quinta-feira, 21 de julho de 2022

O caminho de uma delícia

Do xocolatl asteca aos bombons europeus, o cacau originário da Amazônia foi produto rentável no Brasil colonial e se transformou no chocolate, adorado em todo o mundo.


    Quando os castelhanos fizeram contato com os astecas pela primeira vez, no início do século XVI, não era possível prever o quanto esse encontro mudaria o mundo. Populações seriam dizimadas, civilizações desapareceriam, a Europa conheceria um fluxo de metais preciosos capaz de mudar seus rumos, e seus hábitos alimentares passariam por transformações definitivas com a introdução à mesa de novos ingredientes, como a batata, o milho e o tomate. O cacau, uma outra novidade surgida desse encontro, levaria muito tempo até chegar à forma apreciada nos dias de hoje por crianças e adultos das mais diferentes nacionalidades: ele, o chocolate.

    Produto nativo da região amazônica, o cacau se espalhou pelas florestas tropicais da América, sendo consumido pelas populações indígenas do continente. Os maias do período clássico (séculos III-X) foram os primeiros a cultivar o fruto de forma sistemática: usavam as favas como moeda e descobriram que as secando, moendo e misturando com água se obtinha uma bebida - o xocolatl. O cultivo do cacau passou ao povo toltec (séculos X-XIII) e, posteriormente, aos astecas (séculos XII-XVI), que também o utilizavam como moeda e como bebida nutritiva consumida entre quente e morna, considerada fortificante e afrodisíaca, à qual juntavam baunilha, especiarias - como a pimenta - e farinha de milho.

    No Brasil, o cacau era inicialmente colhido pelos índios nas matas da Amazônia. Mas a Coroa portuguesa não demorou para perceber seu valor econômico e, assim, ordenou seu cultivo em ordem régia de 1º de novembro de 1677. Na verdade, desde os primeiros relatos dos descobridores, a planta do cacau e a bebida despertaram a atenção no velho continente. As referências e as descrições do cacau, do cacaueiro ou da utilização das amêndoas como moedas e as alusões ao consumo da bebida foram abundantes por parte de viajantes, cronistas e até médicos. A primeira carga chegou a Sevilha em 1585, como tributo sobre a produção mexicana. Logo os castelhanos esforçaram-se para intensificar a produção para atender a demanda do consumo de cacau que se espalhava por outros reinos europeus. Mas é apenas no século XVII que os castelhanos passam a ter uma "paixão obsessiva" pelo chocolate, quando a bebida já tinha sofrido diversas transformações. A mais importante, atribuída aos carmelitas de Oaxaca, no México, constituiu em acrescentar açúcar de cana ao cacau e à baunilha, ao mesmo tempo em que suprimiram as especiarias anteriormente misturadas.

    Antes de 1677, foram praticamente infrutíferas as tentativas da Coroa portuguesa em fazer com que os colonos no Brasil cultivassem o cacau. Mesmo assim, parece que, em 1665, o vice-rei d. Vasco de Mascarenhas pediu a Paulo Martins, capitão-mor da capitania do Pará, "garfos nascidos ou sementes de cacau, para que se pudesse plantar ou semear na Bahia". Não se sabe se o pedido foi atendido, já que as primeiras plantações da Bahia datam de períodos posteriores.

    Sabe-se, no entanto, que o consumo das delícias originárias do cacau cresciam consideravelmente entre os castelhanos no século XVIII, assim como a produção e a exportação do cacau, a partir de territórios sob o domínio português. Em 1717, um édito do governo de Madrid proibia a entrada do cacau do Maranhão, via Portugal. Essa proibição vigorou até o acordo de 1749, estabelecido entre Portugal e Espanha. Porém, a escassez de açúcar e cacau em solo espanhol facilitou a introdução furtiva daqueles bens pela fronteira portuguesa. Por volta de 1750, o cacau chegou a representar 90 por cento da carga da frota proveniente do Maranhão. A partir de 1760, com a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) - que tinha o monopólio do comércio da região -, o cacau exportado via Belém representou 82 por cento do volume global das exportações.

    Na Europa, a moda de beber chocolate tornava-se uma saborosa realidade entre os grupos abastados. O cacau revolucionava a confecção de bebidas frias e quentes, assim como de bolos, biscoitos, cremes, pudins e gelado. O novo hábito de ingerir chocolate não passou despercebido aos estrangeiros que chegavam a Portugal, que descreviam a saborosa experiência em seus relatos. O guia do criado de servir, publicado em 1851, e O cozinheiro dos cozinheiros, cuja primeira edição é de 1870, testemunham o costume de beber chocolate no fim das festas.

    Essa moda implicou na criação de novos objetos. Acredita-se que foi nos conventos da Nova Espanha que as chocolateiras apareceram. Possuíam asa e tampa com buraco, no qual era introduzido um pau, um batedor ou molinete - de origem indígena - para bater a bebida. Inicialmente foram produzidas de forma grosseira em argila e em cobre, sendo posteriormente fabricadas em materiais nobres, como a prata e porcelana. Dessa forma, as chocolateiras aparecem nos inventários de bens dos mais abastados, como d. Catarina de Bragança, rainha viúva de Carlos II da Grã-Bretanha (1638-1705), e seu irmão, o rei d. Pedro II (1648-1706), que possuíam  requintados exemplares de prata. Ao longo do século XIX, surgiram serviços de chocolate em porcelana magníficos, que acompanhavam chávenas, pires e tabuleiros. No Brasil colonial também havia chocolateiras, algumas produzidas pelas mulheres índias do Pará. Junto com outros instrumentos de preparação e venda de alimentos, elas integravam o patrimônio de negras libertas de Minas Gerais, conforme documentado em vários testamentos.

    À medida que o tempo foi passando, os cozinheiros foram aproveitando outras potencialidades do cacau. Mesmo assim, a maneira de preparar a bebida era explicada por autores como Domingos Rodrigues (século XVII), Bluteau, Francisco Borges Henriques, João Daniel e outros do século XVIII. No primeiro livro de doçaria portuguesa - Arte nova e curiosa - figura uma receita de calda de chocolate para nevar. De fato, raramente encontram-se receitas de doces com o referido ingrediente - entre as exceções estão as conservas de café e chocolate e um creme de baunilha, chocolate e café, apresentados por Lucas Rigaud, um dos cozinheiros do rei de Portugal em 1780 - sucessivamente plagiado, pois essa mesma receita aparece no Cozinheiro Imperial, o primeiro livro de cozinha do Brasil, e nos de Constança Oliva de Lima e Anselmo Pinto de Queiroz.

    É a partir do século XIX que a situação se altera. Às receitas de chocolate para beber, juntam-se algumas pretensamente dietéticas, os chamados chocolates de saúde. Também surgem outras variações: além dos populares cremes de chocolate, presentes em mais de uma dúzia de livros de culinária, é possível encontrar também receitas de molhos, gelados e sorvetes, pudins, biscoitos, bolinhos, bombons, rebuçados, pastilhas e até de licores. Outros autores mais sofisticados do período, como Olleboma, apresentaram profiterolles, musses e suflês de chocolate. De dar água na boca!

    Se algumas famosas receitas europeias apareceram no século XIX - caso do bolo de chocolate austríaco Sachertorte, referenciado desde 1832 e criado em Viena por Franz Sacher (1816-1907), além do tronco de Natal francês, nascido por volta de 1870 -, em terras lusas a realidade foi bem diferente. Apesar da primeira receita portuguesa de bolo de chocolate conhecida datar de 1870 - Fofos de chocolate, apresentada em O Cozinheiro dos Cozinheiros -, só no século XX os bolos com esse ingrediente se generalizaram. Já no Brasil, a abundância do cacau levou até o especialista em insetos Gregório Bondar a fornecer diversas receitas: geléia, doce e licor de cacau, musselina de chocolate (um tipo de bolo), ensinando ainda a maneira de fabricar o chocolate em casa.

    Nas refeições festivas em Portugal, a análise dos menus revela a presença da guloseima. Num banquete servido pela confeitaria Parisiense (Lisboa), em 31 de janeiro de 1897, foi apresentada, entre outros doces, uma charlotte au chocolat. Num almoço, presumivelmente de casamento, fornecido pela Casa Ferrari (Lisboa), em 28 de maio de 1898, os comensais puderam degustar bombons fins de Paris, entre outras sobremesas. No Brasil, doces com chocolate podiam ser apreciados nas afamadas confeitarias, como a Cavé e a Colombo, no Rio de Janeiro do século XIX, e ainda hoje, nessas e em muitas outras casas em todo o país.

    Apesar de jamais ter cultivado cacau, a Europa foi se tornando a principal produtora e consumidora do chocolate até os anos de 1800. A sua importação, do Brasil e da América espanhola, e a posterior aclimatação da planta a outros espaços - em diferentes continentes, como por exemplo em São Tomé e Timor - permitiram que esse produto de luxo chegasse às bocas de diversas camadas da população europeia. O passo seguinte dessa trajetória - passar do beber ao comer chocolate - foi hábito incorporado no século XX e que continua a crescer deliciosamente no Brasil e em diversas regiões do mundo.


Texto de Isabel Drumond Braga. Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

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