domingo, 17 de março de 2024

A escola educa?

Numa tribo indígena não existe a escola como um momento separado. Todo o cotidiano é um processo educativo. O aparecimento da escola, como um momento do cotidiano, está ligado à progressiva divisão social do trabalho. Na medida em que a convivência social tornou-se mais complexa, o cotidiano compartimentou-se em momentos específicos, cada um deles como um sistema autônomo, com sua lógica e regras próprias.

Ninguém espera que a família ou o clube ensine álgebra ou química. Não se espera também que a escola dê educação sexual, considerada tarefa familiar. Essa divisão cartesiana ou funcionalista dos processos pedagógicos tampouco contempla e entrelaçamento das esferas, pois a família nem sempre se integra na função de complementaridade escolar. Mesmo a religião é tida como esfera à parte. O resultado desse processo é a fragmentação da realidade. Cada vez se percebe menos o mundo em que se vive. Estabelece-se a dicotomia entre a fome de pão e de beleza. Educa-se para saciar a primeira, sem considerar o sentido mesmo da existência.

O processo educacional abarca, numa concepção totalizante, quatro dimensões: transmissão do patrimônio cultural, despertar das potencialidades espirituais, reflexão sobre o que se vive e capacidade de modificar a realidade. Hoje, a escola restringe-se à primeira dimensão. O acesso ao saber justifica-se por razões de ordem instrumental. Alijado da criatividade e da reflexão, transforma-se em processo de domesticação intelectual. Basta conferir os livros didáticos que já vêm com respostas às questões levantadas, como se fossem universais, neutras, sem implicações ideológicas. Daí a perplexidade quando a resposta do educando não coincide com a da editora ou a do autor. Não se admite que uma mesma questão possa ter diferentes soluções. Assim, a aprendizagem confina-se na memorização, com a mera reprodução do saber.

Filha da tradição cartesiana, a escola só se preocupa com a pessoa do pescoço para cima. Desconsidera pois o vasto leque de potencialidades não estritamente intelectuais, mas lúdicas, artísticas e espirituais, que não podem ser trabalhadas ao nível dos conceitos. Acentua-se a divisão entre o saber intelectual e o experimental. A escola, ao separar o espaço do aprendizado do espaço da existência, impede o sujeito de pensar o cotidiano com suas implicações. Essas aparecem fragmentadas, como se o assalto a banco não tivesse nenhuma relação com a política salarial nem as medalhas de ouro conquistadas numa Olimpíada com o investimento na área social.

Questões fundamentais são ignoradas pela escola, como a relação do educando com doenças, fracassos, frustrações medos e mortes. Diante das situações-limite da vida reina o silêncio. Educa-se para a competitividade e o sucesso e não para tecer laços de solidariedade que amenizem situações conflitivas. Em suma, falta à escola abordar o sentido da existência.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

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