quarta-feira, 27 de julho de 2022

Uma epopeia brasileira

A Coluna Prestes, sem vencer nem ser vencida pelo governo que combatia, percorreu 25 mil quilômetros para abalar as estruturas da República Velha.


    Dia 28 de outubro de 1924: começa o levante tenentista no estado do Rio Grande do Sul. Logo a seguir tem início a marcha rebelde que, mais tarde, entraria para a história como a Coluna Prestes (ou Coluna Invicta), episódio culminante do movimento. Diante da grave crise estrutural (econômica, social, política, ideológica e cultural) que abalava a República no início dos anos 1920 - a crise do "pacto oligárquico" estabelecido entre os grupos oligárquicos dominantes -, os setores médios mostravam-se insatisfeitos com a falta de liberdade e as limitadas possibilidades de influir na vida política. Predispunham-se à revolta e a apoiar ações radicais contra o poder da oligarquia. Faltavam-lhes, contudo, organização e capacidade de arregimentação para assumir a direção do movimento de rebeldia contra esse domínio estabelecido. A insatisfação no país era geral, mas foi a jovem oficialidade do Exército e da Marinha que assumiu a liderança das oposições. O tenentismo veio preencher o vazio deixado pela falta de líderes civis aptos a conduzir o processo de lutas que começava a sacudir as já caducas instituições políticas da Primeira República. Os "tenentes" assumiram as bandeiras de conteúdo liberal que, há algum tempo, vinham sendo agitadas pelos setores oligárquicos dissidentes, dentre as quais se destacava a demanda do voto secreto, refletindo o anseio generalizado de liquidação da fraude eleitoral então em vigor. O que distinguia os revoltosos das oligarquias dissidentes e dava ao seu liberalismo um caráter radical era a disposição de recorrer às armas na luta por tais objetivos.

    A primeira revolta, rapidamente sufocada tanto no Rio de Janeiro como em Mato Grosso - os únicos lugares em que chegou a ser deflagrada -, imortalizou-se pelo episódio do Levante dos 18 do Forte de Copacabana, no dia 5 de julho de 1922. Liderados pelo tenente Antônio de Siqueira Campos, um pequeno grupo de jovens militares marchou pela praia de Copacabana, de peito a descoberto, disposto a enfrentar os disparos das tropas governistas. Manchando de sangue as areias de Copacabana, os jovens foram trucidados. Apenas dois conseguiram sobreviver: Siqueira Campos e Eduardo Gomes. O episódio repercutiu por todo o Brasil, apesar do estado de sítio e da censura à imprensa, decretados pelo Congresso Nacional. E os nomes dos heróis do Forte tornaram-se símbolo do clima de revolta então existente contra os governos das oligarquias dominantes - os governos de Epitácio Pessoa e do seu sucessor Artur Bernardes. Ambos representavam, no fundamental, os interesses das oligarquias cafeicultoras de São Paulo e Minas Gerais e, dada a grave crise que abalava as estruturas do regime republicano, adotavam políticas econômicas cada vez mais excludentes em relação aos grupos oligárquicos dos demais estados da União e aos diversos setores da sociedade brasileira da época.

    Em 5 de julho de 1924, dois anos após o levante de 1922, estourava a Rebelião de São Paulo, inaugurando uma nova onda de revoltas tenentistas. Era o "segundo 5 de julho". Levantaram-se vários grupamentos policiais e unidades do Exército sediados nesse estado. O comando geral do movimento fora entregue pelos jovens rebeldes ao general reformado do Exército, Isidoro Dias Lopes, que contava com a colaboração do major Miguel Costa, comandante da Força Pública de São Paulo (a Polícia Militar do Estado).

    O objetivo do movimento era depor o presidente Artur Bernardes, cujo governo transcorria, desde o início, sob estado de sítio permanente e sob vigência da censura à imprensa. Os rebeldes pretendiam substituir Bernardes por um político capaz de "moralizar os costumes políticos". Lutava-se pelas mesmas demandas de caráter liberal já levantadas em 1922: além do voto secreto, "representação e justiça", moralização dos costumes políticos e, de uma maneira geral, o cumprimento dos preceitos liberais da Constituição de 1891.

    Durante três semanas, os rebeldes resistiram ao cerco das tropas governistas à capital de São Paulo. Ante o dilema de serem derrotados pela superioridade militar ou se retirarem para outra região, onde fosse possível rearticular o movimento, o general Isidoro optou pela segunda alternativa. Sempre perseguidos pelos adversários mais numerosos e bem-armados, eles conseguiram chegar ao oeste do estado do Paraná, onde se estabeleceram. Logo enfrentariam as tropas comandadas pelo general Cândido Mariano Rondon, que se oferecera a Artur Bernardes para combater os militares rebelados.

    A conspiração tenentista prosseguiu durante  todo o ano de 1924. Após o levante paulista, atingiu um ritmo acelerado no Rio Grande do Sul, estado em que contaria com o apoio dos maragatos (os libertadores) liderados pelo rico fazendeiro Joaquim Francisco de Assis Brasil. As condições precárias dos rebeldes paulistas, cercados no oeste do Paraná, contribuíram para aguçar o espírito de luta da jovem oficialidade comprometida com a chamada "revolução", levando-a a se mobilizar em solidariedade aos companheiros de São Paulo.

    O principal coordenador da rebelião militar no Rio Grande do Sul foi o tenente Aníbal Benévolo, da Brigada de Cavalaria de São Borja. Também foram importantes na deflagração do levante gaúcho o capitão Luiz Carlos Prestes e o tenente Mário Portela Fagundes. Ambos haviam servido no 1º Batalhão Ferroviário (1º BF) de Santo Ângelo e mantido contato estreito e permanente com a tropa.

    Na noite de 28 de outubro, levantou-se o 1º BF, sob o comando de Prestes e Portela, e, na madrugada de 29, algumas outras unidades militares nesse mesmo estado. Ao mesmo tempo, vários caudilhos ligados a Assis Brasil aderiram ao levante. As tropas dos maragatos, de lenço vermelho no pescoço, incorporaram-se às diversas unidades, constituindo um reforço para a "revolução" tenentista.

    As forças governistas foram rapidamente mobilizadas e lançadas contra os rebeldes. Devido à falta de coordenação entre as unidades rebeladas e à espontaneidade de suas ações, em poucos dias estavam desbaratadas. A "revolução" conseguiu sobreviver apenas na região de São Luís Gonzaga: primeiro pelo fato de a cidade se encontrar distante de qualquer linha férrea, o que, naquela época, dificultava o acesso das tropas governistas, retardando sua investida contra os rebeldes; segundo, por conta do papel decisivo do capitão Prestes na reorganização das tropas. Na prática, Prestes passou a comandar não só o 1º BF, que viera com ele de Santo Ângelo, como também os elementos militares e civis remanescentes dos diversos levantes ocorridos no estado.

    A atuação prévia de Prestes no 1º BF, durante  quase dois anos, levara-o a introduzir nessa unidade não só um novo tipo de instrução militar como também um novo tipo de relacionamento entre os soldados e o seu comandante. Assim, o jovem capitão, preocupado em garantir uma boa alimentação para a tropa, adotou uma série de medidas: a contratação de um padeiro e um cozinheiro; organização das atividades e do tempo dos seus subordinados para que todos pudessem estudar, ter aulas de educação física e receber instrução militar; além da execução do trabalho de construção da linha férrea que ligaria Santo Ângelo a Giruá (RS). O próprio Prestes tornou-se professor e criou três escolas: uma para alfabetização e as outras duas, ao equivalente hoje, de ensino fundamental e médio. Em três meses, não havia analfabetos na companhia. Prestes não só comandou seus soldados como, ao mesmo tempo, trabalhou junto com eles. O capitão conseguia estimular a iniciativa dos soldados, sem desprezar a disciplina, que era obtida com o exemplo do próprio comportamento. Em consequência, o prestígio de Prestes tornou-se enorme, garantindo a fidelidade do 1º BF na hora do levante.

    Em São Luís Gonzaga, Prestes enfrentou a necessidade de organizar a resistência ao ataque inimigo em preparação. Foi assim que o 1º Batalhão Ferroviário transformou-se na espinha dorsal da tropa rebelde, que ficaria conhecida como a Coluna Prestes.

    Em dezembro de 1924, 14 mil homens, sob o comando do Estado-Maior governista, marchavam sobre São Luís Gonzaga. Formavam o chamado "anel de ferro", com o qual se pretendia estrangular os rebeldes - cerca de 1,5 mil homens, armados precariamente e quase desprovidos de munição - acampados em torno da cidade. O governo adotava a "guerra de posição" - a única tática que os militares brasileiros conheciam e que, de acordo com o modelo dos combates travados durante a Primeira Guerra Mundial, consistia em ocupar posições, abrindo trincheiras e permanecendo na defensiva, à espera do inimigo. Ou, então, quando as posições inimigas estavam localizadas, definia-se o "objetivo geográfico" para onde se deveria marchar, com a meta de cercar o adversário.

    Prestes, assessorado por Portela, põe em prática a "guerra do movimento" - uma espécie de luta de guerrilhas, então uma novidade para o Exército brasileiro. O rompimento do cerco de São Luís pelos rebeldes e a marcha vitoriosa da Coluna comandada por Prestes em direção ao norte, visando socorrer os companheiros de São Paulo, cercados pelas tropas do general Rondon, constituíram a primeira grande vitória da nova tática militar imaginada por Prestes.

    Em 12 de abril de 1925, na cidade paranaense de Foz do Iguaçu, deu-se o encontro histórico das tropas gaúchas com os rebeldes paulistas. A proposta de Prestes de prosseguir na luta, dando continuidade à marcha rebelde acabou prevalecendo. O principal objetivo era manter acesa a chama da rebeldia tenentista e, com isso, atrair as forças inimigas para o interior do país - o que poderia contribuir para o êxito dos "tenentes", que conspiravam no Rio de Janeiro e em outras capitais, preparando novos levantes.

    Após a junção das colunas paulista e gaúcha, as tropas rebeldes foram reorganizadas, criando-se a 1ª Divisão Revolucionária, constituída pelas brigadas "São Paulo" e "Rio Grande", sob o comando do major Miguel Costa, o oficial de maior patente, promovido a general-de-brigada pelo general Isidoro. Ao todo, a divisão contava com menos de 1,5 mil combatentes, sendo oitocentos da coluna gaúcha e os restantes da coluna paulista. Havia cerca de cinquenta mulheres, entre gaúchas e paulistas, que, na maioria dos casos, acompanhavam seus maridos e companheiros.

    A formação da 1ª Divisão Revolucionária representou a vitória da perspectiva aberta por Prestes de os rebeldes atravessarem o rio Paraná e marcharem para Mato Grosso, dando continuidade à "revolução" tenentista. Enquanto as tropas paulistas haviam sofrido uma séria derrota em Catanduvas (PR), a Coluna Prestes vinha do sul coberta de glórias. Nessas circunstâncias, Prestes teria um papel destacado à frente da 1ª Divisão Revolucionária. O general Miguel Costa tornara-se o comandante-geral, mas, reconhecendo a competência e o prestígio de Prestes, entregou-lhe, na prática, o comando da Coluna. A Coluna Prestes, que nascera no Rio Grande do Sul, partiu do Paraná revigorada pela junção com os rebeldes que se levantaram em São Paulo, a 5 de julho de 1924.

    A Coluna, além de mal-armada, não contava com uma retaguarda que assegurasse o abastecimento da tropa. Baseado na experiência do 1º BF, Prestes transformou a tropa rebelde num exército, em que vigorava a disciplina militar, ao mesmo tempo em que a iniciativa dos soldados era estimulada. Sem uma disciplina rigorosa e um comando único e centralizado, as forças rebeldes seriam desbaratadas. Mas, sem a participação ativa de cada soldado, sem a compreensão, da parte de cada um deles de que a luta era pela libertação do Brasil do governo despótico de Artur Bernardes, seria impossível garantir a sobrevivência de uma força armada tão diferente: não havia soldo, nem pagamento de qualquer espécie ou vantagens de qualquer tipo; e exigia-se, para permanecer em suas fileiras, um grande espírito de sacrifício e disposição de luta.

    A experiência dos maragatos foi valiosa na organização das forças rebeldes. Adotou-se, por exemplo, o método gaúcho de arrebanhar animais, as "potreadas": pequenos grupos de soldados destacavam-se da tropa em busca não só de cavalos para a montaria e de gado para a alimentação, como de informações, transmitidas ao comando. Esses dados constituíram elementos valiosos para a elaboração de mapas detalhados sobre cada região atravessada pelos rebeldes, permitindo que a tática da Coluna fosse traçada com precisão e profundo conhecimento do terreno. Assim, reduziam-se os riscos de que os rebeldes acabassem pegos de surpresa pelo inimigo. Na verdade, era a Coluna Prestes que, com seus  lances inesperados, surpreendia as forças governistas. As "potreadas" consistiam num fator fundamental para desenvolver a iniciativa e o espírito de responsabilidade dos soldados. Nas palavras de Prestes, foram "os verdadeiros olhos da Coluna".

    O movimento não poderia se transformar num exército revolucionário, movido por um ideal libertário, se não incutisse em seus combatentes uma atitude de respeito e solidariedade em relação ao povo com quem mantinha contato. Qualquer arbitrariedade era punida com rigor; em alguns casos de maior gravidade, chegou-se ao fuzilamento dos culpados, principalmente quando houve desrespeito a famílias e, em particular, a mulheres. Da mesma forma, não se admitiam saques ou atentados gratuitos à propriedade.

    A Coluna Prestes durou dois anos e três meses, percorrendo cerca de 25 mil quilômetros através de treze estados do Brasil. Jamais foi derrotada, embora tenha combatido forças muitas vezes superiores em homens, armamento e apoio logístico, tendo enfrentado ao todo 53 combates. Os principais comandantes do Exército nacional não só não puderam desbaratar o movimento, como sofreram pesadas perdas e sérios reveses impostos pelos rebeldes durante sua marcha. Seu périplo pelo Brasil derrotou 18 generais.

    Ao adotar a tática da "guerra de movimento" garantiu a própria sobrevivência em condições que lhe eram  extremamente desfavoráveis. E mais, transformou-se num exército com características populares. Paralelamente, forjou um novo tipo de combatente, de soldado da liberdade, que se batia por um ideal, e também formou líderes de envergadura que vieram a influir decisivamente nos acontecimentos posteriores.

    Dado o fracasso governista no combate à Coluna Prestes, ela poderia continuar percorrendo o país, tirando proveito de sua mobilidade extrema, a grande arma que a tática da "guerra de movimento" lhe conferia. Mas Prestes compreendeu que havia chegado a hora de mudar de tática. Uma nova visão do Brasil - que ele adquirira durante a marcha, ao se deparar com a miséria em que vegetava a maior parte da população do país - contribuiu para essa conclusão. Dessa forma, o comando da Coluna tomou a decisão de partir para o exílio, ingressando na Bolívia em 3 de fevereiro de 1927. Como assinalou o cronista da marcha, Lourenço Moreira Lima, "não vencemos, mas não fomos vencidos".

    Apesar das dificuldades, os rebeldes chegaram à Bolívia com o moral elevado, cônscios de que haviam cumprido o seu dever, sem nada receber em troca. Seus comandantes e soldados partiram para o exílio num estado de absoluta pobreza, enquanto os generais governistas tinham enchido os bolsos à custas do erário público, que lhes oferecera verbas generosas para liquidar os revoltosos. A Coluna, praticamente desarmada, com apenas 620 homens, havia vencido todos os embates com as forças governistas.

    Os soldados rebeldes foram os desbravadores do caminho que minou os alicerces da Primeira República. A sobrevivência da Coluna Prestes constituiu um fator decisivo para que, em diversos pontos do país, eclodissem levantes tenentistas. Embora essas revoltas militares - que sempre contaram com a colaboração de civis - tivessem sido esmagadas, a Coluna contribuiu para que, durante vários anos, fosse mantido um clima "revolucionário" no país, favorável à germinação das condições que levaram ao colapso da República Velha e à vitória da chamada Revolução de 30, propiciando o início de uma nova etapa no desenvolvimento capitalista no Brasil.

    A Marcha da Coluna e o impacto causado em Prestes pela situação deplorável em que viviam as populações do interior do Brasil levaram o Cavaleiro da Esperança a se transformar, anos mais tarde, na principal liderança do movimento comunista no país. A Coluna Prestes gerara o mais destacado líder da revolução social no Brasil.


Texto de Anita Leocádia Prestes. Professora adjunta de História do Brasil no Departamento de História da UFRJ. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

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