terça-feira, 19 de julho de 2022

Um Santo Espetáculo

Música, luzes e muito ouro vertiam as missas do Brasil colonial em verdadeiro show de luxo e beleza feito para afirmar os valores da Igreja e da Coroa portuguesa.


    Manhã do dia 7 de maio de 1762. Em janeiro desse mesmo ano, os cariocas haviam recebido a notícia do nascimento do príncipe de Beira, neto do rei de Portugal, d. José I (1750-1777). Finalmente, após cerca de quatro meses consumidos em preparativos, chegara o momento de comemorar a feliz notícia por meio de uma sequência de cerimônias religiosas destinadas a ocupar durante três dias as atenções da sociedade local. O cenário escolhido para abrigar os festejos, entre os quais sobressaíam as missas de caráter solene, foi a Igreja de Nossa Senhora de Monserrate, pertencente ao Mosteiro de São bento e erguida no século XVII no alto do morro de mesmo nome, próximo ao centro da cidade.

    Quem, naquele dia, subindo a ladeira, se misturasse à multidão espalhada pela igreja dos religiosos de São Bento assistiria à realização de um espetáculo minuciosamente planejado para atingir o coração dos presentes por meio da atração que deveria exercer sobre olhos e ouvidos. Exemplo notável da beleza e da opulência características das principais sedes de culto da cidade, a igreja contava em seu interior com paredes e teto revestidos de madeira finamente trabalhada, exibindo as mais variadas e surpreendentes formas, tudo coberto de folhas de ouro e abrindo espaço, de quando em quando, para as esculturas em pedra, os painéis pintados e as ricas imagens sacras aninhadas nos seus altares. Recobrindo inteiramente a nave - espaço das igrejas aberto à livre  circulação dos fiéis -, a profusão de elementos decorativos tornava-se ainda mais deslumbrante quanto mais próximo se estivesse da capela-mor, situada na parte mais funda do templo, para onde, durante a celebração, deveriam convergir todos os olhares.

    No entanto, por mais brilhante e faustoso que fosse o revestimento interno da Igreja de Nossa Senhora de Monserrate, sua mera descrição não seria suficiente para dar conta do impacto visual experimentado pelos fiéis nos dias de festa como aquele em que a população do Rio de Janeiro era convidada a partilhar a alegria de Sua Majestade pelo nascimento de seu mais novo herdeiro. Isso porque, em tais circunstâncias, os edifícios religiosos vestiam trajes de gala, recebendo uma série de ornamentos adicionais destinados a realçar os seus encantos de todo dia. A prática envolvia a chamada "armação" e uma intensa iluminação artificial, ingredientes infalíveis nas celebrações festivas, não apenas nas que faziam a crônica dos eventos ligados à família real, mas também nas ocorridas nos principais "dias santos de guarda", como o Domingo da Páscoa, o Natal e os aniversários dos santos mais importantes.

    A "armação" das igrejas consistia em uma preparação durante a qual o dourado das paredes era parcialmente coberto por tapetes de bom tecido, sobre os quais os armadores empregavam sua arte dando forma a desenhos decorativos feitos com fios de ouro e prata entrelaçados. No caso da igreja do Mosteiro de São Bento, optou-se pelo veludo carmesim orlado com tiras e franjas de ouro. Por sua vez, a luz artificial fazia-se presente nos lustres e candelabros colocados em pontos estratégicos, e ainda nos muitos castiçais comportando imensa quantidade de círios acesos. Somente no altar maior da igreja, dedicado à Senhora de Monserrate, foram concentrados, no dia da festa, 120 castiçais de prata bem lavrada e polida, proporcionando aos presentes a visão impressionante de uma pirâmide ardente a emoldurar a imagem da Santa Virgem.

    Uma vez iniciada a cerimônia, o efeito causado nos espectadores pela decoração do templo deveria ainda receber o luxuoso auxílio dos acordes que brotavam das vozes dos cantores e dos instrumentos tocados por músicos contratados especialmente para a ocasião. Nada mais natural, pois, do Rio de Janeiro de séculos atrás, pode-se dizer que não havia, praticamente, igreja desse nome que não incluísse em seu desenho arquitetônico o chamado "coro", instalado em posição elevada, acima da porta de entrada e no lado oposto ao da capela e altar maiores. Nesse local, equipado geralmente com um órgão bem vistoso, costumavam congregar-se, durante as funções solenes, o coral dos cantores e a orquestra dos músicos. A parte da música estava geralmente a cargo de membros da associação religiosa conhecida como Irmandade de Santa Cecília, que reunia os profissionais dessa arte no Brasil Colônia.

    Durante a missa solene que marcou o ponto alto das comemorações, a audiência presente à igreja do beneditinos teve a oportunidade de se deliciar com os cânticos entoados pelos monges investidos da obrigação de comparecer ao coro. O brilho extra proporcionado pelas vozes desses monges cantores colocava a Igreja de Nossa Senhora de Monserrate acima da maior parte dos templos católicos da cidade, os quais podiam contar, quando muito, com uma scola cantorum, o coral sacro, formada por simples leigos, em sua maioria.

    O público era assim submetido a uma ampla gama de estímulos visuais e sonoros e tornava-se testemunha de um espetáculo tão impressionante quanto misterioso, isto é, de difícil compreensão em seus significados mais profundos. De fato, a admiração despertada pela variedade das cores e luzes e pelo brilho do ouro e da prata serviam para tornar as cerimônias da missa mais grandiosas, mas nem por isso mais inteligíveis. Da mesma forma, a arte refinada dos coros polifônicos e da orquestra que embalava as celebrações solenes podia fascinar e até mesmo comover, mas não instruir os fiéis sobre o conteúdo da mensagem litúrgica.

    A razão fundamental desse estado de coisas reside no fato de que, no Rio de Janeiro do passado, como em todo o mundo católico, era o latim o idioma no qual se recitavam ou cantavam as orações e os extratos da Bíblia ouvidos durante a missa. Analfabeta em sua grande maioria e carente, quase sempre, de uma formação teológica mais sólida e de uma maior familiaridade com as sagradas escrituras, a massa dos leigos que comparecia às igrejas cariocas via desfilar diante de seus olhos uma série de ritos proferidos em uma língua estranha, cujo delicado encadeamento perdia-se para ela em sua maior parte. Pouco parecia sobrar, à primeira vista, além da emoção e do prazer estético, os quais logo se dissipariam, acabada a celebração.

    Entretanto, para as autoridades da Igreja responsáveis pela organização das principais missas solenes, permaneceu sempre importante e significativa a ligação entre a beleza e o luxo característicos dessas últimas e os sentimentos religiosos dos católicos que as assistiam. A base dessa ligação, segundo se acreditava à época, era o reconhecimento comum da música e dos elementos da decoração das igrejas como símbolos capazes de transmitir aos mais ignorantes dos fiéis uma amostra da infinita glória de Deus, inspirando-os a respeitar Seus mandamentos e, de quebra, a obedecer mais prontamente às leis de "Sua Majestade Fidelíssima", como eram chamados os reis de Portugal. De pouca serventia para elucidar os mistérios da liturgia, a pompa religiosa, ao converter as igrejas em obras de arte e as celebrações em espetáculos, penetrava nos espíritos por caminhos relacionados muito mais aos sentidos do que à razão. Exatamente por isso, sua mensagem podia ser compartilhada por todos os presentes sem distinção, bastando que tivessem olhos para ver, ouvidos para ouvir e alma para se emocionar.

    A fim de saber mais sobre as lições ensinadas pelo espetáculo das missas festivas, é preciso misturar-se novamente à multidão reunida no interior da Igreja de Nossa Senhora de Monserrate. Longe de se espalhar ao acaso pelo espaço sagrado, essa multidão, no dia da festa, representava, aos olhos de cada um dos seus próprios integrantes, as principais diferenças sociais observadas no Brasil do passado. 

    Para começar, as diferenças entre os sexos, relacionadas aos cuidados habitualmente inspirados pela coabitação de homens e mulheres no recinto dos templos. Segundo parece, a estratégia adotada pelas autoridades para evitar os riscos suscitados por tal coabitação foi sempre a de separar, com o máximo de rigor possível, os fiéis católicos de suas irmãs de fé. Eis porque, nas celebrações solenes como a realizada na igreja dos beneditinos, as mulheres de posição, acompanhadas de suas escravas domésticas, tinham seu lugar reservado na parte mais central da nave, onde, separadas às vezes por grades de madeira, assistiam às cerimônias ajoelhadas ou sentadas sobre esteiras ou tapetes. Já os homens permaneciam de pé, em plano superior, distribuindo-se pelos espaços laterais estendidos dos dois lados da nave.

    Embora reveladora sobre os valores dominantes à época, essa repartição dos lugares com base em critérios de natureza sexual tinha importância secundária nas grandes missas comemorativas, cujo tom próprio era dado, muito mais, pela correspondência entre as posições de destaque ocupadas no interior da Casa de Deus e no âmbito da sociedade como um todo. O hábito de se confinar os escravos em geral, exceção feita às acompanhantes das senhoras brancas, às áreas menos valorizadas dos templos, sempre nas imediações da porta de entrada ou dali para fora, na direção do pátio externou ou adro, é a prova mais evidente dessa correspondência.

    Enquanto os cativos eram condenados, por sua condição inferior, a assistir de longe às cerimônias do culto, os membros da elite tratavam de preencher os lugares mais nobres a eles reservados no recinto dos templos. A cada nova solenidade, portanto, dava-se início a uma disputa silenciosa na qual cada um dos mesmos lugares desempenhava o papel de símbolo de distinção e de superioridade, capaz de patentear, aos olhos do público, a posição que cabia a cada um na hierarquia da sociedade. De acordo com a lógica dessa disputa, recebiam a cotação mais alta as áreas situadas nas proximidades mais imediatas da capela-mor, na extremidade oposta à da porta de entrada, áreas nas quais a particular intimidade com o plano divino, representado pelo altar maior ao fundo, dava a medida exata do prestígio que fazia recair sobre os seus ocupantes. Lá costumava instalar-se, entre outras personagens, os principais representantes dos poderes eclesiástico e civil, juntamente com os mais seletos integrantes da aristocracia local.

    Além de se distribuírem pelos lugares de maior relevo no rés do chão, os católicos de condição elevada podiam ainda ser vistos a ocupar, nas igrejas, certos espaços privilegiados cuja localização, a alguns metros de altura, constitui o melhor indicador da proeminência social requerida aos que a eles tinham acesso. Dispostas, geralmente em número de duas ou três, de cada um dos lados da nave e da capela-mor, as tribunas edificadas na maioria dos grandes templos cariocas representavam a continuidade, no contexto da Colônia, de uma tradição arquitetônica iniciada na Idade Média europeia, inspirada pelo desejo dos reis e senhores de se destacarem da massa dos demais fiéis. A Igreja de Nossa Senhora de Monserrate, por exemplo, tinha em seu interior algumas dessas tribunas, onde, quem sabe, à semelhança do que ocorria em outros edifícios religiosos, as damas da alta sociedade dominavam a cena durante as missas solenes com seus vestidos custosos e brilhantes.

    Depois de 1808, ano da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro, as celebrações festivas atingem o seu auge no Brasil colonial. A partir desse ano, torna-se cada vez mais frequente para os católicos cariocas a visão de d. João, príncipe regente até 1815 e depois disso rei, aboletado com membros de sua família na real tribuna encravada em uma das paredes da catedral da rua Direita (atual Primeiro de Março), ricamente enfeitada em dias de comemoração solene, ou então acomodado em um imponente trono para ele erigido e preparado. Qualquer que fosse o assento escolhido, note-se que algumas características constantes servem para realçar, perante os demais assistentes, a máxima distinção social de seu ocupante: a situação em plano elevado, adequada para quem habita o próprio cume da pirâmide da sociedade e do poder; a localização no interior da capela-mor, espaço normalmente exclusivo dos eclesiásticos onde se desenrolavam os rituais e preces da liturgia, de modo a tornar palpável a sobreposição entre a majestade terrena, a hierarquia da Igreja e a própria onipotência divina.

    Diante da imagem de d. João instalada nas vizinhanças do altar maior, os fiéis em conjunto aprendiam que ser católico, naquela época, era condição inseparável da de vassalo de "Sua Majestade Fidelíssima". Além de estimulados a todo instante a reconhecer o poder dessa última no aparato ostentado pelo espetáculo das missas, cabia ainda aos ditos fiéis dirigir, em um único movimento, seus afetos de admiração e louvor às imagens sacras no referido altar e ao soberano, feito presente tanto através de sua mesma pessoa quanto de seus trajes e insígnias próprios. Primeiro assistente à celebração, esse soberano tornava especialmente poderosa, com sua presença, a assimilação desejada entre o grêmio comum da Igreja, reunido sob a direção do celebrante, e a ordem social e política encabeçada pelo detentor da real Coroa. Ocupando cada qual o lugar que lhes era devido tanto na mencionada ordem quanto na Casa de deus, os habitantes do Rio de Janeiro transformavam-se em participantes e espectadores de uma ação pedagógica baseada antes no rito e no símbolo do que em proposições racionais,  a única capaz de fixar na imaginação de todos o modelo ideal da sociedade de católicos e súditos que se pretendia consolidar nessa porção do Novo Mundo.


Texto de Sérgio Chahon. Professor das Faculdades Integradas Simonsen (FIS). Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

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