem. Podia ficar no departamento do país que escolhesse. Ele agradeceu muito e disse a Satanás que ia dar uma voltinha para escolher o seu departamento.

Está claro que saiu do gabinete do Diabo e foi logo para o departamento dos Estados Unidos, achando que lá devia ser mais organizado o inferninho que lhe caberia para toda a eternidade. Entrou no departamento dos Estados Unidos e perguntou como era o regime ali.

- Quinhentas chibatadas pela manhã, depois passar duas horas num forno de duzentos graus. Na parte da tarde: ficar numa geladeira de cem graus abaixo de zero até as três horas, e voltar ao forno de duzentos graus.

O falecido ficou besta e tratou de cair fora, em busca de um departamento menos rigoroso. Esteve no da Rússia, no do Japão, no da França, mas era tudo a mesma coisa. Foi aí que lhe informaram que tudo era igual: a divisão em departamento era apenas para facilitar o serviço no Inferno, mas em todo lugar o regime era o mesmo: quinhentas chibatadas pela manhã, forno de duzentos graus durante o dia e geladeira de cem graus abaixo de zero pela tarde.

O falecido já caminhava desconsolado por uma rua infernal, quando viu um departamento escrito na porta: Brasil. E notou que a fila à entrada era maior do que a dos outros departamentos. Pensou com suas chaminhas: "Aqui tem peixe por debaixo do angu". Entrou na fila e começou a chatear o camarada da frente, perguntando por que a fila era maior e os enfileirados menos tristes. O camarada da frente fingia que não ouvia, mas ele tanto insistiu que o outro, com medo de chamarem a atenção, disse baixinho:

- Fica na moita, e não espalha não. O forno daqui está quebrado e a geladeira anda meio enguiçada. Não dá mais de trinta e cinco graus por dia.

- E as quinhentas chibatadas? - perguntou o falecido.

- Ah... o sujeito encarregado desse serviço vem aqui de manhã, assina o ponto e cai fora.


Crônica de Stanislaw Ponte Preta retirada do livro Dois amigos e um chato, Coleção Veredas, Editora Moderna,  26ª Edição, 1997, São Paulo.

terça-feira, 26 de março de 2024

Sequestro Moral

São Tomás de Aquino, teólogo do século 13, adverte que a morte simbólica é pior do que a morte física, pois a primeira convoca a vítima a ser testemunha de seu opróbrio, como ocorre na tortura. Os políticos de direita no Brasil, desprovidos dos recursos de coerção física que a ditadura lhes assegurava, como prisões arbitrárias e assassinatos, introduziram uma nova modalidade em nossa conjuntura: o sequestro moral.

Com requintes de fazer inveja ao Comando Vermelho, os autores do sequestro moral escolhem sempre como vítimas um político em ascensão, na iminência de ocupar o poder que a elite conservadora sempre considerou seu monopólio. Não é preciso agarrar a vítima na rua ou arrastá-la de sua casa. Basta encontrar quem esteja disposto, por dinheiro ou cumplicidade ideológica, vir a público prestar falso testemunho, induzindo a população, através da mídia, a crer que Lula é um pai desalmado ou Brizola vinculado, através de sua filha, ao tráfico internacional de drogas. Confinadas ao acesso restrito aos meios de comunicação, que costumam abrir mais espaço à versão do fato do que à evidência do desmentido, as vítimas são obrigadas a arcar com o prejuízo da dúvida e a pagar um alto resgate para recuperar a boa reputação a que têm direito.

Os autores do sequestro moral são ídolos com pés de barro. Prometem na vida pública uma coisa e fazem outra na privada. Quando a notícia vaza, a preocupação não é apurar responsabilidades, mas avaliar o seu impacto junto à opinião pública. Vox populi, vox Dei, ensinavam os romanos. Se, como os gregos, a população é capaz de absorver as fraquezas dos deuses do Olimpo, deixa-se de lado a ética e reforça-se o princípio de que moral é tudo aquilo que favorece os vencedores. Política é política, amigos, anônimos, escondidos sob as benesses do poder, tramando o desvio de milhões de dólares do patrimônio público para a iniciativa privada. E, no entanto, numa inversão de todos os critérios morais, rola a cabeça de quem teve a dignidade de denunciar a maracutaia, num aviso inequívoco de que devem guardar absoluto silêncio todos aqueles que se locupletam no banquete dos marajás.

A imprensa são os olhos e os ouvidos de uma nação. Mas ela tem o dever de não se calar quando a autoridade constituída extrapola suas obrigações e, em abuso de poder, compromete a reputação alheia. Leviano não é só quem acusa sem fundamento, mas também quem dá à acusação um espaço que não é aberto ao acusado. Talvez manuais de ética sejam hoje mais úteis em certas redações dos meios de comunicação do que tantas coleções de manuais de redação e de estilo, mais apropriadas ao currículo escolar.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

sábado, 23 de março de 2024

Impedimentos (12)

 "Pondo de lado todo o impedimento... corramos com perseverança a carreira que nos está proposta." - Paulo. (HEBREUS, 12.1)


Por onde transites, na Terra, transportando o vaso da tua fé a derramar-se em boas obras, encontrarás sempre impedimentos a granel, dificultando-te a ação.

Hoje, é o fracasso nas tentativas iniciais de progresso.

Amanhã, é o companheiro que falha.

Depois, é a perseguição descaridosa ao teu ideal.

Afligir-te-ás com o fel de muitos lábios que te merecem apreço.

Sofrerás, de quando em quando, a incompreensão dos outros.

Periodicamente encontrarás na vanguarda obstáculos mil, induzindo-te à inércia ou à navegação.

A carreira que nos está proposta, no entanto, deve desdobrar-se no roteiro do bem incessante...

Que fazer com as pessoas e circunstâncias que nos compelem ao retardamento e à imobilidade?

O apóstolo dos gentios responde, categórico:

"Pondo de lado todo o impedimento."

Colocar a dificuldade à margem, porém, não é desprezar as opiniões alheias quando respeitáveis ou fugir à luta vulgar. É respeitar cada individualidade, na posição que lhe é própria, é partilhar o ângulo mais nobre do bom combate, com a nossa melhor colaboração pelo aperfeiçoamento geral. E, por dentro, na intimidade do coração, prosseguir com Jesus, hoje, amanhã e sempre, agindo e servindo, aprendendo e amando, até que a luz divina brilhe em nossa consciência, tanto quanto inconscientemente já nos achamos dentro dela.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Do Carmo

Encontro na praia um velho amigo. Há anos que a vida nos jogou para lados diferentes, em profissões diversas; e nesses muitos anos apenas nos vimos ligeiramente uma vez ou outra. Mas aqui estamos de tanga, em pleno sol, e cada um de nós tem prazer em constatar que não envelheceu sozinho. E cata, com amável ferocidade, os sinais de decadência do outro. Lamentamo-nos, mas por pouco tempo; logo, num movimento de bom humor, resolvemos descobrir que,  afinal de contas, nossa idade é confortável, e mesmo, bem pensadas as coisas, estimável. Quem viveu a vida sem se poupar, com a alma e o corpo, e recebeu todas as cargas em seus nervos, pode conhecer, como nós dois, essa vaga sabedoria animal de envelhecer sem remorsos.

Lembramos os amigos de quinze a vinte anos atrás. Um enlouqueceu, outro morreu de beber, outro se matou, outro ficou religioso e muito rico, há outros que a gente encontra às vezes numa porta de cinema ou numa esquina de rua.

E Do Carmo?

Respondo que há uns dez anos atrás, quando andava pelo Sul, tive notícias de que ela estava na mesma cidade; mas não a vi. Nenhum de nós sabe que fim levou essa Maria do Carmo de cabelos muitos negros e olhos quase verdes, a alta e bela Do Carmo. E sua evocação nos comove, e quase nos surpreende, como se, de súbito, ela estivesse presente na praia e estirasse seu corpo lindo entre nós dois, na areia. Falamos de sua beleza; nenhum de nós sabe que história pessoal o outro poderia contar sobre Do Carmo, mas resistimos sem esforço à tentação de fazer perguntas; não importa o que tenha havido; afinal foi com outro homem, nem eu, nem ele,  que Do Carmo partiu para seu destino; e a verdade é que deixou nele e em mim a mesma lembrança misturada de adoração e de encanto.

Não teria sentido reencontrá-la hoje; dentro de nós ela permanece como um encantamento, em seu instante de beleza. Maria do Carmo "é uma alegria para sempre", e sua lembrança nos faz mais amigos.

Depois falamos de negócios, família, política, a vida de todo o dia. Voltamos ao nosso tempo, regressamos a hoje, tornamos a voltar. E de súbito corremos para a água e mergulhamos, com o vago sentimento de que essa água sempre salgada, impetuosa e pura, não limpa somente a areia do nosso corpo; tira também um pouco a poeira que na alma vai deixando a passagem das coisas e do longo tempo.


Crônica de Rubem Braga retirado do livro 200 Crônicas Escolhidas - As melhores de Rubem Braga, Editora Record, 9ª Edição, Rio de Janeiro, 1993.

domingo, 17 de março de 2024

A escola educa?

Numa tribo indígena não existe a escola como um momento separado. Todo o cotidiano é um processo educativo. O aparecimento da escola, como um momento do cotidiano, está ligado à progressiva divisão social do trabalho. Na medida em que a convivência social tornou-se mais complexa, o cotidiano compartimentou-se em momentos específicos, cada um deles como um sistema autônomo, com sua lógica e regras próprias.

Ninguém espera que a família ou o clube ensine álgebra ou química. Não se espera também que a escola dê educação sexual, considerada tarefa familiar. Essa divisão cartesiana ou funcionalista dos processos pedagógicos tampouco contempla e entrelaçamento das esferas, pois a família nem sempre se integra na função de complementaridade escolar. Mesmo a religião é tida como esfera à parte. O resultado desse processo é a fragmentação da realidade. Cada vez se percebe menos o mundo em que se vive. Estabelece-se a dicotomia entre a fome de pão e de beleza. Educa-se para saciar a primeira, sem considerar o sentido mesmo da existência.

O processo educacional abarca, numa concepção totalizante, quatro dimensões: transmissão do patrimônio cultural, despertar das potencialidades espirituais, reflexão sobre o que se vive e capacidade de modificar a realidade. Hoje, a escola restringe-se à primeira dimensão. O acesso ao saber justifica-se por razões de ordem instrumental. Alijado da criatividade e da reflexão, transforma-se em processo de domesticação intelectual. Basta conferir os livros didáticos que já vêm com respostas às questões levantadas, como se fossem universais, neutras, sem implicações ideológicas. Daí a perplexidade quando a resposta do educando não coincide com a da editora ou a do autor. Não se admite que uma mesma questão possa ter diferentes soluções. Assim, a aprendizagem confina-se na memorização, com a mera reprodução do saber.

Filha da tradição cartesiana, a escola só se preocupa com a pessoa do pescoço para cima. Desconsidera pois o vasto leque de potencialidades não estritamente intelectuais, mas lúdicas, artísticas e espirituais, que não podem ser trabalhadas ao nível dos conceitos. Acentua-se a divisão entre o saber intelectual e o experimental. A escola, ao separar o espaço do aprendizado do espaço da existência, impede o sujeito de pensar o cotidiano com suas implicações. Essas aparecem fragmentadas, como se o assalto a banco não tivesse nenhuma relação com a política salarial nem as medalhas de ouro conquistadas numa Olimpíada com o investimento na área social.

Questões fundamentais são ignoradas pela escola, como a relação do educando com doenças, fracassos, frustrações medos e mortes. Diante das situações-limite da vida reina o silêncio. Educa-se para a competitividade e o sucesso e não para tecer laços de solidariedade que amenizem situações conflitivas. Em suma, falta à escola abordar o sentido da existência.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

sábado, 16 de março de 2024

A nós o coração suplementar

Quem anuncia é um cientista chamado Adrian Kantrowitz. O homem se propõe a utilizar um tubo de borracha, ligado à corrente sanguínea, através do qual é automaticamente posto a funcionar um aparelho elétrico fora do corpo, que ajudará o funcionamento do coração, quando este começar a ratear, seja por falta de forças, seja por excesso de trabalho. A isto o cientista dá o nome de "coração suplementar".

Bonito nome, hein? Coração Suplementar! Claro, o doutor falou que se experimento poderá ser aperfeiçoado a ponto de cada um, um dia, poder adquirir o seu coração suplementar. E então a gente fica imaginando como seria bom se esse coração, além de ajudar o funcionamento do coração principal nas suas funções fisiológicas, ajudasse também nas suas funções sentimentais.

Ah... como isto seria admirável! Um coração suplementar para satisfazer a doce amada, com quem gostaríamos de deixar o coração durante todas as horas, as alegres e as tristes, as decisivas ou as dúbias, as certas ou as indefinidas, qualquer hora enfim, porque a ela pertence o nosso coração que pulsa sentimento.

Mas ele mora num quarto conjugado junto com aquele que pulsa sangue e que é preciso levar para o ouro e o pão; impossível separá-los na dura lida, que onde vai um vai outro, unidos e tão inúteis um para o outro, em seus destinos tão diversos.

Meu Deus, como eu estou hoje!

Que venha o coração suplementar e que o doutor seja tão genial a ponto de definir as funções dando a um os prosaicos afazeres e ao outro as lidas do sentimento. E que o suplementar fique sendo aquele e o principal fique sendo este.

E aí então, oh, meu amor, você não vai reclamar mais a angústia maior da minha ausência, porque eu chegarei feliz para dizer que tenho de ir ali e volto já, mas acrescentando com toda a sinceridade d'alma:

- Até já, querida! Deixo aqui contigo o meu coração principal!


Crônica de Stanislaw Ponte Preta retirada do livro Dois amigos e um chato, Coleção Veredas, Editora Moderna,  26ª Edição, 1997, São Paulo.

Glorifiquemos (11)

 "Ora, a nosso Deus e Pai  seja dada glória para todo o sempre." - Paulo (FILIPENSES, 4:20.)


Quando o vaso se retirou da cerâmica, dizia sem palavras:

- Bendito seja o fogo que me proporcionou a solidez.

Quando o arado se ausentou da forja, afirmava em silêncio:

- Bendito seja o malho que me deu forma.

Quando a madeira aprimorada passou a brilhar no palácio, exclamava, sem voz:

- Bendita seja a lâmina que me cortou cruelmente, preparando-me a beleza.

Quando a seda luziu, formosa, no templo, asseverava no íntimo:

- Bendita seja a feia lagarta que me deu vida.

Quando a flor se entreabriu, veludosa e sublime, agradeceu, apressada:

- Bendita a terra escura que me encheu de perfume.

Quando o enfermo recuperou a saúde, gritou, feliz:

- Bendita seja a dor que me trouxe a lição do equilíbrio.

Tudo é belo, tudo é grande, tudo é santo na casa de Deus.

Agradeçamos a tempestade que renova, a luta que aperfeiçoa, o sofrimento que ilumina.

A alvorada é maravilha do céu que vem após a noite na Terra.

Que em todas as nossas dificuldades e sombras seja nosso Pai glorificado para sempre.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 13 de março de 2024

Viver perigosamente

Cresce a síndrome do medo. São exceções os que ousam pregar no carro este adesivo que pode ser comprado em camelôs: "Gosto de viver perigosamente. Moro no Rio." Isso vale para São Paulo, Belo Horizonte e qualquer outra grande capital. O medo, como um vírus, toma conta dos nervos e das mentes das pessoas. Medo de assalto, o que induz o cidadão a tornar-se de sua própria casa, trancada com mil chaves, dotada de alarme de segurança e quebrada, no visual, pelas grades que cobrem as janelas.

Fui prisioneiro da ditadura militar e lembro do macabro ritual das visitas semanais. Cada familiar submetido ao vexame de revistas humilhantes, as comidas fatiadas, as latas perfuradas e até os ovos quebrados por amostragem. Identificação, pertences deixados na portaria, chamada do preso, trancas e portas num abrir e fechar que ressoava, metálico, no fundo da alma. Os "terroristas" metiam medo na cabeça paranoica da repressão, desconfiada de que um pedaço de bolo poderia conter dinamites.

Hoje, o medo é provocado pelo desconhecido. Tia Liloca, quando recebe visitas, repete o ritual do presídio: o porteiro do prédio deve exigir identidade, o nome é anunciado por interfone, o elevador destrancado no andar em que ela mora, o visitante conferido pelo olho mágico e, por fim, suas fechaduras de roliças chaves dentadas abertas uma a uma.

Doença do momento é a agorafobia - medo de lugares públicos. Teme-se que a praça esconda ladrões atrás das árvores, fantasmas desfilem pelas ruas à noite e crianças pedintes se transformem em perigosos assaltantes ao se aproximar do carro. Cresce o número de pessoas que preferem não sair à noite, jamais usam joias e entram em pânico se alguém se dirige a elas para perguntar onde fica tal avenida. O homem é, enfim, o lobo do homem.

De onde vem tanto medo? Da sociedade que nos abriga, marcada por abissal desigualdade. Se não somos iguais em direitos e nas mínimas condições de vida, por que se espantar com reações diferentes? Como exigir polidez de um homem que sente na pele a discriminação racial e, na pobreza, a social? Como esperar um sorriso de uma criança que, no barraco em que mora, vê o pai desempregado descarregar a bebedeira na surra que dá na mulher? A discriminação humilha e a humilhação gera ressentimento, amargura e revolta. Cada pessoa relegada involuntariamente à pobreza é uma bomba de efeito retardado. A TV acabou com aquele tipo de pobre abnegado que, na minha infância, passava de casa em casa recolhendo restos de comida e roupas velhas. Agora, todos são indistintamente atingidos pelo mesmo - e poderoso - apelo de consumo, que nos quer hedonistas, consumistas e narcisistas.

Nenhum animal teme o seu semelhante. Exceto o bicho homem e mulher. Justamente porque a elite que manda neste país nos impõe a dessemelhança. O objetivo é o lucro e não uma nação saudável, culta e soberana. O que importa é especular, e não produzir. Emprego vira loteria, e salário, esmola.

"Quem vive sob o domínio do medo nunca será livre", dizia Horácio. O contrário do medo não é a coragem, é a fé. Não apenas religiosa, mas cívica, política, utópica. Acreditar que o futuro possa ser melhor e diferente. "Sem medo de ser feliz."


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

domingo, 10 de março de 2024

Tia Quitéria e os telejornais

Tia Quitéria jamais perde o Jornal Nacional. Às oito da noite em ponto, ei-la à frente do televisor, as mãos úmidas, o coração palpitante, à espera do Cid Moreira. Acredita piamente que o locutor cara-da-Globo se enamorou dela. Tentei convencê-la do contrário. "Observe como me olha; veja como suspira ao me ver aqui!" Não há jeito. Há 25 anos, tia Quitéria flerta com o apresentador global que, nesse quarto de século, trocou os cabelos pretos por brancos, adquiriu rugas, tornou-se menos ágil na fala. Envelhece com a Globo, que já não sabe produzir humor, oferece prato requentado tipo Xuxa, afoga notícias em cosméticos e não se envergonha de sua compulsão governista.

Tarde da noite, minha tia cochila entre agulhas de crochê enquanto aprecio a elegante irreverência de Lilian Wite Fibe. Não é um mero apêndice vivo da emissora nem um simples transmissora de notícias. Tem presença própria e flexão inteligente na voz, o que lhe permite dar um toque crítico, quiçá irônico, às novidades que, na boca de Sérgio Chapelin, ressoam apenas como locução anasalada do texto. Moreira e Chapelin sabem modular a entonação da voz. São ótimos à publicidade. Lilian modula o próprio conteúdo da notícia. Não se restringe a emitir, interpreta, como o fazia Joelmir Betting em seus tempos de Bandeirantes.

Nisso tia Quitéria e eu estamos de acordo: na Globo, Joelmir perdeu a sua marca registrada, a fina ironia articulada em metáforas bem-humoradas. Quitéria lamenta que, agora, ele pouco sorri e já não imprime à voz e aos gestos as flexões de outrora. Engessado pelo padrão global de oficialidade, trocou as estocadas de um pugilista pela calculada postura de árbitro das oscilações da economia.

Quando liga no Bóris Casoy, tia Quitéria afasta a cristaleira. Receia que tamanha corpulência, que ocupa toda a tela tropece em algum fio do estúdio e caia do lado de cá, dentro da sala. Enfático, Bóris transcende as notícias. Livre para opinar, seu moralismo cívico ajuda-nos a cultivar a virtude da indignação e sua parcialidade política faz-nos sonhar com um telejornal que ofereça as várias versões de um mesmo fato.

Por fidelidade ao Cid Moreira, minha tia recusa-se a ir para a cama com o Jô Soares. Notívago, curto o espetáculo. Jô é multimídia. Não anda, baila; não fala, entretém; não pergunta, questiona. Culto e inteligente, informa e forma com a vantagem de possuir talento artístico. Faça sol ou chuva, seu  bom humor se irradia. Jamais o veremos com aquela indisfarçável depressão que contagiou os apresentadores da Globo logo após o caso Ricúpero.

Da Manchete, tia Quitéria comenta que Carlos Chagas jamais envelhece, sequer um fio branco no bigode farto. Professoral, ele daria um bom diretor de escola, diz ela. Não gosto de seu inveterado pessimismo quando se trata de notícias favoráveis aos setores progressistas. "Impeachment de Collor?" exclamou certa feita com seu costumeiro tom interrogativo. E concluiu: "Não passa de sonho de uma noite de verão". Para a felicidade geral da nação, equivocou-se. Minha tia está convencida de que Márcia Peltier é uma princesa sem coroa. Destituída também da emoção, ela não perde o sorriso angelical nem quando fala de tragédia. Se fechar o sorriso, não fica séria, fica triste.

Tia Quitéria acha o Chico Pinheiro com cara de ator de cinema, sem o talento interpretativo de Marília Gabriela, que somatiza a notícia. Ele transmite os fatos de olho no papel. Marília o faz de olho no telespectador. Porém, que se cuide. Minha tia promete que, se Marília enfiar aquela caneta  na cara dela, vai lá no estúdio dar-lhe uns tabefes.

Tia Quitéria tem saudades do rádio antes do advento da televisão. Os locutores não tinham rosto, mas a notícia tinha cara, sotaque, personalidade e aparente neutralidade. Na TV, o visual pasteurizado da maioria do apresentadores deixa a impressão de que eles insistem em se sobrepor à notícia. É o jogo da sedução televisiva fragilizando a informação jornalística. Tia Quitéria é incapaz de se lembrar de uma única notícia transmitida ontem pelo Cid Moreira. Mas adora o modo que ele olha nos olhos dela.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

sábado, 9 de março de 2024

Certamente (10)

 "Certamente cedo venho." - (APOCALIPSE, 22:20.)


Quase sempre, enquanto a criatura humana respira na carne jovem, a atitude que lhe caracteriza o coração para com a vida é a de uma criança que desconhece o valor do tempo.

Dias e noites são curtos para a internação em alegrias e aventuras fantasiosas. Engodos mil da ilusão efêmera lhe obscurecem o olhar e as horas se esvaem num turbilhão de anseios inúteis.

Raras pessoas escapam de semelhante perda.

Geralmente, contudo, quando a maturidade aparece e a alma já possui relativo grau de educação, o homem reajusta, apressado, a conceituação do dia.

A semana é reduzida para o que lhe cabe fazer.

Compreende que os mesmos serviços, na posição em que se encontra, se repetem a determinados meses do ano, perfeitamente recapitulados, qual ocorre às estações de frio e calor, floração e frutescência para a Natureza.

Agita-se, inquieta, desdobra-se, no afã de multiplicar as suas forças para enriquecer os minutos ou ampliá-los, favorecendo as próprias energias.

E, comumente, ao termo da romagem, a morte do corpo surpreende-o nos ângulos da expectativa ou do entretenimento, sem que lhe seja dado  recuperar os anos perdidos.

Não te embrenhes, assim, na selva humana, despreocupado de tua habilitação à luz espiritual, ante o caminho eterno.

No penúltimo versículo do Novo Testamento, que é a Carta do Amor Divino para a Humanidade, determinou o Senhor fosse gravada pelo apóstolo a sua promessa solene: - "Certamente, cedo venho."

Vale-te, pois, do tempo e não te faças tardio na preparação.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 2 de março de 2024

Estejamos Contentes (9)

 "Tendo, porém, sustento e com que nos cobrirmos, estejamos com isso contentes." - Paulo. (I TIMÓTEO, 6:8.)


O monopolizador de trigo não poderá abastecer-se à mesa senão de algumas fatias de, para saciar as exigências da sua fome.

O proprietário da fábrica de tecidos não despenderá senão alguns metros de pano para a confecção de um costume, destinado ao próprio uso.

Ninguém deve alimentar-se ou vestir-se pelos padrões da gula e da verdade, mas sim de conformidade com os princípios que regem a vida em seus fundamentos naturais.

Por que esperas o banquete, a fim de ofereceres algumas migalhas ao companheiro que passa faminto?

Por que reclamas um tesouro de moedas na retaguarda, para seres útil ao necessitado?

A caridade não depende da bolsa. É fonte nascida no coração.

É sempre respeitável o desejo de algo possuir no mealheiro para socorro do próximo ou de si mesmo, nos dias de borrasca e insegurança, entretanto,, é deplorável a subordinação da prática do bem ao cofre recheado.

Descerra, antes de tudo, as portas da tua alma e deixa que o teu sentimento fulgure para todos, à maneira de um astro cujos raios iluminem, balsamizem, alimentem e aqueçam...

A chuva, derramando-se em gotas, fertiliza o solo e sustenta bilhões de vidas.

Dividamos o pouco, e a insignificância da boa-vontade, amparada pelo amor, se converterá com o tempo em prosperidade comum.

Algumas sementes, atendidas com carinho, no curso dos anos, podem dominar glebas imensas.

Estejamos alegres e auxiliemos a todos os que nos partilhem a marcha, porque, segundo a sábia palavra do apóstolo, se possuímos a graça de contar com o pão e com o agasalho para cada dia, cabe-nos a obrigação de viver e servir em paz e contentamento.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.