quarta-feira, 13 de março de 2024

Viver perigosamente

Cresce a síndrome do medo. São exceções os que ousam pregar no carro este adesivo que pode ser comprado em camelôs: "Gosto de viver perigosamente. Moro no Rio." Isso vale para São Paulo, Belo Horizonte e qualquer outra grande capital. O medo, como um vírus, toma conta dos nervos e das mentes das pessoas. Medo de assalto, o que induz o cidadão a tornar-se de sua própria casa, trancada com mil chaves, dotada de alarme de segurança e quebrada, no visual, pelas grades que cobrem as janelas.

Fui prisioneiro da ditadura militar e lembro do macabro ritual das visitas semanais. Cada familiar submetido ao vexame de revistas humilhantes, as comidas fatiadas, as latas perfuradas e até os ovos quebrados por amostragem. Identificação, pertences deixados na portaria, chamada do preso, trancas e portas num abrir e fechar que ressoava, metálico, no fundo da alma. Os "terroristas" metiam medo na cabeça paranoica da repressão, desconfiada de que um pedaço de bolo poderia conter dinamites.

Hoje, o medo é provocado pelo desconhecido. Tia Liloca, quando recebe visitas, repete o ritual do presídio: o porteiro do prédio deve exigir identidade, o nome é anunciado por interfone, o elevador destrancado no andar em que ela mora, o visitante conferido pelo olho mágico e, por fim, suas fechaduras de roliças chaves dentadas abertas uma a uma.

Doença do momento é a agorafobia - medo de lugares públicos. Teme-se que a praça esconda ladrões atrás das árvores, fantasmas desfilem pelas ruas à noite e crianças pedintes se transformem em perigosos assaltantes ao se aproximar do carro. Cresce o número de pessoas que preferem não sair à noite, jamais usam joias e entram em pânico se alguém se dirige a elas para perguntar onde fica tal avenida. O homem é, enfim, o lobo do homem.

De onde vem tanto medo? Da sociedade que nos abriga, marcada por abissal desigualdade. Se não somos iguais em direitos e nas mínimas condições de vida, por que se espantar com reações diferentes? Como exigir polidez de um homem que sente na pele a discriminação racial e, na pobreza, a social? Como esperar um sorriso de uma criança que, no barraco em que mora, vê o pai desempregado descarregar a bebedeira na surra que dá na mulher? A discriminação humilha e a humilhação gera ressentimento, amargura e revolta. Cada pessoa relegada involuntariamente à pobreza é uma bomba de efeito retardado. A TV acabou com aquele tipo de pobre abnegado que, na minha infância, passava de casa em casa recolhendo restos de comida e roupas velhas. Agora, todos são indistintamente atingidos pelo mesmo - e poderoso - apelo de consumo, que nos quer hedonistas, consumistas e narcisistas.

Nenhum animal teme o seu semelhante. Exceto o bicho homem e mulher. Justamente porque a elite que manda neste país nos impõe a dessemelhança. O objetivo é o lucro e não uma nação saudável, culta e soberana. O que importa é especular, e não produzir. Emprego vira loteria, e salário, esmola.

"Quem vive sob o domínio do medo nunca será livre", dizia Horácio. O contrário do medo não é a coragem, é a fé. Não apenas religiosa, mas cívica, política, utópica. Acreditar que o futuro possa ser melhor e diferente. "Sem medo de ser feliz."


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

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