sábado, 25 de fevereiro de 2023

Sexo e Força

Ante o sexo, defrontas a vida.

Fonte geradora de energias, é aparelho pelo qual se expressam os estalos de primitivismo e de elevação característicos de cada Espírito.

A conduta com que o utilizes, tornar-se-á motivo de encarceramento ou de libertação para ti mesmo.

Fator de estímulos e de forças, pode converter-se em central de desgaste orgânico quanto de alucinação. Controlado, é dínamo fomentador de vitalidade e saúde. Em desequilíbrio, infelicita e compromete por largo período.

Governado pela mente, que o deve conduzir com respeito e dignificação, às vezes se expressa violento com o potencial do instinto de que se reveste.

Impulso que surge inesperado, sob disciplina mantém-se em calma, proporcionando bem-estar e alegria.

O mau uso de que tem sido objeto é responsável por verdadeiras calamidades para o indivíduo, tanto quanto para o organismo social.

Responderás, ante a própria consciência, pelas induções e seduções sexuais que estimules.

O parceiro, a quem atrais e encorajas, estabelecerá contigo uma ligação psíquica e emocional que não romperás com facilidade, não obstante quando, saturado dele, interrompas a comunhão física... O que lhe suceda, a partir daí, terás a ver, na área da responsabilidade espiritual.

Cada criatura é, psicologicamente, o que remanesce do seu passado espiritual.

No que tange ao sexo, a pessoa reflete, no presente, o comportamento que se permitiu no passado. Por essa razão, as necessidades se exteriorizam de forma variada, esperando educação e vigilância

Desse modo, tem cuidado antes de te comprometeres, evitando enovelares-te nas teias complicadas das paixões brutalizadoras.

Da mesma forma, não imponhas as tuas necessidades a outrem, no que diz respeito às funções sexuais, liberando-te de futuros remorsos que te consumirão interiormente.

O ardor arrebatado sempre cede lugar ao cansaço, à indiferença, ao extenuamento...

Dirige as tuas forças genésicas como quem produz um veículo com freios inseguros: sempre vigilante, canalizando-as para a sustentação dos ideais de enobrecimento e das lutas de elevação moral.

De forma alguma iludidas a quem desejes, promovendo armadilhas e situações que se transformarão em problemas para ti mesmo.

Enriquece o teu sexo com o estímulo do amor, a fim de que este o controle com sabedoria e nobreza.

Respeita os companheiros que se te apresentem atormentados ou que se situam em posições diferentes da tua.

Não os censures, nem os explores.

Todos estão realizando experiências: uns se edificam; outros retificam; diversos se complicam...

Cada qual sabe quanto lhe custa a situação em que se encontra.

Sê bondoso para com todos, sem te manteres conivente com ninguém.

Se alguém te acusa de desvio de conduta ou de qualquer outra razão, recorda-te de que o fazendo com autoridade, a si mesmo se complica, pois que em tal experiência ambos os cômpares se encontram na mesma faixa vibratória e posição moral.

Segue adiante, enfrentando a tua luta libertadora, e não odeies ou te deixes desesperar ante as imposições do sexo.

Exercita equilíbrio, corrige a onda mental e vence o tempo.

Confiando em deus e fazendo o melhor ao teu alcance, lograrás utilizar-te corretamente desta abençoada usina de forças, que é o sexo a serviço da vida.


Retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Enfermidades

Consideremos as enfermidades sob três aspectos: do corpo, da mente e do Espírito.

As do corpo são resultado de infecções, traumatismos físicos, acidentes, degeneração celular.

As da mente englobam os fenômenos psicológicos, expressando-se em forma de conflitos, insatisfação, desajustes, alienações.

As do Espírito, com maior profundidade, relacionam-se com o próprio comportamento na atual ou em existências passadas, das quais procede no seu programa evolutivo.

As pessoas preocupam-se em demasia por solucionar os males que as afligem, sem uma preocupação mais consciente a respeito das causas que os desencadeiam, realizando uma terapia preventiva, pela morigeração dos hábitos e desregramentos dos abusos de toda natureza, tendo-se em vista que os fenômenos pungentes e dolorosos remontam às matrizes morais enraizadas no Espírito.

Instalada a enfermidade, faz-se inevitável o tratamento específico, recorrendo-se às terapias próprias, compatíveis com as circunstâncias.

Não obstante, para a saúde espiritual, e, portanto, para as doenças que do Espírito derivam, tornam-se imprescindível uma reprogramação dos valores da vida, alterando-se o comportamento em profundidade.

Entre as doenças mais graves da área do Espírito, destaquemos a indiferença, a soberba, o ódio, o ciúme, a falta de finalidade aplicada à existência, o esquecimento e desrespeito às divinas e às humanas leis.

Em todo processo de enfermidades, e mesmo nas que decorrem do fatores morais e circunstanciais - acidentes, choques - há uma forte causalidade no ser espiritual.

A reparação das peças orgânicas e equipamentos psicológicos, sem uma correspondente alteração de conduta íntima, resulta inócua e de efêmero resultado.

Não removido o elemento causador do distúrbio, este muda de forma ou lugar, permanecendo inalterado.

Reforma o quadro das tuas aspirações humanas, considerando a tua realidade eterna, eliminando do teu mapa de comportamento o egoísmo, a ansiedade, a ira, o medo, o ódio, a luxúria.

Esses raios destrutivos, que deles emanam, produzem a degenerescência das células, em face do bombardeio mental que padecem.

A cegueira sistemática a respeito da finalidade transcendental da vida é também responsável por males incontáveis no corpo, na mente, na alma.

Indispensável combater essa virose insidiosa que destrói as defesas da existência, possuindo o poder de mutações constantes, que a apresentam com variadas e insuspeitáveis características.

O conhecimento e consequente respeito aos mecanismos de funcionamento da vida alterarão por completo a tua maneira de ser, brindando-te saúde real, partindo da emoção para o corpo com excelente harmonia interior.

Sobrepondo o Espírito ao corpo, Jesus jamais enfermou, demonstrando a grandeza da saúde verdadeira e conclamando-nos à vitória sobre os atavismos negativos e paixões inferiores.


Retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Necessidades Reais

Onde situes os teus interesses, em torno deles circularão as tuas necessidades.

Onde tenhas o pensamento, ali porás a emoção.

Indispensável repensar as aspirações de maneira a fixar apenas aquelas que trabalham para a tua realização profunda.

A ambição conduz ao tresvario.

A avareza leva à mesquinharia.

A sensualidade brutaliza.

A indolência entorpece os sentimentos.

A gula desajusta a máquina orgânica.

O egoísmo encarcera o ser.

O orgulho envenena o homem.

O vício destrambelha os equipamentos do corpo e da alma.

O ódio enlouquece a criatura.

O ciúme deforma a visão da realidade.

O que mais anelas e pensas, corporifica-se e passa a dominar-te interiormente.

Tens um compromisso com a vida, assim como esta dispõe de uma tarefa para ti.

Ausculta as tuas necessidades reais e olha em derredor.

Possuis mais do que precisas, enquanto muitos carecem mais do que dispõem.

Não apenas em recursos materiais, mas, também, em conhecimentos, educação, discernimento, capacidade de serviço, razão...

Há no mundo mais escassez de paz do que de pão.

Há mais solidão do que companheirismo.

Faltam mais os valores morais do que os bens materiais.

Estes últimos são os defeitos infelizes dos primeiros.

[...] E porque são escassas a equanimidade e a justiça, abundam a miséria e a ignorância.

Não postergues indefinidamente o teu momento de entrega, de pôr-te em relação com o melhor tesouro, pois onde o depositares, aí estará o teu coração, conforme acentuou Jesus, facultando-te ou não felicidade.


Retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

A língua do santo

A oralidade nas religiões afrobrasileiras é um inportante veículo de transmissão dos conhecimentos, sendo seu uso um dos principais mecanismos reguladores das relações de poder e reciprocidade estabelecidas pelos adeptos entre si e destes com suas divindades: orixás, caboclos, pretos-velhos e outros guias.

A palavra é considerada fonte imanente de axé, força vital, mas é a sua pronúncia no ato da fala que movimenta as forças sagradas. Isso porque a palavra dita não se separa do sujeito que a pronuncia, seja alguém imbuído de legitimidade religiosa outorgada pelo grupo, seja a própria divindade incorporada em seu filho ou médium.

A fala comunica, movimenta e localiza os indivíduos na ordem  social e cosmológica, fornecendo os princípios de identidade daqueles que falam a mesma "língua do santo". E como toda língua compartilhada é potencialmente capaz de gerar comunidades ou nações, também a língua do santo está relacionada a uma comunidade, chamada de "povo de santo", com as suas diversas "nações" internas identificadas por meio dos modelos de ritos adotados pelos terreiros: queto, jeje, angola, etc.


Nos Terreiros


A língua-do-santo originou-se de um conjunto amplo de expressões e fragmentos de línguas étnicas africanas e possui valores semânticos próprios, muitas vezes diferentes daqueles de sua origem africana. Elaborada originalmente no interior dos terreiros, com o passar do tempo espalhou-se para além das comunidades religiosas e muitos dos seus termos tornaram-se parte da língua cotidiana falada pelo povo.

A música popular brasileira e as instituições a ela relacionadas foram importantes divulgadoras dessas expressões, tais como os nomes dos orixás (Exu, Ogum, Iemanjá, Xangô, Iansã), termos associados às oferendas (despacho, ebó), aos ritos iniciáticos (fazer a cabeça), aos instrumentos musicais e seus estilos e ritmos (agogô, atabaque, afoxé), às comidas rituais (acarajé, amalá), às saudações (saravá, mojubá), aos qualificativos de beleza ou força (odara, axé) e de confusão ou coisas ruins (quizila, encosto, demanda, carrego).

Diferentemente da escrita, a fala (seja para coletar as folhas dos orixás, proferir rezas ou oriquis, consagrar a iniciação religiosa por meio das invicações ou anunciar a presença divina) não se perpetua no tempo a não ser pela sua repetição, que deve estar associada a momentos e espaços próprios (religiosos). Considerando que ela é produziada a partir do sopro (emi), visto como um dos elementos sagrados que compõem a pessoa no candomblé, o falar é um ato ritual que denota o princípio vital que anima o corpo. Por isso, nas religiões afro-brasileiras raramente se reza em silêncio.


Sons do Corpo


Da mesma forma, outros sons produzidos pelo corpo, como o paó (palmas cadenciadas usadas para saudar orixás e os mais velhos), ou a própria música cantada e percurtida nos atabaques para chamar os orixás à terra, expressam o valor que o ato de falar, rezar, cantar e tocar adquire como forma de contato com o sagrado.

No candomblé, por isso, deve-se aprender ouvindo e vendo o que os mais velhos dizem e fazem, sendo a curiosidade malvista pela comunidade.

O símbolo da importância da fala é assinalada na iniciação quando o iaô (iniciado) é apresentado numa festa pública com a cabeça raspada e uma pena vermelha de papagaio amarrada à testa. Essa pena denota, entre outras coisas, a importância da fala (associada ao papagaio) como forma de sacralização. É nesse momento que o orixá diz seu nome sagrado em público pela primeira vez.

Nessa visão, o conhecimento, ainda que possa ser particularizado, é percebido por interconexões cujo aprendizado e manipulação dependem da visão de conjunto que se obtém ao longo da experiência total de inserção do iniciado no cotidiano da vida do terreiro. Essas interconexões, contudo, ao caracterizarem o patrimônio cultural dos grupos em forma de uma memória social  coletiva e pessoal, não devem ser entendidas como formas acabadas e irreversíveis. As "novas interpretações" do conhecimento ritual tradicional podem assumir (e frequentemente assumem) grande importância no fornecimento de acréscimos, inteligibilidade e dinamismo às tradições.

Por esses aspectos, avalia-se a dificuldade de sistematização dessas tradições de forma não conflitante com a ordem de transmissão oral dos conhecimentos religiosos e com a manutenção do axé apoiado na fala e no segredo ritual; principalmente quando se considera que a oralidade, ao menos como forma de aquisição e retenção de conhecimento, vem se tornando cada vez menos legítima diante do valor do saber escrito instituído nos processos de educação formal de massa.


Escrita e Fé


No contexto dos terreiros, escrita e religião tenderiam a se opor, porque a força da palavra está em sua pronunciação, no contexto da experiência vivida. Entretanto, sistematizações (ou codificações escritas) existem e pelas formas assumidas denunciam transformações significativas no modo como essas religiões têm sido pensadas e particadas seja no interior dos terreiros, seja na confluência destes com o mundo exterior.

Uma das formas de sistematização do conhecimento, por exemplo, é a utilização, pelo povo de santo, dos chamados "cadernos de fundamentos", escritos por eles mesmos para reter de maneira segura os conhecimentos que são adquiridos com o passar do tempo e que são utilizados cotidianamente nas inúmeras e minuciosas tarefas religiosas, que devem ser executadas numa ordem necessária e com elementos definidos

Os "cadernos de fundamentos", em geral, contêm anotações como os procedimentos de iniciação dos orixás, rezas, fórmulas de oferendas, receitas, utilização de folhas sagradas e os nomes dos odus e seus significados no jogo de búzios.


Etnografias


Ao lado dos "cadernos de fundamentos", de uso pessoal e restrito, outra forma de sistematização escrita da religião, de acesso público, tem sido as etnografias realizadas nos terreiros brasileiros desde fins do século XIX. Essas etnografias, sobretudo quando publicadas em livro, possibilitam que parcelas do conhecimento oral do povo de santo seja registrado, podendo ser acessado de forma ampla. Livros de autores como Roger Bastide (O Candomblé da Bahia) e Pierre Verger (Orixás), entre outros, passam a ser cada vez mais procurados e lidos pelos religiosos, que os tomam frequentemente como modelos de culto justificando aspectos cotidianos do rito que praticam.

Assim, o texto acadêmico sobre essas religiões de tradição oral tende a registrar um processo que ele próprio, paradoxalmente, ao descrever, tem ajudado tanto a consolidar como a transformar, seja porque permite ao leitor religioso, que é muitas vezes o próprio produtor daquele conhecimento, refletir sobre suas práticas a partir do ponto de vista proposto pelo texto, ou porque generaliza o que é a visão particular de certos grupos que podem se utilizar dos livros que os descrevem como meio de legitimar e valorizar sua visão de mundo diante das demais.

Sendo os terreiros grupos religiosos altamente hierarquizados internamente, com posições internas estabelecidas segundo a idade de iniciação dos seus membros, a qual regula o acesso ao conhecimento ritual, o livro atua, ainda, de modo a facilitar o acesso dos iniciados ao acervo cultural da religião, atenuando num certo grau as dificuldades decorrentes da regra do segredo na transmissão oral do conhecimento religioso.

As etnografias vão constituindo, assim, o "corpus inscriptionum" da religião - seu corpo codificado. Sob este aspecto, as religiões afrobrasileiras encurtam também sua distância em relação àquelas religiões que podem exibir suas tradições codificadas (traduzidas, impressas e universalizadas) em livros sagrados, como o cristianismo e a Bíblia, o judaísmo e o Talmude ou a Torá, o islamismo e o Alcorão.


Ciência e Religião


O discurso científico (principalmente o antropológico), enfatizando suas afirmações como resultado de uma pesquisa baseada na obsevação participante e, portanto, numa perspectiva "desde dentro", busca assegurar a confiabilidade das informações perante os seus leitores ( entre os quais estão os religiosos). Mesmo porque muitos pesquisadores acabam participando também como religiosos da vida dos terreiros pesquisados e usando essa proximidade como forma de legitimar suas conclusões.

Ao lado da etonografia religiosa afro-brasileira de cunho científico, existe, ainda, outro tipo de literatura religiosa de divulgação crescente, principalmente nos grandes centros urbanos, cujos autores são em sua maioria autoridades religiosas (pais e mães de santo) que escrevem para um público não necessariamente acadêmico, mas sem dúvida já acostumado com esse tipo de veiculação da informação religiosa.

Para o grupo religioso, ter sua história registrada num livro representa sinal de valorização positiva de suas práticas e, para o pai de santo, publicar ou divulgar textos (muitas vezes, em congressos de religiosos e encontros científicos) pode significar sinal de legitimidade também no nível do saber escrito, além de uma inserção importante do religioso no "mundo dos parágrafos" que influem consideravelmente na dinâmica das tradições.

Por outro lado, muitos textos dessa literatura religiosa não tomam como modelo os trabalhos acadêmicos, seja na sua forma: não são exatamente etnografias de terreiros, seja nos seus objetivos: trata-se de textos que procuram fornecer uma série de informações religiosas básicas para orientar os leitores em práticas mágicas do tipo: como jogar búzios, fazer ebós ou despachos etc. Em muitos casos, essa literatura religiosa afro-brasileira impõe-se numa faixa do mercado editorial caracterizada por livros como o de São Cipriano, Cruz de Caravaca etc.


Dificuldades


O candomblé, ao transitar pelo mundo da escrita (que cada vez mais se transforma sob o impacto da tecnologia digital e da internet em que proliferam sites disponíveis sobre todas as religiões),  enfrenta, ainda, outras dificuldades.

Diferentemente da umbanda, que desde a origem e sob a influência do kardecismo tem procurado se codificar por meio dos livros e organizações burocráticas (chegando a ter hoje uma Faculdade de Teologia Umbandista em São Paulo), o candomblé tem procurado se legitimar baseando-se no carisma individual de suas lideranças e na ênfase das tradições orais tidas como originárias da África em épocas antigas e "conservadas" até hoje por meio da manutenção dos segredos rituais.

Dialeticamente, sendo uma religião gestada sobretudo no Brasil, o candomblé afirma-se por meio de sua origem africana e, estando  baseado na oralidade, cada vez mais a escrita e outros registros visuais desempenham papéis fundamentais na reprodução e divulgação nacional e internacional dos seus valores. Basta dizer que dois de seus maiores divulgadores, Pierre Verger e Carybé, foram atraídos para o candomblé após lerem romances de Jorde Amado, o mais divulgado escritor brasileiro, que escolheu o povo da Bahia e o candomblé como personagens de suas novelas.

Enfim, esses são alguns aspectos das relações contemporâneas entre oralidade e escrita nas religiões afro-brasileiras sobre as quais a ação dos sacerdotes, antropólogos, artistas, cantores, adeptos, orixás, editoras, jornais e revistas vem trazendo novas dinâmicas e alternando a funções da palavra na produção dos valores religiosos.

No candomblé se diz "Kosi ewe, Kosi orixá" ("sem folhas não há prixás"). Trata-se de referência à importância da natureza para a reprodução da religião. Mas não podemos deixar de notar que a palavra "folha" também pode designar o suporte da palavra escrita nos livros. Seria isso uma premonição?


A linguagem dos terreiros

Um glossário com as expressões usadas pelas religiões afro-brasileiras


* ABIÃ: Frequentador ou simpatizante do terreiro que ainda não foi iniciado.

* AMACI: Banho de ervas sagradas usado para purificação.

* AMALÁ: Comida à base de quiabo dedicada a Xangô, orixá masculino do raio e do trovão.

* AGÔ: Licença, permissão, perdão. "Agô, meu pai": dê-me licença, meu pai (pai-de-santo ou orixá).

* ASSENTAMENTO (OU IBÁ): Conjunto de objetos (pratos, ferro, búzios, pedra, etc.) que representa o orixá. "Assentar o santo" ou "Fazer a cabeça": submeter-se à iniciação.

* AXÉ: Energia vital. Força espiritual da natureza (em objetos inanimados, como pedras, ou animais e plantas), designa o poder de realização e a dinãmica das entidades.

* AXEXÊ: Cerimônia fúnebre do candomblé de rito nagô.

* BABA: "Pai", no candomblé, ou "mãe", na umbanda.

* BABALAÔ: Adivinho; praticante do jogos divinatórios.

* BABALORIXÁ: Sacerdote, pai-de-santo.

* BORI: Ritos para o fortalecimento espiritual da cabeça (ori) de uma pessoa, por meio de oferecimento de alimentos. "Dar comida ao ori".

* CAMBONO: Auxiliar do sacerdote ou dos médiuns incorporados na umbanda.

* CANDOMBLÉ: Culto ou invocação. Termo de origem banto, designa tanto as cerimônias públicas (festas e toques) como o local (templo) em que são realizadas.

* CONGÁ: Altar nos terreiros de umbanda. "Bater a cabeça no congá": saudar as entidades de seus altares tocando o chão com a cabeça.

* CORPO FECHADO: Proteção contra inimigos e má sorte obtida por meio dos rituais como a abertura de pequenas incisões na pele em que pós mágicos são inseridos.

* DECÁ: "Receber o decá" é submeter-se ao ritual do sétimo ano de iniciação, que confere ao adepto autorização para iniciar outros adeptos e tornar-se pai-de-santo.

* DEMANDA: Briga, desentendimento entre pessoas, terreiros ou orixás cuja explicação remete a questões espirituais.

* DESCARREGO: Ritos (banhos, passes, oferendas, etc.) para afastar as energias negativas e abrir os caminhos de uma pessoa.

* DESCER (OU BAIXAR): Receber em transe uma entidade espiritual.

* DESPACHO (OU EBÓ): Oferenda alimentar e/ou sacrifício de animal em homenagem à divindades para obter sua ajuda e proteção na solução de problemas. "Pisar num despacho": atrair má sorte.

* DIJINA (OU ORUNCÓ): Nome religioso, iniciático, com que são conhecidas e tratadas as pessoas no candomblé. Geralmente é composto por palavras de origem banto ou iorubá.

* EBOMI: Status do iniciado após a realização da cerimônia do decá.

* EGUM: Espírito dos mortos cultuado em terreiro dedicado ao culto de antepassados chamados de Egungun.

* ENCOSTO: Perturbações atribuídas aos maus espíritos ou às energias negativas.

* EQUEDE: Cargo do candomblé reservado às mulheres que não entram em transe. Uma de suas funções é auxiliar os membros do terreiro quando incorporados.

* FAZER OU RASPAR O SANTO: Iniciação no candomblé que consiste em diversos rituais privados (como raspagem do cabelo, sacralização do assentamento do orixá por sacrifício de animais, etc) e que termina com a apresentação do iniciado numa festa pública, a Saída-de-iaô.

* FILHO-DE-SANTO: Iniciado no candomblé que passa a pertencer a uma família-de-santo (com pai-de-santo, irmão-de-santo, tio-de-santo, primo-de-santo, etc).

* FUNDAMENTO: Conhecimento profundo e secreto sobre a religião que dá legitimidade ao ritual realizado.

* GIRA: Sessão de trabalho espiritual na umbanda. Viagem espiritual que o guia faz para buscar a causa de um problema (também conhecida como "girar o mundo").

* GUIA: Entidade protetora. Colar feito de fios de contas consagrado às entidades. "Girar com o guia": dançar ou trabalhar incorporado com uma entidade espiritual.

* HUNTÓ: Tocador de tambor no rito jeje de procedência Fon-Ewe.

* IAÔ: Iniciado do candomblé até o 7º ano de iniciação.

*INQUICE: Nome genérico das divindades nos terreiros de rito angola.

* IYALORIXÁ: Sacerdotisa. O mesmo que mãe-de-santo.

* JOGO DE BÚZIOS: Processo de adivinhação por meio de 16 búzios (conchas chamadas de cauris).

* LINHA: "Faixa de vibração espiritual" que agrupa as divindades e as identifica por cânticos, doutrinas ou rituais próprios.

* MOJUBÁ: Saudação, homenagem, tributo.

* NAGÔ: Proveniente da tradição iorubá.

* NOCHÊ: Mãe, no rito jeje.

* OBRIGAÇÃO: Cerimônias ou oferendas rituais feitas periodicamente.

* OBSESSÃO: Perturbação de origem espiritual.

* ODARA: Bonito, saudável, equilibrado, ereto, duro, grande.

* ODU: Destino, sorte, previsão. Nome genérico de cada uma das 16 possibilidades de arranjos obtidos no jogo de búzios, os odus principais. A cada odu está relacionado um conjunto de poemas (lendas) que descreve a vida e as atribuições dos orixás e de seus filhos. A identificação dos odus no jogo de búzios e o conhecimento de suas lendas permitem ao adivinho associá-las aos problemas ou ao destino do consulente.

* OGÃ: Homem que não entra em transe e ocupa cargos honoríficos.

* OGÃ E ALABÊ: Tocador de atabaques no candomblé.

* ORIXÁ: Nome genérico das divindades usado no terreiro de rito nagô ou queto.

* ORIQUI: Reza, saudação ou poema que relata a história dos orixás.

* OTÁ (OU OCUTÁ): Pedra sagrada que compõe o assentamento dos orixás.

* PAI OU MÃE-DE-SANTO: Pessoa que ocupa o mais alto grau da hierarquia religiosa.

* PAI-PEQUENO OU MÃE-PEQUENA: Auxiliar do pai ou da mãe de santo. A 2ª pessoa na hierarquia religiosa do terreiro.

* PASSE: Limpeza espiritual feita por entidade incorporada que se utiliza de imposição das mãos, fumaça de charuto, aspersão de líquidos, etc.

* PEJÍ: Lugar ou altar onde são colocados e cultuados os objetos sagrados das divindades do candomblé. Nos terreiros jejes é chamado de comé, valdencomi ou valdencó.

* PEMBA: Pó sagrado usado na purificação de ambientes.

* PONTO RISCADO: Desenho ou diagrama feito pela entidade espiritual no chão do terreiro contendo símbolos que a identificam.

* QUELÊ: Colar de contas usado rente aos pescoço por algumas semanas pelo iaô como símbolo da recente iniciação. "Estar de quelê" e "cumprir o quelê" designam a fase em que o iaô está sujeito às interdições rituais que ele deverá cumprir.

* QUETO: Proveniente da tradição iorubá.

* QUIZILA: Tabu ritual, temporário ou permanente, imposto ao iniciado. Desentendimento, briga, aversão.

* RONCÓ: Quarto ou lugar onde são realizados os rituais privados da iniciação.

* SUBIR: Despachar o santo, interromper o transe. "Cantar pra subir": cantar as cantigas de despedida (chamadas também de aunló) para que a entidade se despeça.

* TERREIRO: Templo onde são cultuadas as divindades. Conhecido como ilê, abassá, casa de santo, roça, centro, tenda ou cabana.

* TOI: Sacerdote ou pai de santo, no rito jeje.

* TOQUE OU TOQUE DE SANTO: Festa pública em homenagem às divindades ou à divindade homenageada ("Toque de Ogum"). Diz-se "Fazer ou dar um toque".

* VODUN: Nome genérico das divindades no terreiro de rito jeje.

* VODUNSI: Filha ou filho de santo no rito jeje


Texto de Vagner Gonçalves da Silva; professor de Antropologia da USP. Retirado da Revista Língua Portuguesa, Edição Especial Religião e Linguagem, Editora Segmento, São Paulo.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Encontro com o amor

Na sociedade contemporânea, conforme sucedeu na passada, o amor é um fenômeno emocional, que só raramente se expressa. Pelo menos, o amor na sua profunda significação.

Há variadas colocações para o amor que não passam de sentimentos confusos e buscas atormentadas, não significando ser a real conquista da evolução do indivíduo.

A palavra tem sido utilizada para mascarar estados íntimos desequilibrados e, não poucas vezes, para ocultar objetivos escusos.

Certamente existe o amor dos pais pelos filhos e destes por aqueles; o amor dos cônjuges e da família; da participação nas atividades solidárias; à ciência, à arte, ao desporto, à fé... No entanto, na maioria das vezes, o fenômeno do amor é atormentado, esvaziado, assinalado por altibaixos, sem a profundidade necessária para resistir aos vendavais dos acontecimentos humanos.

Ocorre que, num contexto de pessoas solitárias, conformistas ou rebeldes, há um receio injustificado de amar, a fim de cada uma poupar-se aos problemas do envolvimento afetivo que sempre se apresenta nesses relacionamentos.

Com a predominância do egoísmo, todos pretendem ser amados, não, porém, dispondo-se a amar, apesar das queixas em torno da questão.

Diversos sentimentos e interesses se apresentam na química moderna do amor, que se expressa sem os conteúdos reais da sua manifestação.

Normalmente, o amor é confundido com os impulsos sexuais, raramente amadurecidos e quase nunca portadores de objetivos construtivos. Torna-se uma mistura de interesses vulgares, com predomínio da busca das sensações a prejuízo das emoções enobrecidas.

Imprescindível, portanto, não confundir estas manifestações, dando-lhes as denominações correspondentes, que nada têm a ver com o amor.

O amor é um sentimento que brota espontâneo e deve ser cultivado, a fim de que se desenvolva, realizando o mister a que se destina.

Floresce através de ações benéficas, capazes de gerar alegria, bem-estar e progresso.

É altruísta sem alardear suas metas, impregnando todos aos quais se dirige.

Se não se deriva dos sentimentos profundos da alma, gera hostilidade, irritando-se facilmente e malogrando nas suas manifestações.

Quando o amor se exterioriza do coração, produz um encantamento em relação à pessoa querida, com altas doses de empatia responsável pelos sentimentos de doação, de sacrifício, de beleza.

É autoperceptivo, afirmando as suas mais belas possibilidades.

Libera o ser amado, que se movimenta sob estímulos enobrecedores, não exigindo servidão, antes impulsionando o outro ao crescimento emocional, moral e espiritual.

Não permite a dependência, que se torna um mecanismo de apoio, jamais uma forma de realização plenificadora.

A Humanidade registra a abnegação de homens e mulheres notáveis, cujas vidas, iluminadas pelo amor, tornaram-se exemplos edificantes, inolvidáveis.

Assim, aprende, também, a amar.

Deixa que o sentimento da amizade se irise de ternura e cresça em forma de amor. Com ele, tranquiliza-te, permitindo que a alegria do encontro te constitua emulação para o prosseguimento.

Quem experimenta o amor, nunca mais é o mesmo.

Constatarás que o amor é a meta que deves alcançar, entregando-te à sua realização, cada vez mais fácil e atraente, felicitando-te e á Humanidade em cujo contexto te encontras.


Texto retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Traídos pelo ouvido

O predomínio do som sobre o significado criou uma espécie de tradição "virundum" de letras cantadas propositalmente erradas.


Atire o primeiro vinil quem nunca cometeu um virundum. O termo é esdrúxulo, mas serve para designar as mudanças na letra original de uma música. Geralmente induzidas por audições desatentas, as letras ficam registradas de memória mais pela sonoridade do que pelo sentido, e desse jeito são entoadas.

A versão recorrente da origem do termo é de que foi cunhado a partir do primeiro verso do Hino Nacional. "Ouviram do Ipiranga, as margens plácidas" virou "o virundum (Ipiranga, as margens plácidas)", e hoje o tema motiva inúmeras trocas de relatos sobre a prática, sobretudo no mundo virtual de sites e blogs.

O mais conhecido desses sites especializados no gênero é não por acaso chamado de Virundum (www.virundum.com). No estrangeiro, o mesmo é feito pelo site americano Kiss this guy (www.kissthisguy.com), com as músicas em inglês, é claro.


EXEMPLOS


No universo virundum, o homem de Mesmo que seja eu, aquele que a musa de Erasmo Carlos deve chamar de seu, acaba batizado: passa a ser "uma homem para chamar Dirceu".

Outro clássico do virundum é Noite do Prazer de Cláudio Zoli gravada pelo grupo Brylho nos anos 80. A letra descreve o ambiente de uma festa: "Na madrugada a vitrola/ rolando um blues/ tocando B.B. King sem parar". Mas o virundum faz a cena ficar mais nonsense ou apimentada, já que tem gente "tocando de  biquíni sem parar".

Em Seduzir, de Djavan, o efeito virundum confere aromas aos versos existenciais, uma vez que o vazio de "Nem que eu bebesse o mar/ encheria o que eu tenho de fundo", passa a ser "o cheirinho que eu tenho de fumo".

Defumada também fica a letra de Como Nossos Pais. O autor Belchior escreveu "mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem". Na versão virundum, a pessoa a quem o compositor se dirigia fica um tanto quanto fora do ponto: "Mas é você que é mal passado e que não vê".

A música Alagados, do Paralamas do Sucesso, talvez seja uma das que concentre mais virunduns por versos rimados. No trecho "Alagados/ Trenchtown/ Favela da Maré", a localidade jamaicana de Trenchtouwn assume várias formas: "Cristal", "Tristão", "Trens estão", "Frestão", entre outras. E é comum a favela carioca a que se refere a letra ficar tingida: "Favela Amarela". Em seguida, "A arte de viver da fé/ Só não se sabe fé em quê" ganha um tom mais otimista: "A arte de viver dá pé/ Só não se sabe pé de quê?". Tudo faz sentido no universo paralelo do virundum.


TRADIÇÃO "VIRUNDUM"


Exemplos de canções que foram "alteradas" pela criatividade popular:


TRECHO ORIGINAL: 

Eu perguntava do you wanna dance? E te abraçava do you wanna dance?

(Whisky a Go Go, Roupa Nova)

TRECHO ALTERADO:

Eu perguntava tudo em holandês e te abraçava tudo em holandês...


TRECHO ORIGINAL:

Depende de nós quem já foi ou ainda é criança...

(Depende de Nós, Ivan Lins)

TRECHO ALTERADO:

Depende de nós quem já foi uma linda criança...


TRECHO ORIGINAL:

Tira essa escada daí, essa escada é pra ficar aqui fora...

(W/Brasil - Chama o Síndico, de Jorge Benjor)

TRECHO ALTERADO:

Tira as sete cabras daí, as sete cabras é pra ficar aqui fora...


TRECHO ORIGINAL:

Mas se ergues da justiça a clava forte...

(Hino Nacional)

TRECHO ALTERADO:

Mas segues a justiça o cabra forte...


TRECHO ORIGINAL:

Ê, ôôô, vida de gado... Povo marcado ê, povo feliz

(Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho)

TRECHO ALTERADO:

Ê, ôôô, briga de galo, porco, macaco ê, porco e perdiz


TRECHO ORIGINAL:

Tocando B.B. King sem parar...

(Noite do Prazer, Cláudio Zoli)

TRECHO ALTERADO:

Tocando de biquíni sem parar...


Texto de Paulo Jebaili retirado do Revista Língua, Edição Especial Música & Linguagem 2010, Editora Segmento, São Paulo.