domingo, 31 de julho de 2022

Andarilhos

Andava pela estrada, sozinho. Um sol de rachar e os dois andando, sem parar. E andando, resolvidos, iam os três desenxabidos.

Os quatro não andavam à toa: buscavam uma terra boa.

Com os pés doendo de tanto andar, os cinco pararam para descansar.

E os seis se deitaram, dormiram, sonharam...

No meio da noite, os sete acordaram e se arrepiaram.

Dezesseis olhos arregalados, brilhando, viram o rio iluminado, o chão iluminado.

Cavando a terra, dezoito mãos traziam com a respiração ofegante, dezenas de pedrinhas brilhantes.

Depois de muito cavar, contar e reunir, os dez começaram a discutir.

O centro da discussão era este: onze andarilhos podem suportar tantos brilhos?

Uma dúzia de ideias diferentes, uma ou outra interessante, mas nenhuma ideia brilhante.

Com as palavras doendo de tanto falar, os treze resolveram si-len-ci-ar.

Deitados, silenciosos, os quatorze buscavam uma nova rima, quando olharam para cima...

Boquiabertos, ao som de quinze admirações, descobriram estrelas cadentes em grandes porções e proporções.

E aquelas dezesseis imaginações tropeçaram nas mesmas conclusões...

"As pedras são farelos de estrelas", dezessete vezes pensaram e dezessete vozes exclamaram.

E declararam os dezoito andarilhos, acostumados a vagar de déu em déu: "Essa terra tem parentesco com o céu."

E dezenove caminheiros decidiram fincar pé e se estabelecer: "De agora em diante, aqui vamos morar, aqui vamos viver."

Vinte vezes festejavam. Quando uma voz  desfestejou: "Continuarei caminhando. Adeus. Já vou."

E este que se foi, ligeirinho!, posso dizer apenas que ele...

Andava pela estrada, sozinho.


Conto de Francisco Marques (Chico Bonecos) publicado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Março de 2000.


O amigo de Juliana

    A Juliana tinha um amigo chamado Fungo. Ele morava na casa de bonecas e conseguia até ajeitar-se bem nas pequenas cadeiras e na caminha azul, apesar de ser mais gordo que elas.

    Fungo era talentoso. Escrevia poemas, histórias e desejava ser um grande escritor, porém sentia falta de um mestre. Juliana, definitivamente não podia ser esse mestre, pois aprendera a escrever havia pouco tempo. Além do mais, ultimamente a amizade deles andava estremecida, porque Juliana dava mais atenção às bonecas que a ele. Fungo não entendia qual era a graça que ela via naquelas bonecas mudas, sem cultura e sem sentimentos. Fungo suspeitava que fossem mesmo burras, principalmente aquele boneco Tob, que parecia uma montanha de músculos inúteis, pois nem se trocar sozinho ele sabia. Era uma dependência total, um vexame, e Juliana é que precisava trocá-lo toda vez.

    Numa certa madrugada, em que Fungo estava sem sono, viu jogado no chão o caderno de Juliana com uma redação assim:


Minha familha

Minha familha é legal. Meu pai

chama Alfredo e minha mãe

chama Denize. Eu tenho 6 ano.


    Fungo leu e achou pobre, mal escrito, com cinco erros de português, além da falta de estilo. Num ato de ousadia arrancou a página e reescreveu a redação do jeito que ele achava que ficava melhor:


Minha Família

Minha família, com muito orgulho, é a mais linda que existe.

Meu pai, de nome Alfungo, é bonito, forte, tem orelhas pontudas, dentes enormes, belíssimos cabelos verdes e faz um lindo par com minha mãe, Fenize, que apesar do rabo curto, é tão incrivelmente peluda, que tem pelos até nos cotovelos e na ponta do nariz. Eu ainda sou jovem, tenho apenas 190 anos.


    Fungo foi dormir orgulhosíssimo de sua redação, feliz com a chance de receber comentários da professora de Português de Juliana, essa sim, uma verdadeira mestra.

    No dia seguinte, a amiga voltou furiosa da escola e proibiu Fungo de escrever uma linha que fosse em seus cadernos, pois os colegas da classe tinham achado que ela estava maluca por escrever tais bobagens. Chateado, Fungo recolheu-se à sua casinha e esperou anoitecer.

    Quando Juliana finalmente adormeceu, ele foi silenciosamente até a mochila, apanhou o caderno da menina e leu o comentário da professora:

    "Redação muito criativa, cheia de imaginação e bem escrita, precisa apenas caprichar mais na letra. Nota dez."

    Fungo adorou, achou o máximo e pensou até em entrar para a escola. Claro, só quando a Juliana se acalmasse. Talvez pudesse ficar na classe dentro da mochila, já que os adultos com certeza não iriam entender um monstro culto como ele querendo assistir aula.


Conto de Eva Furnari publicado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Maio de 2000.

A lenda de Órion

    Dizem que na Grécia Antiga, muito tempo atrás, um jovem caçador chamado Órion apaixonou-se por uma princesa de nome Mérope. Era filha do rei Enopião, com quem morava numa ilha do Mar Mediterrâneo. Dona de grande beleza, Mérope era muito amada pelo pai, que impedia os rapazes de se aproximarem da filha e namorá-la. Acontece que Órion não era um jovem qualquer, mas filho do deus grego Poseidon, conhecido na Roma Antiga como Netuno. Muito poderoso, esse deus reinava sobre os mares. Com receio de deixar Poseidon zangado, Enopião permitiu a Órion achegar-se à filha, com uma condição: devia capturar todos os animais ferozes que infestavam seu reino. Sendo um hábil caçador, nosso herói aceitou a proposta, pedindo a mão da princesa como prêmio pela façanha. Enopião nada respondeu e Órion interpretou seu silêncio como consentimento. Durante um bom tempo o caçador enfrentou as feras, que por fim conseguiu aprisionar e transportar para outra ilha, desabitada. Terminada a missão, ele imaginou que pudesse, enfim, casar-se com Mérope. Contudo, os ciúmes de Enopião com relação à filha falaram mais alto e ele escondeu-a do noivo num castelo. Inconformado, Órion começou a trazer os animais  caçados de volta à ilha de Enopião. Numa de suas viagens foi capturado pelos soldados do rei, que o cegaram e em seguida o abandonaram numa praia deserta. Felizmente, o caçador cego foi encontrada por um ciclope, gigante mitológico de um olho só, que o conduziu até Aurora, a deusa do amanhecer. Apaixonada que era por Órion, ela restituiu-lhe a visão, fazendo-o olhar para onde o sol nasce. Porém, mesmo com a vista totalmente recuperada, o caçador não conseguiu casar-se com Mérope.

    Tempos depois apaixonou-se por Ártemis, a deusa da caça, conhecida entre os romanos como Diana. Mas Ártemis tinha um irmão gêmeo, Apolo, muito ciumento dela. Numa bela tarde, os dois irmãos saíram para um torneio de arco e flecha. No caminho, Apolo desafiou Ártemis a acertar um alvo no mar, perto da linha do horizonte. Excelente arqueira, Ártemis aceitou prontamente o desafio e retesou o arco na direção indicada pelo irmão. Mal sabia ela estar apontando para Órion, que nadava à distância e foi trespassado por sua flecha certeira. No dia seguinte, andando a beira-mar, a deusa encontrou o corpo morto do amado, com uma de suas flechas cravadas no coração. Pôs-se a chorar, mas era tarde, o mal estava feito. Penalizado com sua dor, Zeus, o maior dos deuses gregos, ofereceu-se para transformar Órion numa constelação. Ártemis aceitou a oferta porque assim, pelo menos, poderia ver seu amado no céu. A mesma sorte não coube aos dois cães fiéis de Órion, que ganiam desesperados ao ver seu dono brilhando no céu noturno. Assim, também eles foram transformados por Zeus em constelações. São elas Cão maior e Cão Menor, que podem ser vistas no céu junto ao gigante caçador nas noites quentes de verão do hemisfério Sul.


Lenda grega recontada por Walmir Cardoso; retirada da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Junho de 1999.

A história sai do armário

    Já em 1906, o médico carioca Pires de Almeida, autor do pioneiro estudo A libertinagem no Rio de Janeiro, assim se referia à homossexualidade: "Excluída como objeto de estudo até o presente dia, a pederastia no Brasil tem atravessado os quatro séculos de nossa história, não obstante carecer de observação e pesquisa". De fato, chamada também de sodomia e pecado nefando, isto é, que não pode ser pronunciado (e muito menos praticado!), a homossexualidade vem sendo, nos últimos três mil anos da história ocidental, vítima de cruel preconceito, motivado em grande parte pela ideologia machista do patriarcado, que se escorando em traduções equivocadas dos textos bíblicos, considera o amor entre pessoas do mesmo sexo como um pecado/crime mais grave do que matar mãe ou violentar crianças, equiparado ao regicídio e à traição nacional. Prevalece até hoje um obscurantista complô do silêncio, imposto pela cruz e pela espada, impedindo que este tema mereça a devida atenção dos estudiosos, mesmo daqueles historiadores interessados na vida privada e na história das mentalidades.

    Estudar a homossexualidade numa perspectiva histórica representa mais do que um simples olhar curioso sobre as condutas pecaminosas de nossos antepassados. Reconstituir a história gloriosa da pederastia na Grécia antiga, por exemplo, traz à baila um de nossos mais melindrosos tabus contemporâneos: as relações sexo-afetivas intergeracionais (pederastia). A inequívoca bissexualidade de Alexandre Magno mereceu grande destaque na imprensa internacional, quando do recente lançamento do filme, gerando o absurdo protesto de machistas gregos, ultrajados com a homoafetividade do maior general da antiguidade. Estudos profundos sobre a homossexualidade no Mediterrâneo, no seio do clero medieval, entre os mouros na Península Ibérica etc., obrigam-nos à revisão de um fantasma do imaginário europeu moderno: a acusação, baseada tão somente no preconceito, de que a homossexualidade teria sido a causa da queda dos principais impérios da antiguidade - ilação que não conta com qualquer base empírica de sustentação a não ser a homofobia - esta doentia intolerância aos homossexuais. Pesquisas recentes estão descontruindo outro mito bastante caro a certos militantes do movimento negro, comprovando a existência do homoerotismo também na África pré-colonial, assim como entre os ameríndios e demais populações tribais.

    Reconstruir a história secreta dos sodomitas, fanchonos e fanchonas, pederastas, gays e lésbicas luso-brasileiros, assim como dos afro-ameríndios perseguidos pela Santa Inquisição e depois pelos doutores e delegados, a partir do século XIX, obriga-nos a refletir sobre nosso presente, na medida em que os amantes do mesmo sexo continuam sendo a minoria social mais odiada no Brasil contemporâneo, com uma rejeição de até 80 por cento entre as elites formadoras de opinião. A censura ao beijo de dois rapazes em popular novela brasileira comprova a brutalidade dessa intolerância, devendo servir de estímulo aos historiadores para retirar do armário nossa história secreta do "amor que não ousava dizer o nome". Tais pesquisas hão de confirmar que, de fato, o amor não tem sexo, e que a humanidade só atingirá um grau superior de civilização quando todos nos reconhecemos como membros de uma única e mesma espécie humana.


Texto de Luiz Mott. Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutor em Antropologia e decano do movimento homossexual brasileiro. Autor de 15 livros e diversos artigos sobre inquisição, escravidão, religião popular, homossexualidade e direitos humanos. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

sábado, 30 de julho de 2022

O caso do espelho

    Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata

    Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos:

    - Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?

    - Isso é um espelho - explicou o dono da loja.

    - Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai.

    Os olhos do homem ficaram molhados.

    - O senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante.

    O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira.

    - É não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?

    O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho.

    Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.

    A mulher ficou só olhando.

    No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.

    - Ah, meu Deus! - gritava ela desnorteada. - É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu!

    - Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida.

    - Que foi isso, mulher?

    - Ah, seu traidor de uma fica! Quem é aquela jararaca lá no retrato?

    - Que retrato? - perguntou o marido, surpreso.

    - Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!

    O homem não estava entendendo nada.

    - Mas aquilo é o retrato do meu pai!

    Indignada, a mulher colocou as mãos no peito:

    - Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?

    A discussão fervia feito água na chaleira.

    - Velho lazarento coisa nenhuma! gritou o homem, ofendido.

    A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa.

    - Que é isso, menina?

    - Aquele cafajeste arranjou outra!

    - Ela ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada.

    - Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!

A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.

Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.

- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje!

E completou, feliz, abraçando a filha:

- Fica tranquila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!


Versão de conto popular por Ricardo Azevedo retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Maio de 1999.

Um comediógrafo sintonizado com o seu tempo

Do carnaval de rua a crises econômicas. Vários temas da vida da capital do Império foram levados aos palcos por Vasques. A vida teatral do Rio de Janeiro do século XIX era, sem dúvida, um de seus preferidos. Inspirado nela, escreveu Um bilhete! Um bilhete! Para o benefício do Graça (1862) e Por causa da Emília das Neves (1863), nas quais dava conta da realidade vivenciada por dois atores famosos - Eduardo José da Graça e Emília das Neves - cujos espetáculos provocavam um verdadeiro frisson na cidade.

Os tipos do Rio também eram assunto frequentes. Em Aí! Cara Dura! (1883), Vasques tratava de um personagem popular da cidade, versão do atual "cara-de-pau", ou seja, o esperto que tirava vantagem de tudo. Em Os Capoeiras (1886), entrava em cena uma questão que deixava os cariocas em sobressalto: a atuação das maltas de capoeiras. A volta ao mundo em 80 dias a pé (1886), baseada no romance de Júlio Verne, serviu como crítica bem humorada ao "mundinho" do Rio de Janeiro, suas ruas, problemas, situações sérias e hilariantes. Nessa peça, inclusive, a sonoplastia contou com a ajuda de Emiliano, um habitante das ruas da cidade que tinha especial habilidade para imitar o som de locomotivas que, por isso, recebeu o apelido "Estrada-de-Ferro". A política também era - desde aquele tempo - matéria para o riso. Em A questão anglo-brasileira (1863) e O Brasil e o Paraguai (1865) foram as relações brasileiras na região do Prata o tema privilegiado. Já  em Legalidade e ditadura (1892), Vasques elaborou uma crítica à política econômica do encilhamento e aos problemas que vinha trazendo à população do Rio.


Retirado do Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

Canal de Deus

É sempre abençoada a doação.

De qualquer forma que seja feita, ela atinge o destino, enriquecendo de alegria aquele a quem se dirige.

É melhor, porém, quando se faz acompanhar pela alegria do ofertante, pois que o felicita igualmente.

Há quem doe, como se estivesse desobrigando-se de um desagradável dever, assim como outrem que o faz assinalado por injustificável mágoa.

Existem pessoas que dão, especulando, e aguardam receber de volta algo melhor, da mesma forma que outras o fazem constrangidamente.

Seja a tua, a doação livre e rica de gozo, porquanto, da mesma maneira que ofertares, assim o receberás.

Observa a tua atitude quando dás.

Examina-a cuidadosamente e descobrirás, logo depois, outras oportunidades para prosseguires fazendo a tua dádiva, que pode ser o pequeno tempo de atenção que cedas a um aflito, ou a tua energia socorrista, ou ainda a tua provisão material...

O hábito de dar ensinar-te-á a bênção da autodoação ou contribuição plenificadora.

Quando dás com alegria, a Lei de Deus, perfeita em todas as suas manifestações, cumpre-se através de ti, pois que se exterioriza, clara e ardorosa, como expressão de fé e amor.

Assim, comparte, livre e incondicionalmente, a tua dádiva com o teu próximo, regozijando-te com a recompensa de paz, que fruirás.

A elevada ação de quem doa, dele faz um canal pelo qual passa o bem de Deus na direção de todas as criaturas.

Num mundo que se caracteriza pelas necessidades e pedidos, torna-se doador do bem incessante, feliz pela oportunidade de repartir.

A tua aura de generosidade se exterioriza e atrai todos aqueles que se encontram em carência, confiantes de que, na aspereza da luta que travam, não lhes faltará o socorro para tornarem-se completos.

Nada melhor do que ser canal de Deus.

Luta e insiste a fim de prosseguires como instrumento da Divindade, atingindo o clímax, quando te tornares maleável e de fácil acesso para a finalidade do Amor.


Retirado do livro Momentos de Esperança; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

O Leão de Nemeia

    Era uma vez um homem chamado Anfitrião, que vivia em Tebas, cidade da Grécia Antiga. Ele era casado com Alcmena, neta de Perseu. Tão linda era Alcmena, que Zeus, o poderoso deus dos deuses gregos, caiu de amores por ela. Alcmena, porém,  era fiel ao marido. Mas, um belo dia, Anfitrião teve de viajar por alguns dias e não avisou à mulher quando ia voltar. Aproveitando-se disso, Zeus assumiu a forma física do esposo e passou a viver com Alcmena como se fossem casados.

    Algum tempo depois, ao tomar conhecimento de que Alcmena estava grávida, Zeus, imaginando que o bebê fosse seu filho, declarou que o próximo descendente de Perseu seria o soberano da Grécia. Porém, antes que Alcmena tivesse seu nenê, uma artimanha de Hera, a ciumenta esposa de Zeus, fez nascer antes outra criança que tinha o sangue de Perseu - Euristeu - que então tornou-se rei.

    Logo em seguida Alcmena deu à luz não um, mas dois bebês: Hércules, filho de Zeus, e Íficles, filho de Anfitrião. Quando os bebês tinham oito meses de vida, a deusa Hera, morrendo de ciúmes de Alcmena e do filho que ela tinha tido com seu amado, decidiu eliminar o pequeno Hércules mandando colocar em seu berço duas imensas serpentes. Felizmente, o bebê já tinha a força de um semideus e deu cabo dos dois bichos com as próprias mãozinhas!

    Anfitrião e Alcmena deram a Hércules e Íficles a melhor educação que se podia ter na época: eles aprenderam a dirigir carruagens, a usar o arco e flecha, a usar a lança e a tocar lira. Aos 18 anos, Hércules destacava-se entre todo os outros rapazes, por ser de longe o mais alto e o mais forte. Nunca errava uma flechada ou um golpe de lança e seu olhar resplandecia. Com o tempo, tornou-se um herói que todos chamavam quando precisavam de proteção ou de alguém que lhe garantisse o sucesso numa luta. Foi depois de uma dessas lutas vitoriosas que Hércules casou-se com Megara, uma das princesas do reino vencido, e com ela teve vários filhos.

    Do Monte Olimpo, a morada dos deuses gregos, Zeus observava a vida aventurosa do filho com ternura, o que deixava Hera cega de ódio. Por fim, ela decidiu destruir a reputação de Hércules para que Zeus o desprezasse. Hera fez com que o herói tivesse um ataque de loucura e matasse a mulher e os próprios filhos. Quando voltou a si e viu o que tinha feito, Hércules ficou desesperado e correu a consultar uma sacerdotisa para saber que castigo poderia purificá-lo de seu terrível crime.

    A sacerdotisa disse-lhe que devia servir ao rei Euristeu por doze anos. A cada ano, Hércules deveria realizar um trabalho dificílimo. Quando os trabalhos estivessem completos, ele estaria livre de seu crime, se tornaria imortal como o pai e poderia viver com este no Olimpo. O primeiro trabalho que Euristeu deu a Hércules foi trazer-lhe a pele do leão de Nemeia, um monstro terrível, com fama de indestrutível, que vinha aterrorizando a região há um certo tempo.

    Hércules aceitou o encargo e partiu para Nemeia, levando um arco, uma lança e uma clava que ele mesmo havia feito. Ao avistar a fera, o herói disparou uma flecha em sua direção. Mas a flecha nem sequer arranhou a pele do animal. Hércules decidiu então atacar o monstro com a clava, atraindo-o para uma caverna que tinha duas entradas. Tapou uma delas com pedras, entrou pela outra e, depois de uma luta feroz, conseguiu estrangular a fera, passando a usar sua pele como manto. A bravura do animal, porém, foi reconhecida por Zeus, que o transformou na constelação do Leão, que hoje brilha no céu do hemisfério Sul na entrada do outono.


Lenda grega recontada por Walmir Cardoso. Retirada na Revista Nova Escola; Fundação Victor Civita, Editora Abril. Dezembro de 1998.

Trapaceiro como "tout le monde"

Renegado pela crítica ilustrada, o ator e dramaturgo Vasques fez de Rocambole, herói de folhetim francês, a tradução dos costumes e trapaças da capital do Império.


    Um homem de nome Rocambole tendendo mais para bandido que mocinho, hábil no uso de mil faces e disfarces, mestre em maquinações e tramoias que tinham sempre como objetivo a busca de vantagens - pecuniárias ou não. Eis o protagonista do romance-folhetim As proezas de Rocambole, do francês Ponson du Terrail, que passou a ser publicado  semanalmente no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro a partir de 1859, trilhando no Brasil uma trajetória de sucesso. Em muito pouco tempo, as aventuras de Rocambole passaram a ser publicadas diariamente em outros jornais da Corte, sendo sempre  ansiosamente esperadas por leitores ávidos por acompanhar as peripécias do seu herói-vilão. O final de cada série, e a quase simultânea retomada de outra, atendendo a pedidos, acabaram por transformar o personagem em fenômeno de leitura em se tratando de uma sociedade majoritariamente analfabeta, como a brasileira do século XIX.

    De fato, no Rio de Janeiro daquela época não era preciso saber ler para conhecer Rocambole. As leituras em voz alta, proferidas em grupo nas portas das boticas, botequins, residências ou esquinas da cidade uniam o mundo letrado e o da  transmissão oral. Assim, varando fronteiras sociais - e geográficas - e multiplicando-se em edições variadas, Rocambole engordou os bolsos dos livreiros e proprietários de jornal, e chegou a influenciar a própria língua portuguesa, transformando a expressão "rocambolesco" em sinônimo de delirante aventura, enrolada como um bolo.

    Diante de tamanho sucesso, não surpreende que Rocambole acabasse por saltar das páginas dos jornais para se estabelecer nos palcos teatrais da cidade, tal como ocorrera na França. No Rio de Janeiro, uma das adaptações mais aplaudidas do folhetim foi a comédia Rocambole no Rio de Janeiro, do ator e dramaturgo Francisco Correa Vasques, que estreou no teatro Lírico Fluminense em 1868.

    Carioca, mulato, filho natural de uma família de poucas posses, Vasques teve acesso restrito à educação formal. Cursou por um breve período de tempo o Colégio Marinho, dele saindo para trabalhar da Alfândega do Rio de Janeiro e, logo após, na companhia teatral de João Caetano, contratado como ator em 1857. Não tardaria, também, para que começasse a escrever suas próprias peças, e que se especializasse num gênero dramático: as cenas cômicas, uma bem-sucedida receita de textos curtos, escritos para um ou mais atores, em prosa e verso abordando diversos assuntos, a partir da costura de elementos múltiplos. O público era da mesma maneira variada, composto por caixeiros, estudantes, famílias e até mesmo, no caso do Brasil, de imperadores, frequentadores assíduos dos espetáculos protagonizados pelo ator.

    Comediógrafo autodidata, aplaudido nos palcos da Corte e das províncias em que se apresentou nos 36 anos de carreira artística, Vasques foi, contudo, rejeitado pela crítica ilustrada do seu tempo, que rotulou sua produção de "baixa" dramaturgia. Essa crítica ilustrada, exercida por indivíduos de educação formal superior, tais como Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Quintino Bocaiúva e Souza Ferreira, considerava a produção dramática de Vasques exemplo de uma dramaturgia menor porque, supostamente, não teria qualquer comprometimento com a educação das plateias, "missão" da qual, eles acreditavam, estava revestido o tablado, e sim com o riso e o divertimento ou ainda com os lucros que poderiam ter o dramaturgo ou empresários do teatro.

    Que Rocambole no Rio de Janeiro, assim como outras comédias do Vasques, era uma obra recreativa, não resta dúvida. Mas um olhar mais atento para o texto de Vasques pode mostrar que por trás do riso residia uma crítica bem construída a certas questões do seu tempo. Tal sentido crítico, vale dizer, já aparecia enunciado no programa da récita de estreia da peça, publicada no Jornal do Commercio do dia 15 de janeiro de 1868. Nele, Vasques prometia passar em revista, com sua cena cômica, todos os "ridículos da atualidade" e apontar os "charlatães da época".

    Mas, diferentemente do Rocambole de Ponson du Terrail, o Rocambole de Vasques não oferecia perigo às carteiras dos incautos ou dor de cabeça à polícia. Seu poder de periculosidade residia no fato de ter ele se transformado em moda e, como toda moda, em "salvatério da humanidade" - utilizando uma expressão do próprio Vasques -, ou seja, encarnando as mais ridículas e reprováveis situações. De acordo com nosso dramaturgo, Rocambole estava estabelecido em toda a parte e tudo isso era culpa da moda: "A moda, somente a moda, e aí vai uma prova de quanto ela é capaz":


Filho menor que é fumante,

Receoso de uma poda

Quando o encontram fumando,

Vai dizer ao pai que é moda.


Sujeito que se embebeda

Quando vai a qualquer boda,

Diz sempre, piscando os olhos.

Não façam caso que é moda!


Moça que vive à janela,

Cujo pai não se incomoda,

Foge de casa dizendo:

Adeus, papai!... isto é moda.


Literato que na bola

Quer ter a ciência toda,

Se cair de quatro pés,

Não façam caso que é moda!


Viúva rica que chora,

Pra ver se aos tolos engoda,

Se casa depois de um mês,

Deixem passar que isso é moda.


Um marido diz à esposa:

"O Juca não te faz roda?"

"Qual (diz ela) conversamos,"

Isto entre primos é moda!


    Por conta da moda, segundo Vasques, quando as saias balão foram atiradas "pelos ares", permitindo às moças "andarem com as pernas de fora" e com as botas até os joelhos, Rocambole veio em auxílio das que protestaram em razão da finura das canelas:


Nem as magras,

Nem as gordas

Podem ter pernas mal feitas.

Pernas tortas, pernas finas

A moda fá-las perfeitas.


Se eu tivesse neste instante

Algumas pernas à mão,

Veriam estes senhores

Quanto vale o algodão.


    Também quando algum deputado um dia defendia o governo com unhas e dentes, e, no outro, atacava-o com veemência, ficava claro que se tratava de um "Rocambole desmamado", que vira frustrados seus planos de beneficiar algum protegido. E era ainda Rocambole que se manifestava, travestido de negociante estrangeiro, como o francês da rua do Ouvidor que enriquecia em menos de um ano vendendo pomadas ou pó-de-arroz numa terra de facilidades e oportunidades, na qual "tout le monde pode fazer sua negoce sans prejuize; toujours pode ganhar dinheiro". Ou era ainda Rocambole que aparecia disfarçado de inglês, reclamando por não ter conseguido um privilégio do governo, e aborrecido com a desfeita "sapecava" sem "papas na língua": "Oh! Brasil está uma terra muite of de mesquinha, não vale uma pitade de tabaca; mim vai a Inglater e dau meus ideias para glória minha e satisfação".

    Vê-se, assim, que foi através de uma paródia do folhetim francês, traduzindo os temas nele abordados para a realidade de seu tempo e de seu país, que Vasques elaborou um texto original cujo resultado foi uma sátira bem-humorada de certos costumes que estavam em voga na capital do Império. A mola mestra de sua cena cômica era o embate entre o bem e o mal, como no folhetim. Mas ao fazer sua apropriação do mesmo para o palco, com intenções simultaneamente críticas e lúdicas, criou um produto suis generis fazendo emergir de seu texto uma noção de "rocambolesco" que, para além da ideia de delirante aventura, evidenciava uma espécie de "banditismo" poroso, com todo o sistema de engodos e trapaças que atingia o mais banal cotidiano. De fato, Vasques via aqueles tempos como lugar de espertezas, conchavos e frivolidades. Seu "herói" precisava, portanto, estar adequado a esse cenário. Assim, fez nascer seu Rocambole "à brasileira", que estava em todos os lugares, subornando, ludibriando e dissimulando, sendo esta a chave para alcançar a única coisa que se tinha em mente naquele momento: tirar vantagens de tudo e de todos.

    Observador atento da realidade que lhe servia de fonte de inspiração, Vasques abordou questões  candentes do seu tempo, lançando mão do riso para tratar de coisas sérias. E esta dimensão de sua obra foi reconhecida por alguns contemporâneos como arte, tanto que seu Rocambole no Rio de Janeiro foi publicado como parte da coleção de comédias, dramas e cenas cômicas intitulada Teatro moderno luso-brasileiro pela livraria Cruz Coutinho dois anos após sua estreia. Uma outra prova da popularidade da qual seu trabalho desfrutou foi o fato da première dessa comédia, como de outras tantas que escreveu, ocorrer num espetáculo em que toda a renda da bilheteria foi destinada ao ator. O público parece ter atendido o apelo de Vasques, feito no anúncio da récita nos seguintes versinhos: "Eis aí o meu programa/ Sem manha nem artifício/ Nessa noite ele promete/ A muita gente por mole/ Apenas se transformar/ No famoso Rocambole".

    A crítica ilustrada, apesar desse e de outros sucessos teatrais do Vasques, não abriu mão de seus preconceitos e tratou sempre o seu trabalho com reservas. Reservas que atravessaram décadas e acabaram por deixar o nome deste dramaturgo na coxia da história do teatro brasileiro.


Texto de Sílvia Cristina Martins de Souza. Professora de História do Brasil na Universidade Estadual de Londrina. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

O segredo da Vó Maria/ Beatriz

    Outro dia, eu estava na casa da vovó Maria e, enquanto ela assistia à novela, aproveitei para brincar em seu quarto. Estava brincando de cabeleireira de minhas bonecas na penteadeira da vó quando vi pelo espelho o velho guarda-roupa onde eram guardado os lençóis e as toalhas. Sempre tivera vontade de abrir aquele móvel. Fui até ele, escancarei a porta e vi que era grande, tão grande que eu podia até entrar e sentar em seu interior. E foi o que fiz. fechei a porta por dentro e tudo ficou escuro e em silêncio, um silêncio abafado que me isolou do resto da casa. Fui me ajeitando entre os lençóis e as toalhas. Tateando no escuro descobri uma lâmpada bem pequena e consegui acendê-la. Vi então duas gavetinhas com puxadores de metal. Tentei abri-las, mas estavam emperradas, como se não fossem usadas há muito tempo. Precisei usar toda minha força para conseguir puxar uma delas. A primeira coisa que vi lá dentro foi um envelope com uma carta e uma foto de meu avô Pedro quando era moço. Eu tinha uma vaga lembrança dele, velhinho, magro e alto. Uma lembrança distante, porque quando ele morreu eu era muito pequena. Tentei ler a carta, mas não entendi a letra, toda enfeitada. Como os antigos escreviam diferente! Só entendi o final: "... com afeto e saudades, Pedro, 1928". Acho que era uma carta de amor para a minha vó, escrita há 70 anos!

    Logo depois, achei um bolo de fotos de gente que nunca ouvi falar. As pessoas pareciam de cera. As fotos eram todas em marrom e branco, e estavam desbotadas, algumas rasgadas. As mulheres de chapéu e os homens de bengala. As crianças bem penteadas: as meninas com fitas no cabelo e os meninos com o cabelo repartido de lado. Foi estranho pensar que hoje esses meninos e meninas deviam estar velhinhos iguais à minha vó.

    Continuei remexendo a gaveta que era bem comprida e funda. Não podia ver direito as coisas porque a lampadinha a toda hora se apagava. Eu só podia sentir os objetos com as mãos. Foi num desses momentos de escuridão que peguei um saquinho pequeno, que parecia de veludo e era bem leve. Dentro dele senti que havia papéis enroladinhos como se fossem canudinhos e amarrados com uma fita. Quando enfim consegui acender de novo a lâmpada, vi que os canudinhos eram pedaços de papel amarelados, roídos pelo tempo e pelas traças. A fitinha era velha, toda desfiada. Fui desenrolando um dos canudinhos com muito cuidado, pois tinha medo que se rasgasse. Nesse primeiro papelzinho estava escrito, com letra de criança, o seguinte:

Segredo de Amabília

Tenho um segredo que ninguém pode saber:

tenho medo do escuro.


    Era o segredo de uma criança que vivera em outro tempo, bem distante, e que eu nem sabia quem tinha sido. Será que esse Amabília era uma irmã da vó? Uma prima? Uma amiga? Resolvi fechar esse primeiro segredo enrolando devagar o papel. Em seguida, abri todos os outros, um a um.

Segredo da Henrieta

Detesto a tia Adélia. Principalmente quando vem nos beijar.

Ela tem cheiro de naftalina.


Segredo da Giulia

Gosto do primo Tadeu. Mas ninguém pode saber disso nunca!


Segredo da Maria

Tenho um esconderijo secreto na minha casa: é dentro do

guarda-roupa de lençóis e toalhas. Lá eu passo horas e ninguém me encontra.

Acendo a lanterninha e leio os livros de histórias que eu mais gosto.


    Tomei uma susto. Não sei, a única coisa que fiz foi guardar aqueles velhos segredinhos dentro do saquinho de veludo, apagar a lâmpada e sair de fininho daquele guarda-roupa cheio de histórias.

    Depois disso, toda vez que olho pra vó Maria tenho vontade de contar que descobri o segredo dela. Mas logo desisto, porque agora o segredo também é meu.

Beatriz.


Olha, será que ela é moça

Será que ela é triste

Será que é o contrário

Será que é pintura o rosto da atriz

Se ela dança no sétimo céu

Se ela acredita que é outro país

E se ela só decora o seu papel

E se eu pudesse entrar na sua vida


Olha, será que é de louça

Será que é de éter

Será que é loucura

Será que é cenário

A casa da atriz

Se ela mora num arranha-céu

E se as paredes são feitas de giz

E se ela chora num quarto de hotel

E se eu pudesse entrar na sua vida


Sim, me leva para sempre Beatriz

Me ensina a não andar com os pés no chão

Para sempre é sempre por um triz

Ah! Diz quantos desastres tem na minha mão

Diz se é perigoso a gente ser feliz


Olha, será que é uma estrela

Será que é mentira

Será que é comédia

Será que é divina a vida da atriz

Se ela um dia despencar do céu

E se os pagantes exigirem bis

E se um arcanjo passar o chapéu

E seu eu pudesse entrar na sua vida


Conto de Carla Caruso retirado da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, Editora Abril, Outubro de 1998. 


Música Beatriz, de Chico Buarque & Edu Lobo gravada originalmente no então LP O Grande Circo Místico por Milton Nascimento e lançado pela Gravadora Som Livre em 1983. A Gravadora Velas relançou a obra em CD no ano de 1993. Zizi Possi ficou encarregada de interpretá-la no Songbook de Chico Buarque, abrindo o Volume 2 dos 8 Volumes lançados  e organizados por Almir Chediak para a Lumiar Discos em 1999. Zizi regravou a canção com um arranjo um pouco diferente em seu CD intitulado Puro Prazer de 1999 acompanhada apenas pelo piano de Jetter Garotti Júnior e lançado pela Universal Music.

Pégaso e Andrômeda, a princesa acorrentada

    Diz a lenda que muito tempo atrás, num distante país do Oriente, havia um rei chamado Cefeu, casado com a linda rainha Cassiopeia. Tal era a fama de sua beleza, que as pessoas vinham em caravana dos lugares mais remotos apenas para contemplá-la. Com o passar do tempo, a rainha começou a se considerar a mulher mais bonita do mundo. Foi nessa época que cometeu um grande erro. Diante de uma multidão que a aclamava, ousou dizer que era mais bela que as Nereidas. Estas ninfas, para infelicidade da rainha, eram protegidas pelo poderoso deus dos mares - Poseidon -, que ficou irado com a comparação. Num acesso de fúria, ergueu-se das águas segurando o tridente, seu enorme cetro de três pontas, e lançou uma maldição sobre o reino. O nível do mar subiu rapidamente e inundou grande parte do país. Ainda insatisfeito, o deus dos oceanos enviou um monstro marinho para devorar qualquer criatura que se aproximasse do reino pela região costeira.

    Os pescadores não se atreviam mais a sair de casa. Os navios estrangeiros que costumavam trazer preciosas mercadorias, não podendo atracar, nem saíam mais de seus portos. E o rei Cefeu foi aconselhado a realizar um sacrifício para aplacar a ira do deus ofendido. A vítima escolhida foi a princesa Andrômeda, sua filha. Deveriam amarrá-la aos rochedos para ser devorada por Cetus, o monstro que aterrorizava a costa. Andrômeda, que além de linda era muito corajosa, resolveu apresentar-se ao sacrifício para salvar o reino. E assim foi amarrada aos rochedos e ficou esperando o monstro.

    Enquanto isso, longe dali um jovem herói cumpria certa profecia. O belo Perseu, filho de Zeus - deus da terra e do céu, que habitava o monte Olimpo - e da princesa Danae, havia recebido três presentes muito especiais: o manto da invisibilidade, sandálias com asas e um escudo de metal, tão polido que mais parecia um espelho. Sua incumbência era matar a Medusa, um monstro em forma de mulher, cujos cabelos eram serpentes vivas. Todos os seres que a Medusa olhava se transformavam imediatamente em pedra. Usando seu manto e voando com as sandálias mágicas, Perseu conseguiu se aproximar da Medusa enquanto esta dormia. Quando ela pressentiu a presença de alguém, despertou, mas viu apenas sua própria imagem refletida no escudo polido do nosso herói. Antes que petrificasse, ele cortou-lhe a cabeça e colocou-a dentro de uma bolsa mágica de couro.

    Quando voltava dessa arriscada missão, o jovem encontrou Andrômeda acorrentada nos rochedos e ambos ficaram perdidamente apaixonados. Mas, no exato instante em que eles se olharam, o monstro Cetus apareceu. Foi só então que Perseu se lembrou que trazia consigo a cabeça da Medusa. E não pestanejou. Aproximou-se o mais que pôde e mostrou os olhos petrificantes da Medusa para Cetus, que imediatamente se transformou em pedra e caiu no fundo do oceano. Quando tudo parecia terminado, Perseu aproximou-se de Andrômeda para soltá-la, mas nesse exato instante uma gota de sangue da Medusa, que restara na bolsa, caiu no mar. Poseidon era apaixonado pela Medusa mas nunca tinha conseguido tocá-la. Esta única gota de sangue em contato com a água provocou um estrondo e uma abundante espuma branca, da qual emergiu um belíssimo cavalo alado chamado Pégaso. E assim, ao ver o filho de sua amada, Poseidon abandonou a ideia de vingança.

    Muitas lutas o herói Perseu precisou vencer para chegar à felicidade e casar-se com Andrômeda. E propagou essa vitória ao mundo, mostrando a todos a cabeça decepada da inimiga. Por fim, livrou-se dela ofertando-a à deusa Atena, sua protetora.

    Segundo a lenda, Pégaso foi recebido no monte Olimpo, morada dos deuses gregos e, tempos depois, transformou-se numa das constelações mais representativas da primavera - estação do ano que começa em 23 de setembro no hemisfério Sul.


Lenda grega recontada por Walmir Cardoso; texto retirado da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, São Paulo, Setembro de 1998.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Uma epopeia brasileira

A Coluna Prestes, sem vencer nem ser vencida pelo governo que combatia, percorreu 25 mil quilômetros para abalar as estruturas da República Velha.


    Dia 28 de outubro de 1924: começa o levante tenentista no estado do Rio Grande do Sul. Logo a seguir tem início a marcha rebelde que, mais tarde, entraria para a história como a Coluna Prestes (ou Coluna Invicta), episódio culminante do movimento. Diante da grave crise estrutural (econômica, social, política, ideológica e cultural) que abalava a República no início dos anos 1920 - a crise do "pacto oligárquico" estabelecido entre os grupos oligárquicos dominantes -, os setores médios mostravam-se insatisfeitos com a falta de liberdade e as limitadas possibilidades de influir na vida política. Predispunham-se à revolta e a apoiar ações radicais contra o poder da oligarquia. Faltavam-lhes, contudo, organização e capacidade de arregimentação para assumir a direção do movimento de rebeldia contra esse domínio estabelecido. A insatisfação no país era geral, mas foi a jovem oficialidade do Exército e da Marinha que assumiu a liderança das oposições. O tenentismo veio preencher o vazio deixado pela falta de líderes civis aptos a conduzir o processo de lutas que começava a sacudir as já caducas instituições políticas da Primeira República. Os "tenentes" assumiram as bandeiras de conteúdo liberal que, há algum tempo, vinham sendo agitadas pelos setores oligárquicos dissidentes, dentre as quais se destacava a demanda do voto secreto, refletindo o anseio generalizado de liquidação da fraude eleitoral então em vigor. O que distinguia os revoltosos das oligarquias dissidentes e dava ao seu liberalismo um caráter radical era a disposição de recorrer às armas na luta por tais objetivos.

    A primeira revolta, rapidamente sufocada tanto no Rio de Janeiro como em Mato Grosso - os únicos lugares em que chegou a ser deflagrada -, imortalizou-se pelo episódio do Levante dos 18 do Forte de Copacabana, no dia 5 de julho de 1922. Liderados pelo tenente Antônio de Siqueira Campos, um pequeno grupo de jovens militares marchou pela praia de Copacabana, de peito a descoberto, disposto a enfrentar os disparos das tropas governistas. Manchando de sangue as areias de Copacabana, os jovens foram trucidados. Apenas dois conseguiram sobreviver: Siqueira Campos e Eduardo Gomes. O episódio repercutiu por todo o Brasil, apesar do estado de sítio e da censura à imprensa, decretados pelo Congresso Nacional. E os nomes dos heróis do Forte tornaram-se símbolo do clima de revolta então existente contra os governos das oligarquias dominantes - os governos de Epitácio Pessoa e do seu sucessor Artur Bernardes. Ambos representavam, no fundamental, os interesses das oligarquias cafeicultoras de São Paulo e Minas Gerais e, dada a grave crise que abalava as estruturas do regime republicano, adotavam políticas econômicas cada vez mais excludentes em relação aos grupos oligárquicos dos demais estados da União e aos diversos setores da sociedade brasileira da época.

    Em 5 de julho de 1924, dois anos após o levante de 1922, estourava a Rebelião de São Paulo, inaugurando uma nova onda de revoltas tenentistas. Era o "segundo 5 de julho". Levantaram-se vários grupamentos policiais e unidades do Exército sediados nesse estado. O comando geral do movimento fora entregue pelos jovens rebeldes ao general reformado do Exército, Isidoro Dias Lopes, que contava com a colaboração do major Miguel Costa, comandante da Força Pública de São Paulo (a Polícia Militar do Estado).

    O objetivo do movimento era depor o presidente Artur Bernardes, cujo governo transcorria, desde o início, sob estado de sítio permanente e sob vigência da censura à imprensa. Os rebeldes pretendiam substituir Bernardes por um político capaz de "moralizar os costumes políticos". Lutava-se pelas mesmas demandas de caráter liberal já levantadas em 1922: além do voto secreto, "representação e justiça", moralização dos costumes políticos e, de uma maneira geral, o cumprimento dos preceitos liberais da Constituição de 1891.

    Durante três semanas, os rebeldes resistiram ao cerco das tropas governistas à capital de São Paulo. Ante o dilema de serem derrotados pela superioridade militar ou se retirarem para outra região, onde fosse possível rearticular o movimento, o general Isidoro optou pela segunda alternativa. Sempre perseguidos pelos adversários mais numerosos e bem-armados, eles conseguiram chegar ao oeste do estado do Paraná, onde se estabeleceram. Logo enfrentariam as tropas comandadas pelo general Cândido Mariano Rondon, que se oferecera a Artur Bernardes para combater os militares rebelados.

    A conspiração tenentista prosseguiu durante  todo o ano de 1924. Após o levante paulista, atingiu um ritmo acelerado no Rio Grande do Sul, estado em que contaria com o apoio dos maragatos (os libertadores) liderados pelo rico fazendeiro Joaquim Francisco de Assis Brasil. As condições precárias dos rebeldes paulistas, cercados no oeste do Paraná, contribuíram para aguçar o espírito de luta da jovem oficialidade comprometida com a chamada "revolução", levando-a a se mobilizar em solidariedade aos companheiros de São Paulo.

    O principal coordenador da rebelião militar no Rio Grande do Sul foi o tenente Aníbal Benévolo, da Brigada de Cavalaria de São Borja. Também foram importantes na deflagração do levante gaúcho o capitão Luiz Carlos Prestes e o tenente Mário Portela Fagundes. Ambos haviam servido no 1º Batalhão Ferroviário (1º BF) de Santo Ângelo e mantido contato estreito e permanente com a tropa.

    Na noite de 28 de outubro, levantou-se o 1º BF, sob o comando de Prestes e Portela, e, na madrugada de 29, algumas outras unidades militares nesse mesmo estado. Ao mesmo tempo, vários caudilhos ligados a Assis Brasil aderiram ao levante. As tropas dos maragatos, de lenço vermelho no pescoço, incorporaram-se às diversas unidades, constituindo um reforço para a "revolução" tenentista.

    As forças governistas foram rapidamente mobilizadas e lançadas contra os rebeldes. Devido à falta de coordenação entre as unidades rebeladas e à espontaneidade de suas ações, em poucos dias estavam desbaratadas. A "revolução" conseguiu sobreviver apenas na região de São Luís Gonzaga: primeiro pelo fato de a cidade se encontrar distante de qualquer linha férrea, o que, naquela época, dificultava o acesso das tropas governistas, retardando sua investida contra os rebeldes; segundo, por conta do papel decisivo do capitão Prestes na reorganização das tropas. Na prática, Prestes passou a comandar não só o 1º BF, que viera com ele de Santo Ângelo, como também os elementos militares e civis remanescentes dos diversos levantes ocorridos no estado.

    A atuação prévia de Prestes no 1º BF, durante  quase dois anos, levara-o a introduzir nessa unidade não só um novo tipo de instrução militar como também um novo tipo de relacionamento entre os soldados e o seu comandante. Assim, o jovem capitão, preocupado em garantir uma boa alimentação para a tropa, adotou uma série de medidas: a contratação de um padeiro e um cozinheiro; organização das atividades e do tempo dos seus subordinados para que todos pudessem estudar, ter aulas de educação física e receber instrução militar; além da execução do trabalho de construção da linha férrea que ligaria Santo Ângelo a Giruá (RS). O próprio Prestes tornou-se professor e criou três escolas: uma para alfabetização e as outras duas, ao equivalente hoje, de ensino fundamental e médio. Em três meses, não havia analfabetos na companhia. Prestes não só comandou seus soldados como, ao mesmo tempo, trabalhou junto com eles. O capitão conseguia estimular a iniciativa dos soldados, sem desprezar a disciplina, que era obtida com o exemplo do próprio comportamento. Em consequência, o prestígio de Prestes tornou-se enorme, garantindo a fidelidade do 1º BF na hora do levante.

    Em São Luís Gonzaga, Prestes enfrentou a necessidade de organizar a resistência ao ataque inimigo em preparação. Foi assim que o 1º Batalhão Ferroviário transformou-se na espinha dorsal da tropa rebelde, que ficaria conhecida como a Coluna Prestes.

    Em dezembro de 1924, 14 mil homens, sob o comando do Estado-Maior governista, marchavam sobre São Luís Gonzaga. Formavam o chamado "anel de ferro", com o qual se pretendia estrangular os rebeldes - cerca de 1,5 mil homens, armados precariamente e quase desprovidos de munição - acampados em torno da cidade. O governo adotava a "guerra de posição" - a única tática que os militares brasileiros conheciam e que, de acordo com o modelo dos combates travados durante a Primeira Guerra Mundial, consistia em ocupar posições, abrindo trincheiras e permanecendo na defensiva, à espera do inimigo. Ou, então, quando as posições inimigas estavam localizadas, definia-se o "objetivo geográfico" para onde se deveria marchar, com a meta de cercar o adversário.

    Prestes, assessorado por Portela, põe em prática a "guerra do movimento" - uma espécie de luta de guerrilhas, então uma novidade para o Exército brasileiro. O rompimento do cerco de São Luís pelos rebeldes e a marcha vitoriosa da Coluna comandada por Prestes em direção ao norte, visando socorrer os companheiros de São Paulo, cercados pelas tropas do general Rondon, constituíram a primeira grande vitória da nova tática militar imaginada por Prestes.

    Em 12 de abril de 1925, na cidade paranaense de Foz do Iguaçu, deu-se o encontro histórico das tropas gaúchas com os rebeldes paulistas. A proposta de Prestes de prosseguir na luta, dando continuidade à marcha rebelde acabou prevalecendo. O principal objetivo era manter acesa a chama da rebeldia tenentista e, com isso, atrair as forças inimigas para o interior do país - o que poderia contribuir para o êxito dos "tenentes", que conspiravam no Rio de Janeiro e em outras capitais, preparando novos levantes.

    Após a junção das colunas paulista e gaúcha, as tropas rebeldes foram reorganizadas, criando-se a 1ª Divisão Revolucionária, constituída pelas brigadas "São Paulo" e "Rio Grande", sob o comando do major Miguel Costa, o oficial de maior patente, promovido a general-de-brigada pelo general Isidoro. Ao todo, a divisão contava com menos de 1,5 mil combatentes, sendo oitocentos da coluna gaúcha e os restantes da coluna paulista. Havia cerca de cinquenta mulheres, entre gaúchas e paulistas, que, na maioria dos casos, acompanhavam seus maridos e companheiros.

    A formação da 1ª Divisão Revolucionária representou a vitória da perspectiva aberta por Prestes de os rebeldes atravessarem o rio Paraná e marcharem para Mato Grosso, dando continuidade à "revolução" tenentista. Enquanto as tropas paulistas haviam sofrido uma séria derrota em Catanduvas (PR), a Coluna Prestes vinha do sul coberta de glórias. Nessas circunstâncias, Prestes teria um papel destacado à frente da 1ª Divisão Revolucionária. O general Miguel Costa tornara-se o comandante-geral, mas, reconhecendo a competência e o prestígio de Prestes, entregou-lhe, na prática, o comando da Coluna. A Coluna Prestes, que nascera no Rio Grande do Sul, partiu do Paraná revigorada pela junção com os rebeldes que se levantaram em São Paulo, a 5 de julho de 1924.

    A Coluna, além de mal-armada, não contava com uma retaguarda que assegurasse o abastecimento da tropa. Baseado na experiência do 1º BF, Prestes transformou a tropa rebelde num exército, em que vigorava a disciplina militar, ao mesmo tempo em que a iniciativa dos soldados era estimulada. Sem uma disciplina rigorosa e um comando único e centralizado, as forças rebeldes seriam desbaratadas. Mas, sem a participação ativa de cada soldado, sem a compreensão, da parte de cada um deles de que a luta era pela libertação do Brasil do governo despótico de Artur Bernardes, seria impossível garantir a sobrevivência de uma força armada tão diferente: não havia soldo, nem pagamento de qualquer espécie ou vantagens de qualquer tipo; e exigia-se, para permanecer em suas fileiras, um grande espírito de sacrifício e disposição de luta.

    A experiência dos maragatos foi valiosa na organização das forças rebeldes. Adotou-se, por exemplo, o método gaúcho de arrebanhar animais, as "potreadas": pequenos grupos de soldados destacavam-se da tropa em busca não só de cavalos para a montaria e de gado para a alimentação, como de informações, transmitidas ao comando. Esses dados constituíram elementos valiosos para a elaboração de mapas detalhados sobre cada região atravessada pelos rebeldes, permitindo que a tática da Coluna fosse traçada com precisão e profundo conhecimento do terreno. Assim, reduziam-se os riscos de que os rebeldes acabassem pegos de surpresa pelo inimigo. Na verdade, era a Coluna Prestes que, com seus  lances inesperados, surpreendia as forças governistas. As "potreadas" consistiam num fator fundamental para desenvolver a iniciativa e o espírito de responsabilidade dos soldados. Nas palavras de Prestes, foram "os verdadeiros olhos da Coluna".

    O movimento não poderia se transformar num exército revolucionário, movido por um ideal libertário, se não incutisse em seus combatentes uma atitude de respeito e solidariedade em relação ao povo com quem mantinha contato. Qualquer arbitrariedade era punida com rigor; em alguns casos de maior gravidade, chegou-se ao fuzilamento dos culpados, principalmente quando houve desrespeito a famílias e, em particular, a mulheres. Da mesma forma, não se admitiam saques ou atentados gratuitos à propriedade.

    A Coluna Prestes durou dois anos e três meses, percorrendo cerca de 25 mil quilômetros através de treze estados do Brasil. Jamais foi derrotada, embora tenha combatido forças muitas vezes superiores em homens, armamento e apoio logístico, tendo enfrentado ao todo 53 combates. Os principais comandantes do Exército nacional não só não puderam desbaratar o movimento, como sofreram pesadas perdas e sérios reveses impostos pelos rebeldes durante sua marcha. Seu périplo pelo Brasil derrotou 18 generais.

    Ao adotar a tática da "guerra de movimento" garantiu a própria sobrevivência em condições que lhe eram  extremamente desfavoráveis. E mais, transformou-se num exército com características populares. Paralelamente, forjou um novo tipo de combatente, de soldado da liberdade, que se batia por um ideal, e também formou líderes de envergadura que vieram a influir decisivamente nos acontecimentos posteriores.

    Dado o fracasso governista no combate à Coluna Prestes, ela poderia continuar percorrendo o país, tirando proveito de sua mobilidade extrema, a grande arma que a tática da "guerra de movimento" lhe conferia. Mas Prestes compreendeu que havia chegado a hora de mudar de tática. Uma nova visão do Brasil - que ele adquirira durante a marcha, ao se deparar com a miséria em que vegetava a maior parte da população do país - contribuiu para essa conclusão. Dessa forma, o comando da Coluna tomou a decisão de partir para o exílio, ingressando na Bolívia em 3 de fevereiro de 1927. Como assinalou o cronista da marcha, Lourenço Moreira Lima, "não vencemos, mas não fomos vencidos".

    Apesar das dificuldades, os rebeldes chegaram à Bolívia com o moral elevado, cônscios de que haviam cumprido o seu dever, sem nada receber em troca. Seus comandantes e soldados partiram para o exílio num estado de absoluta pobreza, enquanto os generais governistas tinham enchido os bolsos à custas do erário público, que lhes oferecera verbas generosas para liquidar os revoltosos. A Coluna, praticamente desarmada, com apenas 620 homens, havia vencido todos os embates com as forças governistas.

    Os soldados rebeldes foram os desbravadores do caminho que minou os alicerces da Primeira República. A sobrevivência da Coluna Prestes constituiu um fator decisivo para que, em diversos pontos do país, eclodissem levantes tenentistas. Embora essas revoltas militares - que sempre contaram com a colaboração de civis - tivessem sido esmagadas, a Coluna contribuiu para que, durante vários anos, fosse mantido um clima "revolucionário" no país, favorável à germinação das condições que levaram ao colapso da República Velha e à vitória da chamada Revolução de 30, propiciando o início de uma nova etapa no desenvolvimento capitalista no Brasil.

    A Marcha da Coluna e o impacto causado em Prestes pela situação deplorável em que viviam as populações do interior do Brasil levaram o Cavaleiro da Esperança a se transformar, anos mais tarde, na principal liderança do movimento comunista no país. A Coluna Prestes gerara o mais destacado líder da revolução social no Brasil.


Texto de Anita Leocádia Prestes. Professora adjunta de História do Brasil no Departamento de História da UFRJ. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

A Lebre na Lua

    Segundo alguns povos do Oriente, as manchas que aparecem na face da lua cheia se assemelham à figura de uma lebre. E diz a lenda que isto aconteceu assim...

    Há muitos milênios, viviam, à margem do rio Ganges, quatro bichos diferentes que eram amigos e companheiros: um macaco, uma lontra, um pequeno chacal e uma lebre, a mais virtuosa dos quatro.

    Um dia ela reuniu os amigos e lhes disse: "Amanhã será lua cheia, o dia que nós reservamos para meditar e fazer jejum. Não precisamos, pois, de comida, mas sugiro que cada um de nós saia à procura de alimentos necessários para dar de esmola caso alguém nos venha pedir".

    Os bichos concordaram e cada um foi se recolher para passar a noite, e no dia seguinte sair em busca de comida. O chacal subtraiu o almoço de um pastor distraído, que era uma gamela de coalhada com arroz. O macaco tirou algumas mangas maduras de uma mangueira próxima. A lontra apanhou alguns peixinhos esquecidos por um pescador. E a lebre, que passara a noite em profunda meditação, pensou consigo mesma: "Não vou preparar nada. Se algum necessitado vier pedir comida, darei meu próprio corpo para ele se alimentar".

    Essa ideia tão generosa chamou a atenção dos mundos superiores, e um dos espíritos, o deus Sekra, decidiu descer até a terra, encarnando no corpo de um brâmane, para conferir em pessoa as dádivas dos quatro amigos animais. Primeiro, ele apresentou-se à lontra: "Minha filha lontra, estou com fome, desde ontem não como nada. Será que você poderia ceder-me algum alimento? Em troca, eu lhe darei as minhas bênçãos." A lontra entregou-lhe os peixinhos, e ele agradeceu, dizendo que voltaria logo mais para buscá-los. E foi falar com o pequeno chacal: "Amigo chacal, você não teria algum alimento para dar a um pobre faminto?" O chacal ofereceu-lhe a coalhada com arroz, e o brâmane agradeceu e disse que voltaria logo para buscar a comida. Então, foi procurar o macaco pendurado pelo rabo num galho de árvore e fez o mesmo pedido. O macaco ofereceu-lhe as mangas maduras. O brâmane agradeceu, dizendo que voltaria logo para buscá-las.

    Por último, o deus Sakra disfarçado em brâmane foi procurar a lebre que continuava a meditar à beira da sua toca, e tornou a fazer a mesma pergunta, à qual a lebre respondeu: "Meu santo homem, vou oferecer-lhe um lauto almoço. É um pedaço de carne fresca, que você só terá de assar numa pequena fogueira. Prepare o braseiro. Quando o fogo estiver alto, eu trarei a carne para o seu almoço."

    O brâmane juntou alguns gravetos, acendeu uma alegre fogueira ao lado da toca da lebre e perguntou então qual seria a carne que lhe serviria de almoço. "É o meu corpo", respondeu a lebre, e no mesmo instante pulou para o meio do fogo. Mas o fogo ardia e não queimava a lebre, que até reclamou: "Ó santo homem, o seu fogo não queima. Você vai ter de aumentá-lo, pois do jeito que está, chego a sentir frio".

    Em vez de responder, o brâmane desapareceu e no seu lugar surgiu um belíssimo e luminoso jovem, que se apresentou como o deus Sakra encarnado e disse: "Um ato tão nobre e generoso como este de ficar para sempre na memória dos homens." E, crescendo desmesuradamente, ele arrancou com a mão o cume de uma montanha próxima, amassou-o dentro do punho, e com essa massa lambuzou a face da lua cheia que acabava de surgir no céu, formando uma figura na forma de lebre. Esta figura apareceria aos homens a cada lua cheia para lembrar-lhes a bela ação daquela pequena lebre, que mostrou que quem dá uma esmola deve dá-la de todo o coração, dando tudo, e às vezes até o próprio corpo.


Lenda indiana recontada por Tatiana Belinky retirada da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, Agosto de 1998.

terça-feira, 26 de julho de 2022

A tapeçaria de Aracne

    Há muito tempo, na Grécia Antiga, contavam que Palas, a deusa da sabedoria (que mais tarde os romanos chamariam de Minerva), ensinava todos os segredos de fiação e tecelagem a uma moça chamada Aracne.

    Aracne era de origem humilde, mas se tornou tão habilidosa com fios e tramas que até as ninfas dos bosques e dos rios vinham vê-la trabalhar. Não só porque os tecidos que fazia eram incomparáveis, mas até porque a graça de seus movimentos tinha a beleza de uma arte, desde que puxava os chumaços de lã ou cânhamo até quando fazia novelos e meadas. E, principalmente, depois, quando a linha macia e longa se convertia em belos panos num tear ou era ricamente bordada em desenhos divinos. Divinos, sim. Pois todos os que viam o trabalho de Aracne logo concluíam que ela aprendera seu ofício com Palas, e cobriam a deusa de louvores. Ora, quanto mais atenção atraía, mais Aracne se ofendia com os elogios a Palas e negava qualquer mérito à deusa. Até que certo dia acabou exclamando:

    Sou muito melhor tecelã que Palas! Se ela viesse competir comigo, todos iam ver isso. E, se me vencesse, poderia fazer comigo o que quisesse. Antes de aceitar o desafio, a deusa se disfarçou e veio visitar Aracne sob forma de uma velha, aconselhando-a a respeitar a experiência e a sabedoria dos anciãos e a reconhecer a superioridade dos deuses.

    - Se você arrepender de suas palavras e pedir perdão, tenho certeza de que Palas a perdoará - disse.

    - Você está é de miolo mole, sua velha. Quer dar conselhos? Vá procurar suas netas... Eu me defendo sozinha. Palas tem medo de mim. Se não tivesse, já teria vindo me enterrar.

    A velha deixou cair o disfarce e se revelou em todo o seu esplendor:

    - Pois Palas veio, sua tonta!

    As ninfas e todas as mulheres se prostraram diante da deusa, mas Aracne manteve seu desafio.

    Sem perder tempo, cada uma das duas foi para um canto do enorme salão, com seus novelos, meadas, fio e seu tear.

    Durante muito tempo, uma belíssima tapeçaria foi surgindo em cada tear. Palas fez questão de ilustrar em seu bordado todas as histórias de mortais que tinham desafiado os deuses e os terríveis preços que tiveram de pagar por isso. Aracne, por outro lado, mostrou em sua tapeçaria os inúmeros crimes que os deuses já tinham cometido, recriados com exatidão e minúcia de detalhes. Cada uma, ao final, rematou seu trabalho com uma preciosa moldura tecida.

    Ninguém se surpreendeu com a perfeição da obra de Palas. Mas quem ficou surpresa foi a deusa, pois, por mais que procurasse o mínimo defeito na obra de Aracne, não conseguiu encontrar uma única falha. Com raiva, bateu várias vezes com seu bastão na testa da tecelã.

    Não suportando a dor, Aracne passou um fio no pescoço para se enforcar. Mas Palas teve pena e a segurou, suspensa no ar, dizendo:

    - Você tem má índole e é vaidosa, mas tenho que respeitar sua arte. Não admito que morra. Porém, você e seus descendentes viverão sempre assim, suspensos o tempo todo.

    E, ao partir, borrifou-lhe uma poção que fez o cabelo da moça cair, a cabeça e o corpo encolheram, os dedos cresceram, e a transformou para sempre numa aranha, condenada a fabricar fio e teia até o final dos tempos. Sempre com perfeição incomparável.


Lenda grega recontada por Ana Maria Machado retirada da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, Maio de 1998.


Navegar é preciso, contar também.

Relatos de naufrágio tornaram-se populares na Europa do século XVI ao narrar as aventuras e infortúnios das viagens dos portugueses além-mares, incluindo Brasil.


    Portugal lançava suas naus ao mar, com vistas para o mundo: África, América e, sobretudo, o Oriente. Estamos em meados do século VXI. Mesma época em que surge um língua portuguesa um gênero narrativo que ganha imediato prestígio e se espalha por toda a Europa, com grande sucesso. Trata-se dos relatos de naufrágio, notícias dos embarcados e de todo o universo de aventuras - e desventuras - que cercavam as viagens dos navios mercantes portugueses ao ultramar.

    De fato, desde a descoberta da rota das Índias por Vasco da Gama, em 1498, uma armada em direção ao Oriente deixava o porto de Lisboa, todos os anos, por volta de março ou abril. Composta de quatro ou cinco naus, saía do Tejo até o Atlântico, tomava-o na direção do sul, contornava a África e ganhava a costa do Malabar, Goa, Cochim, ou mesmo o Ceilão, portos em que os portugueses estabeleceram feitorias e entrepostos comerciais. Os navios iam em busca de pimenta, cravo e canela, além de outras novidades e objetos de luxo que exerciam grande atração sobre os mercados europeus. Mesmo com riscos, não se cogitava interromper as aventuras. Muitos barcos e vidas eram perdidos, mas havia consenso sobre a necessidade de continuar o comércio com o Oriente. "Náufragos não podem parar as navegações", o rifão era uma voz uníssona.

    As causas dos naufrágios eram bem conhecidas: embarcações velhas ou em mau estado, sobrecarga, arranjo desequilibrado das caixas no convés, falta de material de reposição, como cordas, velas e pregos. A explicação mística, porém, prevalecia: a culpa pelos pecados e o merecido castigo que chegava com o infortúnio do mar.

    Grande parte da população estava envolvida no projeto expansionista português: negociantes, banqueiros, contrabandistas, traficantes e "oficiais del Rei", como eram então denominados os funcionários da Coroa que ocupavam os muitos postos administrativos e técnicos na intrincada burocracia que então se formou. Surgiam instituições específicas para a execução de projeto. A começar pela Casa da Índia, em funcionamento desde 1502, que contratava homens para os trabalhos no interior dos navios assim como para tarefas em terra. Da mesma maneira, uma série de profissões diretamente vinculada às viagens marítimas estabelecia-se. Nesse cenário, não é difícil entender a grande popularidade alcançada por esses escritos de viagens acidentadas, que pode ser atestada pelas tiragens expressivas de mil exemplares em uma época em que um livro de sucesso não ultrapassava trezentas cópias.

    Todos os relatos conhecidos narram acontecimentos da rota do Oriente, à exceção de um deles, o do naufrágio da nau Santo Antônio, ocorrido em 1565, em que viajava Jorge d'Albuquerque Coelho. Esse, além de ser um dos mais bem elaborados, do ponto de vista literário, é raro, pois narra um capítulo da história colonial brasileira. Embora comece com uma referência à política da metrópole - "No tempo em que a rainha dna. Catarina, avó d'el Rei d. Sebastião, governava o Reino de Portugal por seu neto" -, o que se segue é uma descrição sobre a capitania de Pernambuco e a atuação da família dos Albuquerque Coelho na guerra  contra os índios Caetés.

    A narrativa reúne também informações sobre as histórias fantasiosas que corriam na boca do povo, no porto de Olinda, prognósticos de feitiçarias, milagres e acontecimentos fantásticos, tendo como pano de fundo uma questão marcante do período: a guerra das religiões que aparece ali em sua versão particularizada, encarnada em personagens rudes, marinheiros, soldados e piratas, com intuito de evidenciar o alcance social daquele cisma que dividiu a Europa entre protestantes e católicos. Nesse contexto, a nau Santo Antônio, em meio a uma bruma espantosa, é aprisionada, na altura das ilhas do Cabo Verde, por piratas franceses. Protestantes luteranos, eles praticavam todo tipo de heresia, quebrando imagens de santos, arrancando os terços e livros de missa dos portugueses, zombando de suas rezas. Essa nau sofre danos desde sua partida e, após sobreviver ao ataque dos franceses e a ventos e tormentas, chega meses depois, toda estraçalhada, à Roca de Sintra.

    Outros relatos do período fazem referência ao Brasil. Caso da nau São Paulo que saíta em direção à Índia, em 1560, mas, retardada por chuvas no golfo da Guiné, é obrigada a arribar ao porto da Bahia, onde atraca por 44 dias para reparos. O narrador, um boticário que ia para Goa, descreve a aventura com travo popular, humor ácido, povoado de ditados, citações e revelando também uma extraordinária capacidade de observação de costumes. Elogia a terra e suas belezas e segue afirmando que muitos homens que adoeceram de febres naquela viagem, ao chegarem ali ficaram logo curados pelos bons ares: "... por ser esta terra do Brasil mui sadia e de muitos bons ares toda em si, por extremo e ter muitos bons mantimentos e mui gostosos e sadios, assim os do mar como os da terra".

    A descrição prossegue com comentários sobre costumes indígenas, como a antropofagia, o resguardo dos homens, os códigos de honra; identifica graus de parentescos e os tabus que os regulam, tudo isso com uma invulgar capacidade de suspensão de valores, sem depreciar hábitos tão estranhos a um europeu. Retomando seu caminho para a Índia, apanha mares grossos e ventania, na altura das ilhas Tristão da Cunha, e naufraga nas proximidades do Cabo da Boa Esperança.

    Também na Bahia aportou a nau São Francisco. Dessa experiência nasceu um relato, bastante incomum, escrito por um padre jesuíta sob forma de carta, em que conta as aventuras do navio que, saído para o Oriente, é empurrado pelos ventos para as costas brasileiras, sofrendo três acidentes no Atlântico, todos sem drásticas consequências. O narrador não perde nunca seu senso de humor ao fazer o balanço de sua peregrinação que durou três anos. Confirma o viço da terra, rememora o bom passadio no Colégio da Bahia, encantado com as frutas desconhecidas (a banana, o abacaxi, a papaia, o jenipapo), sua beleza, perfume e sabor. Destaca as plantas curativas, o bálsamo, o óleo de copaíba e uma iguaria nova, uma erva santa, servida no fim dos banquetes: o tabaco. Erva tão cheia de virtudes, que os padres e leigos mal podiam esperar o fim da missa ou a comunhão para pitar e medicar o corpo.

    Essa escrita que realça os aspectos informativos, curiosos e pitorescos das viagens ao mar, poderia, por si só, explicar o sucesso daqueles pequenos livros. Porém, razões menos evidentes justificam a trajetória bem-sucedida dos folhetos: o fato de revelarem um sentimento de crise e de um estado de ânimo pessimista que tomava conta da Europa e, sobretudo, Portugal que perdera a primazia das navegações oceânicas e sentia os efeitos de uma forte crise política, além de catástrofes naturais, tremores de terra e enchentes, surtos de pestes e revoltas populares. 

    Outros motivos, no entanto, concorrem para a popularidade dos relatos de naufrágio, dentre eles, um de natureza técnica e material: a moda do texto impresso. Mesmo em um tempo em que a imprensa era recente, os livros, caros, e a população letrada, muito reduzida, o sucesso desses livrinhos confirmava que o mundo havia entrado de forma irreversível na era da escrita. Portugal, em particular, já contava com a imprensa apenas três décadas após a invenção dos tipos móveis, em 1448, por Gutemberg. Em meados do século XVI, já havia um movimento editorial intenso, em que algumas casas se dedicavam a imprimir obras luxuosas, enquanto outras, pequenas tipografias, publicavam, em verso e prosa, folhas soltas, em edições baratas e populares. Ali se encontravam as histórias mais estimadas do povo, vidas e milagres de santos, aventuras de bandidos célebres, romances de cavalaria - como os do ciclo do rei Artur ou de Carlos Magno - ou histórias cômicas e sentenciosas, em meio às quais passaram a ser encontradas também as histórias de viagens e batalhas marítimas, assim como as relações de naufrágios dos galeões e naus da Índia.

    É provável que muitas dessas histórias tenham se perdido. A principal documentação existente - uma coletânea com 12 relatos de naufrágio - resultou de um trabalho de edição e publicação, em dois volumes, em 1735 e em 1736, intitulado História trágico-marítima, de onde constam as narrativas dos naufrágios das naus Santo Antônio, São Paulo e São Francisco. A compilação foi feita pelo historiador oitocentista Bernardo Gomes de Brito, membro da Academia Real de História. Revela seu biógrafo, que ele teria como projeto a publicação de mais três volumes contendo relatos semelhantes. Não se conhece a razão de tanto interesse de Bernardo Gomes de Brito, num período em que a historiografia oficial, de cujo círculo fazia parte, privilegiava o estudo das genealogias das famílias reais, das batalhas e das biografias de personalidades, a prosopopeia; e temas religiosos, a vida dos santos, a hagiografia e a teologia.

    Não se sabe também por que interrompeu seu projeto e publicou apenas os dois primeiros volumes, dos cinco pretendidos. As causas podem estar nas dificuldades que encontrava à época qualquer livro pra ser publicado, entre elas a de ser submetido às muitas instâncias do Santo Ofício e do Paço. A história trágico-marítima demorou seis anos em tramitações burocráticas. Desde que foram iniciados, em 1729, os pedidos de licenças de praxe para sua publicação, até 1735, quando receberam finalmente a autorização, ou seja, o imprimatur.

    Não fosse a coletânea de Gomes de Brito ficaria perdido para sempre um material precioso de pesquisas, para a história e para a literatura, pois, sem dúvida, os relatos de naufrágio prenunciam, de muitas maneiras, as convenções do relato histórico, do ficcional e do etnográfico, que ali aparecem de forma imbricada e embrionária.

    Apesar das diferenças entre os relatos de naufrágio, eles são organizados segundo um modelo que traz na primeira parte a descrição da preparação para a viagem. Nela estão contidos os dados mais importantes sobre o organização da armada, datas, nomes, o porto de saída e o de destino. Após a partida, é narrada a vida a bordo, o trabalho, as rezas, os jogos, as calmarias letárgicas.

    A ameaça de um naufrágio abre a segunda parte. Uma cena se impõe, abruptamente: uma avalanche de ondas que dos píncaros cavam abismos, ventos cruzados, chuvas, nuvens escuras, relâmpagos e trovoadas. É a preparação para o naufrágio. Começa então a luta dos homens contra a natureza em fúria. Eles fazem de tudo para não perder o timão, para esgotar a água, limpar os escoadouros entupidos de pimentas. A situação agrava-se mais e mais e, então, para os navios ficarem mais leves e governáveis, torna-se necessário jogar as mercadorias ao mar.

    Os narradores descrevem um quadro fantástico: o mar coberto de barris e caixas, mercadorias caras, tapetes, tecidos, brocados; mirra e benjoim, riquezas que eram antes tão amadas por seus donos e que, no momento do perigo, são um estorvo, dificultando o equilíbrio dos navios. As cenas do naufrágio da nau São Tomé ilustram o tom desses relatos: "tudo quanto viam se lhes representava a morte; porque por baixo viram a nau cheia de água, por cima o céu conjurado contra todos, porque até ele se encobriu com a maior cerração e escuridão que se viu. O ar assobiava de todas as partes, que parecia que lhe estavam bradando morte, morte".

    São também descritas cenas que aconteciam no interior dos navios: os homens trabalhando, crianças e mulheres chorando, outros se confessando em voz alta, padres organizando rezas e ladainhas, tudo isso em uma linguagem exaltada e crivada de imagens altissonantes. Em torno da imagem poderosa do naufrágio, desenvolve-se uma profusão de motivos que preparam a ação: nuvens, chuvaradas e relâmpagos, elementos que estão ali não para reportar fenômenos atmosféricos, mas para configurar uma concepção trágica da existência, em que o mundo encontra-se arruinado pela cobiça e os personagens, pela culpa. Assim, desfila no texto um vasto repertório de alegorias que, em muitos aspectos, prenunciam o barroco, em sua obsessão por temas extraordinários.

    Na sucessão dos acontecimentos, passado o clímax do naufrágio, é dada a hora de buscar e contar os sobreviventes, em geral os que escaparam em barcos salva-vidas ou os que foram jogados, pelas ondas, nas praias da costa oriental da África.

Nesse ponto, inicia-se a terceira parte do relato: a perdição em terras desconhecidas, aventuras e encontros surpreendentes com reis mouros e africanos, sofrimentos, trabalhos e necessidades. Após o naufrágio, a narrativa retoma um tom mais informativo e traz descrições de hábitos e ritos, observações curiosas e depoimentos sobre a dificuldade de se comunicar, de resgatar água potável e alimentos, trocados, em geral, por pregos e pedaços de ferro que os portugueses conseguiam recuperar da nau destroçada.

    Tanto no auge do naufrágio quanto no momento que o sucede - quando os sobreviventes estão perdidos e necessitados -, os narradores lançam mão de imagens alegóricas muito impressionantes para figurar a desproporção entre as forças da natureza e a fragilidade humana, a inutilidade das riquezas acumuladas, a inversão da fortuna. Eles se valem também de recursos retóricos para ampliar o efeito da cena trágica sobre o leitor. Quando os portugueses iniciam sua caminhada pelas praias e sertões da África, fazem-na ordenadamente, em forma de uma procissão, com uma cruz à frente, como penitentes arrependidos, enrolados em cordas, purgando suas culpas. Tudo isso, como diz um narrador, para "manter a morte diante dos olhos" e levar as pessoas à piedade e à contrição.

    Ao ter o naufrágio como foco dramático principal, uma cena-fantasma na memória do narrador, o relato assume muitos outros papéis. Serve como um ex-voto, para agradecer a Deus o fato de ter sobrevivido, serve também para provocar um efeito catártico, "folgar com o fim daqueles males", e poder descansar do passado. Prenunciando as peças fúnebres da oratória do barroco, os epitáfios e as elegias, tão difundidos na cultura barroca europeia, os relatos de naufrágio apresentam uma coleção de temas para meditação. Alegorias sérias e silenciosas, personagens em luto, desenganados, modos trágicos de morrer no mar.


Texto de Maria Angélica Madeira. Professora e pesquisadora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.