domingo, 31 de julho de 2022

A história sai do armário

    Já em 1906, o médico carioca Pires de Almeida, autor do pioneiro estudo A libertinagem no Rio de Janeiro, assim se referia à homossexualidade: "Excluída como objeto de estudo até o presente dia, a pederastia no Brasil tem atravessado os quatro séculos de nossa história, não obstante carecer de observação e pesquisa". De fato, chamada também de sodomia e pecado nefando, isto é, que não pode ser pronunciado (e muito menos praticado!), a homossexualidade vem sendo, nos últimos três mil anos da história ocidental, vítima de cruel preconceito, motivado em grande parte pela ideologia machista do patriarcado, que se escorando em traduções equivocadas dos textos bíblicos, considera o amor entre pessoas do mesmo sexo como um pecado/crime mais grave do que matar mãe ou violentar crianças, equiparado ao regicídio e à traição nacional. Prevalece até hoje um obscurantista complô do silêncio, imposto pela cruz e pela espada, impedindo que este tema mereça a devida atenção dos estudiosos, mesmo daqueles historiadores interessados na vida privada e na história das mentalidades.

    Estudar a homossexualidade numa perspectiva histórica representa mais do que um simples olhar curioso sobre as condutas pecaminosas de nossos antepassados. Reconstituir a história gloriosa da pederastia na Grécia antiga, por exemplo, traz à baila um de nossos mais melindrosos tabus contemporâneos: as relações sexo-afetivas intergeracionais (pederastia). A inequívoca bissexualidade de Alexandre Magno mereceu grande destaque na imprensa internacional, quando do recente lançamento do filme, gerando o absurdo protesto de machistas gregos, ultrajados com a homoafetividade do maior general da antiguidade. Estudos profundos sobre a homossexualidade no Mediterrâneo, no seio do clero medieval, entre os mouros na Península Ibérica etc., obrigam-nos à revisão de um fantasma do imaginário europeu moderno: a acusação, baseada tão somente no preconceito, de que a homossexualidade teria sido a causa da queda dos principais impérios da antiguidade - ilação que não conta com qualquer base empírica de sustentação a não ser a homofobia - esta doentia intolerância aos homossexuais. Pesquisas recentes estão descontruindo outro mito bastante caro a certos militantes do movimento negro, comprovando a existência do homoerotismo também na África pré-colonial, assim como entre os ameríndios e demais populações tribais.

    Reconstruir a história secreta dos sodomitas, fanchonos e fanchonas, pederastas, gays e lésbicas luso-brasileiros, assim como dos afro-ameríndios perseguidos pela Santa Inquisição e depois pelos doutores e delegados, a partir do século XIX, obriga-nos a refletir sobre nosso presente, na medida em que os amantes do mesmo sexo continuam sendo a minoria social mais odiada no Brasil contemporâneo, com uma rejeição de até 80 por cento entre as elites formadoras de opinião. A censura ao beijo de dois rapazes em popular novela brasileira comprova a brutalidade dessa intolerância, devendo servir de estímulo aos historiadores para retirar do armário nossa história secreta do "amor que não ousava dizer o nome". Tais pesquisas hão de confirmar que, de fato, o amor não tem sexo, e que a humanidade só atingirá um grau superior de civilização quando todos nos reconhecemos como membros de uma única e mesma espécie humana.


Texto de Luiz Mott. Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutor em Antropologia e decano do movimento homossexual brasileiro. Autor de 15 livros e diversos artigos sobre inquisição, escravidão, religião popular, homossexualidade e direitos humanos. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

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