quinta-feira, 14 de julho de 2022

Um artista na ilha de Santa Catarina

Registros raros do litoral sul brasileiro no início do século XIX, litografias do russo Louis Choris retratam a região como um cenário de natureza exuberante.


    O século XIX expandiu o mundo. Através de uma profusão de desenhos, pinturas e gravuras, as paisagens e as populações exóticas de lugares distantes como a América, a Ásia e a Oceania tornaram-se acessíveis a um maior número de europeus. Devido a interesses marítimos e comerciais, bem como à divulgação de um conhecimento científico baseado na história natural, difundiu-se a preocupação em registrar de forma mais fidedigna possível as regiões não-europeias. Além disso, a ampliação do mercado editorial - consequência do maior poder aquisitivo e do aprimoramento técnico - possibilitava produzir em larga escala gravuras baseadas nos desenhos e pinturas feitos pelos artistas viajantes, vendidas como álbuns ilustrados. De grande formato, às vezes  coloridos, eram tão caros que, para serem reproduzidos, precisavam contar com a venda antecipada de um número mínimo de exemplares. Somou-se a isso o aumento na procura por esse tipo de obra por uma crescente classe média letrada, que desmembrava as pranchas e as utilizava na decoração de suas residências. Outro destino para esses desenhos eram as manufaturas de tecidos e porcelanas, onde eram reproduzidos por artesãos. A natureza oferecia novos temas para as artes e ofícios.

    Nesse momento, a paisagem na Europa - principalmente na Inglaterra, na França e nos Países Baixos - estava sendo profundamente transformada pela Revolução Industrial. Difundia-se na Europa uma estética que valorizava o passado e as paisagens naturais, cultivando o gosto pelo pitoresco e pelo sublime, numa visão estetizada da natureza. Foi nesse contexto que se disseminou o gosto pelos álbuns e livros de viagens ilustrados, principalmente de paisagens.

    Foram muitas as expedições científicas que varreram o globo, com seus cientistas - através dos relatos - e artistas - através das imagens - que registraram a fauna, a flora, paisagens e costumes do resto do mundo. Entre os artistas que participaram dessas viagens científicas estava Louis Choris (1795-1828), desenhista, pintor e litógrafo russo, nascido em Iekaterinoslav. Em 1813, com apenas 18 anos, participou de sua primeira viagem de estudos ao Cáucaso (montanhas localizadas na atual República da Geórgia), junto com o naturalista Marshall de Biberstein (1768-1826). Posteriormente foi convidade a fazer parte da expedição Rurick, financiada pelo Império Russo, entre os anos de 1815 e 1818 e que tinha como objetivo descobrir uma passagem entre o Pacífico e o Atlântico pelo caminho do estreito de Behring. Ao passar pelo Brasil, fez uma parada na ilha de Santa Catarina, onde permaneceu entre 29 de novembro e 16 de dezembro de 1815. Em 1819, um ano após o término da expedição, Choris partiu para Paris, onde seus primeiros trabalhos começaram a ser publicados nesse mesmo ano. Em 1827, deixou a França para visitar o México e outras regiões da América. Morreu de forma trágica na cidade de Vera Cruz, no México, ao tentar se livrar de assaltantes. 

    No intervalo entre suas duas principais viagens, Choris publicou um álbum onde estão reproduzidas várias pranchas referentes às regiões visitadas pelo Rurick. Quatro delas reproduzem paisagens do Brasil, mais especificamente da ilha de Santa Catarina. São imagens que medem em torno de 20 centímetros de altura por 26 de largura. A primeira coisa que chama a atenção nessas pranchas, que têm como tema as paisagens do sul do Brasil, é o espaço ocupado pela natureza. Ela é representada grande e exuberante, enquanto os seres humanos e sua produção cultural - como, por exemplo, as casas - aparecem de forma marginal, em segundo plano, apesar de algumas vezes centralizadas.

    Choris pintou uma imagem dessa região da América que vai ao encontro das representações que se tinham dos trópicos: plantas e animais coloridos, natureza exuberante e exótica e a presença reduzida do ser humano. Na prancha reproduzida aqui, Choris representou a natureza em toda a sua grandiosidade, com variedade de árvores, como o coqueiro e o mamoeiro, as bananeiras, além dos cactos e ananases. Ao fundo aparecem os morros e, à direita, a praia e o mar. Em primeiro plano, vemos um grupo posicionado em roda - um indivíduo dança e toca pandeiro, outro toca um tamborim enquanto algumas mulheres dançam. Tudo sob o olhar de outros dois indivíduos. O que diferencia essa prancha das outras é a presença de cenas de costumbrismo, que são as descrições da vida popular. Nas outras pranchas  referentes ao Brasil e publicadas no mesmo álbum, as cores e a exuberância da natureza estão colocadas em primeiro plano. Helicônias, filodendros, cactos, bromélias e outras plantas são pintadas ao lado de alguns animais, como o tucano.

    As pranchas eram acompanhadas por um texto explicativo, de autoria do próprio viajante. Na explicação dessa imagem, Choris escreve que "pelo fim do dia os negros, para se distraírem de seus trabalhos penosos, reúnem-se e dançam: por toda a parte onde essa raça de gente habita, ela se entrega com paixão a esse divertimento". Seria essa uma conclusão inconsequente, já que Choris não conhecia tantas regiões onde a presença negra era frequente, ou ela fora baseada em leituras prévias de outros viajantes? Afinal, um dos itens na preparação de um viajante era a leitura de outros relatos de viagem. Além disso, muitos trocavam correspondências entre sí, ou então eram colegas nas academias de ciência e museus de história natural.

    O texto explicativo fala rapidamente sobre as habitações humanas e pinta um quadro pitoresco, formado por casas envoltas por uma vegetação exuberante, com muitas árvores frutíferas e, mais afastadas, plantações de milho. Nas descrições de seus passeios pelo interior da ilha, Choris reforça sua impressão sobre a natureza: "fica-se tomado de admiração vendo-se a variedade, a força e as dimensões gigantescas dos vegetais que, num espaço bastante restrito, recobrem o solo".

    Em seus trabalhos, Choris seguiu as recomendações feitas por Humboldt. As imagens deveriam reproduzir o conjunto natural e não mais as espécies separadas, compartimentadas. Nesse tipo de obra, a arte vincula-se estreitamente ao trabalho científico. Exemplos dessa vinculação podem ser encontradas em várias expedições, inclusive entre as que percorreram o Brasil, e que contaram com artistas, tais como Johann Moritz Rugendas, Hercule Florence e Thomas Ender.

    O trabalho de reprodução em litografia foi elaborado posteriormente, quando Choris já se encontrava na Europa, mas tendo como base os inúmeros trabalhos realizados durante a viagem. Essa técnica difundiu-se no início do século XIX e utiliza a pedra como matriz. Além de possibilitar uma reprodução mais precisa que a xilografia, permite a produção de uma maior quantidade de cópias. Choris aprendera a técnica da litografia durante sua estada em Paris, o que contribuiu para a qualidade de suas pranchas, uma vez que ele conhecia as possibilidades de reprodução de seus esboços.

    Louis Choris optou por um tipo de representação artística da ilha de Santa Catarina e de seus habitantes, na qual priorizou a natureza, com os tipos específicos que melhor representavam a flora e a fauna da região. Mas, ainda que de maneira marginal em algumas imagens e no centro das atenções, em outras, seus trabalhos reproduzem os tipos humanos que viviam na região de forma estereotipada, reforçando uma imagem já existente na Europa.


Texto de Luciana Rossato. Professora de História na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

Nenhum comentário:

Postar um comentário