sexta-feira, 31 de julho de 2020

À Sombra de um Jatobá

Raios de sol na varanda
Verde cobrindo o jardim
Poder sentir a vida, espreguiçar
Com cheiro de madrugada
Dama da noite e jasmim
Olhar no céu, estrela pra contar

Ter meus amigos comigo
Quem amo, me amando sim
Longe do amor de quem nos finge amar
Ver na manhã de um domingo
Meu filho sorrir pra mim
Depois dormir à sombra de um jatobá
Poucas coisas valem a pena
O importante é ter prazer
Longe de mim a inveja e a maldade
Escondidas na vida
Hoje estamos nós em cena
E não há tempo a perder
Pois tudo acaba mesmo sempre em despedida

Música de Toquinho que dá título ao seu disco (À Sombra de um Jatobá) lançado em 1989.

Jeito Simples de Ser

Pegue um coração
Cheio de alegria
E toda magia de uma tarde em Itapuã
Ponha compreensão
No seu dia-a-dia
E o ruim de hoje deixe pra fazer amanhã
Ganhe pra viver,
Viva com carinho
E de preferência sem ter contas pra pagar
Olhe pra você
Não pro teu vizinho
Que o tempo que passa não vai nunca te esperar
Tá bom, tá bom,
Da morte ninguém pode falar
Pois nunca voltaram pra dizer
E só o que a gente plantar
É o que um dia
A gente mesmo vai colher
Amor e paixão entram nesse jogo
Paixão é fogo muito fácil de apagar
O verdadeiro amor cresce diferente
Cotidianamente a gente tem que cultivar
Nessa confusão a melhor saída
É viver a vida sendo dela um aprendiz
Mas com atenção, tudo vale nada
Se ao fim dessa estrada não se chega a ser feliz
Tá bom, tá bom,
Da morte ninguém pode falar
Pois nunca voltaram pra dizer
E só o que a gente plantar
É o que um dia
A gente mesmo vai colher

música de Toquinho, gravada no CD de Paulah Gauss, intitulado Vou Livre, lançado em 2007, com a participação dele!

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O Começo das Coisas 3

O CAOS, GÉIA E EROS

A terceira história do princípio das coisas vem do Hesíodo, lavrador e poeta ao mesmo tempo e que, na mocidade, pastoreava carneiros na montanha divina do Hélicon. Eros e as Musas tinham santuários. Os discípulos do cantor Orfeu prestavam uma reverência especial a essas divindades e talvez tivessem trazido o seu culto de regiões mais setentrionais. A história de Hesíodo soa como se ele tivesse omitido simplesmente o ovo da história da Noite, o Ovo e Eros, e  tivesse procurado, como o faria um lavrador, atribuir a posição de deusa mais velha a Géia, a Terra. Pois o Caos, citado em primeiro lugar, não era para ele uma divindade, mas tão-somente um "bocejo" vazio - o que sobra do ovo vazio depois da retirada da casca.

Como o relata Hesíodo: primeiro surgiu o Caos. Surgiram depois Géia, a dos vastos seios, firme e eterna morada de todas as divindades, tanto as que moram no alto, no monte Olimpo, quanto as que moram dentro dela, na terra; e surgiu, da mesma forma, Eros, o mais belo dos deuses imortais, que liberta os membros e governa o espírito de todos os deuses e homens. Do Caos descendem Érebo, a escuridão sem luz das profundezas; e Nyz, a Noite. Nyz, apaixonada por Étebo, deu à luz Éter, a luz do céu, e Hêmera, o dia. Géia, por seu turno, deu à luz, primeiro de todos e seu igual, o Céu estrelado, Urano, de modo que ele pudesse cobri-la completamente e ser uma firme e eterna morada dos deuses bem-aventurados. Ela deu à luz as grandes Montanhas, cujos vales são residências favoritas de deusas - as Ninfas. E deu à luz o desolado Mar espumante, o Ponto. E deu-nos todos à luz sem Eros, sem casar.

De Urano ela deu à luz, além dos Titãs e das Titânidas (entre as quais Hesíodo inclui Oceano e Tétis), também três Ciclopes: Estéropes, Bronteu e Argeu. Estes têm um olho redondo no meio da testa e nomes que significam raios e trovões. De Urano ela também deu à luz três Hecatônquiros - gigantes, cada um dos quais tinha uma centena de braços e cinquenta cabeças: Coto, "o que bate"; Briareu, "o forte"; e Gias, "o lembrado". Mas toda a história do casamento de Urano e Géia - embora deva ter sido originalmente uma das histórias relativas ao princípio das coisas - já nos leva à dos Titãs. É a primeira desse tipo especial em nossa mitologia. Passarei a relatar as outras na devida ordem.

Trecho 3, Capítulo 1 do livro Os Deuses Gregos, de Karl Kerényi, série Mitologia Grega, Editora Cultrix, tradução de Otávio Mendes Cajado, 1998.

O Começo das Coisas 2

A NOITE, O OVO E EROS

Outra história do começo das coisas foi transmitida nos escritos sagrados preservados pelos discípulos e devotos do cantor Orfeu. Posteriormente, porém, só foi possível encontrá-la nas obras de um autor de comédias e em algumas referências feitas a elas por filósofos. De início, era mais comumente contada entre caçadores e habitantes de florestas do que entre os povos da costa marinha. No princípio era a Noite - assim reza a história - ou, em nossa língua, Nyx. Homero também a considerava uma das grandes deusas, uma deusa que inspirava ao próprio Zeus um temor sagrado e respeitoso. De acordo com a História, ela era um pássaro de asas negras. A antiga Noite concebeu do Vento e botou o seu Ovo de prata no colo gigantesco da Escuridão. Do Ovo saltou impetuoso o filho do Vento, um deus de asas de ouro. Chama-se Eros, o deus do Amor; mas este é apenas um nome, o mais lindo de todos os nomes usados pelo deus.

Os outros nomes do deus, pelo menos os que ainda conhecemos, em que pese ao seu som muito escolástico, referem-se apenas a determinados pormenores da velha história. Seu nome Protógono só quer dizer que ele foi o "primogênito" de todos os deuses. Seu nome Fanes explica exatamente o que fez ao sair do Ovo: revelou e trouxe à luz tudo o que antigamente jazera escondido no Ovo de prata - em outras palavras, o mundo inteiro. Acima dele estava um vazio, o Céu. Abaixo dele, o Repouso. A nossa língua antiga tem uma palavra para o vazio, "Caos", que significa simplesmente que ele "boceja". No início não havia palavra que significasse tumulto ou confusão: "Caos" só adquiriu, mais tarde, o segundo significado após a introdução da doutrina dos Quatro Elementos. Assim sendo, o Repouso, bem abaixo do Ovo, não estava agitado. De acordo com outra forma de história, a terra jazia abaixo do Ovo, e o céu e a terra se casaram. Essa foi a obra do deus Eros, que os trouxe para a luz e depois os obrigou a se misturarem. Eles produziram um irmão e uma irmã, Oceano e Tétis.

A velha história, tal como é contada em nossas terras litorâneas, provavelmente continuava relatando que, a princípio, Oceano estava embaixo no Ovo, e não estava só, senão acompanhado de Tétis, e que esses dois foram os primeiros a agir sob a compulsão de Eros. Como está dito num poema de Orfeu: "Oceano, o que flui lindamente, foi o primeiro a se casar: tomou por esposa Tétis, sua irmã por parte de Mãe." A Mãe dos dois era a mesma que botara o Ovo de prata: a Noite.

Trecho 2, Capítulo 1 do livro Os Deuses Gregos, de Karl Kerényi, série Mitologia Grega, Editora Cultrix, tradução de Otávio Mendes Cajado, 1998.

O Começo das Coisas 1

OCEANO E TÉTIS

Nossa mitologia contém muitas histórias acerca do princípio das coisas. A mais velha talvez fosse aquela a que se refere o nosso poeta mais antigo, Homero, quando chama Oceano de a "origem dos deuses" e a "origem de tudo". Oceano era um deus-rio; um rio ou curso de água e um deus na mesma pessoa, como os demais deuses-rios. Possuía poderes inexauríveis de gerar, exatamente como os nossos rios, em cujas águas as raparigas da Grécia costumavam banhar-se antes do casamento e que se supunha fossem, portanto, os primeiros antepassados de antigas raças. Oceano, porém, não era um deus-rio comum, pois o seu rio não era um rio comum. Desde o momento em que tudo se originou dele, continuou a fluir até a orla mais extrema da terra, fluindo de volta sobre si mesmo num círculo. Os rios, as nascentes e as fontes - na verdade, todo o mar - saem continuamente da sua corrente ampla e poderosa. Quando o mundo veio a ficar sob a autoridade de Zeus, só a ele se permitiu permanecer no lugar anterior - o qual, na verdade, não é um lugar, senão apenas um fluxo, um limite e uma barreiro entre o mundo e o Além.

Entretanto, não é rigorosamente correto dizer que "só a ele se permitiu". Associada a Oceano estava a deusa Tétis, acertadamente invocada como Mãe. Como poderia ter sido Oceano a "origem de tudo", se existia em sua pessoa tão-somente uma corrente masculina original, desacompanhada de uma deusa original da água capaz de conceber? Compreendemos também por que se diz em Homero que o casal original durante muito tempo se absteve de procriar. Comenta-se que eles brigaram; explicação que bem poderíamos esperar encontrar em histórias antigas dessa natureza. O fato é que, se a procriação original não tivesse cessado, o nosso mundo não teria estabilidade, não teria uma fronteira arredondada, não teria um curso circular que voltasse sobre si mesmo. O gerar o e criar teriam continuado até o infinito. Destarte, Oceano ficou apenas com o fluxo circular e a tarefa de abastecer as nascentes, os rios e o mar - subordinado ao poder de Zeus.

A respeito de Tétis pouca coisa nos diz a nossa mitologia, a não ser que era mãe das filhas e filhos de Oceano. Os últimos são os rios, em número de três mil. As filhas, as Oceânidas, são igualmente numerosas. Mais tarde mencionarei as mais velhas. Entre as netas havia uma cujo nome, Tétis (Thetis), soa como Tétis (Tethys), nome da companheira de Oceano. Em nossa língua fazemos uma clara distinção entre os dois nomes; mas pode ser que, para as pessoas que viviam na Grécia antes de nós, eles estivessem muito próximos um do outro no som e no sentido e significassem uma e a mesma Senhora do Mar. Logo mais tornarei a falar de Tétis (Thetis). A prevalência dessa história e a predominância dessas divindades por todo o nosso mar provavelmente remontam a um tempo em que povos de raça grega ainda não habitavam essas regiões

Capítulo 1, trecho 1, do livro Os Deuses Gregos, de Karl Kerényi, série Mitologia Grega, Editora Cultrix, tradução de Otávio Mendes Cajado, 1998.

No Navio Negreiro

Fechou os olhos tentando dormir. Não conseguia. O balanço do navio negreiro a enjoava, o corpo doía, o corte no pé latejava. Adetutu não tinha forças para nada, a não ser chorar. Onde estariam seus pequenos Taió e Caiandê? Talvez nunca mais os visse, nunca mais os abraçasse nem lhes desse o leite que agora escorria dos seios inchados e doloridos.

Adetutu sentiu nos lábios ressequidos o sal de suas lágrimas; soluçava. No escuro do porão apertado e fétido do navio negreiro, que se arrastava pelo oceano na noite sem estrelas, a mulher deitada ao lado fez um esforço para vencer o peso das correntes que as uniam e apertou o braço de Adetutu num gesto de conforto. E de dor compartilhada pelo destino comum dos que haviam sido caçados para ser escravos em terras estrangeiras.

Adormeceu e sonhou com seu mundo e  sua gente, dos quais fora arrancada para sempre. Sonhou com os dias em que, no templo, cuidava de seu deus Xangô, de quem era filha e sacerdotisa devotada. O pensamento aflito de que Xangô talvez a tivesse abandonado se desvaneceu no sonho. Teve a impressão de ouvir, através das paredes do navio, palavras de encorajamento vindas de Xangô no soar de um trovão.

O movimento das ondas, agora suave, embalava seus sentimentos, numa calmaria que lhe renovava as esperanças. Procurava recuperar em suas lembranças as coisas boas que ninguém nunca poderia lhe tirar. Seus deuses, que sua gente chamava de orixás, eram grandes e poderosos. Também haviam sofrido e se desesperado, mas nunca desistiram de ser felizes, realizados, eternos.

Adetutu também não desistiria, prometeu a si mesma. Afinal, não tinham lhe tirado tudo; ela tinha suas memórias, sabia quem era, de onde vinha. Tinha orgulho de sua origem nobre, de seus deuses, de seus ancestrais, que venerava com desvelo sincero. Seu nome, Adetutu, significava A-Coroa-É-Paciente, ou A-Princesa-Sabe-Esperar. Ela resistiria.

No sonho embalado pelo sobe-e-desce das ondas, Adetutu se agarrou aos orixás, que reacendiam suas esperanças. Juntou-se a eles no sonho, que não era mais um simples sonho, e reviveu com fé as aventuras dos deuses na criação do mundo, o mundo de Adetutu e dos outros africanos que, como ela, vinham sendo transportados para o Brasil naquele e em incontáveis outros navios negreiros, o mundo de todos nós.

A caminho do cativeiro, Adetutu sonhou com a criação do mundo.

Texto escrito por Reginaldo Prandi, ilustrado por Joana Lira, retirado do livro A Criação do Mundo (Contos e Lendas Afro-brasileiros). Cia. das Letras, 2009.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Como La Cigarra

Tantas veces me mataron, tantas veces me morí,
Sin embargo estoy aqui resucitando
Gracias doy a la desgracia y a la mano con puñal
Porque me mató tan mal y seguí cantando

Cantando al sol como la cigarra
Después de un año bajo la tierra
Igual que sobreviviente
Que vuelve de la guerra

Cantando al sol como la cigarra
Después de un año bajo la tierra
Igual que sobreviviente
Que vuelve de la guerra

Tantas veces me borraron, tantas desaparecí
A mi propio entierro fui sola y llorando
Hice un nudo en el pañuelo pero me olvidé después
Que no era la única vez y seguí cantando

Cantando al sol como la cigarra
Después de un año bajo la tierra
Igual que sobreviviente
Que vuelve de la guerra

Cantando al sol como la cigarra
Después de un ano bajo la tierra
Igual que sobreviviente
Que vulvve de la guerra

Tantas veces te mataron, tantas resucitarás
Tantas noches pasarás desesperando
A la hora del naufragio y la de la oscuridad
Alguien te rescatará para ir cantando

Cantando al sol como la cigarra
Después de un año bajo la tierra
Igual que sobreviviente
Que vuelve de la guerra

Cantando al sol como la cigarra
Después de un ano bajo la tierra
Igual que sobreviviente
Que vulvve de la guerra

Música de Maria Elena Walsh, gravada por Diana Pequeno em seu CD Alma Moura, de 2014. Zezé Motta gravou a mesma canção, anos antes, em 1995, em seu CD Chave dos Segredos.

Pajarillo Verde II

Pajarillo verde, como no quieres que llore
Pajarillo verde, como no voy a llorar
Ay, ay, ay, ay si una sola vida tengo
Pajarillo verde y me la quieren quitar

Pajarillo verde, como no quieres que llore
Pajarillo verde, como no voy a llora
Ay, ay, ay, ay si los grillos que me quitan
Pajarillo verde me los vuelven a pegar

Pajarillo verde y el indio por mas que sepa
Pajarillo verde, siempre dice la canía
Ay, ay, ay, ay pasa me la cucharia
Pajarillo verde que esta sobre las horquetas

Pajarillo verde y ayer fuiste a cortar leña
Pajarillo verde, pasaste por mi conuco
Ay, ay, ay, ay y todo el mundo lo supo
Pajarillo verde por tu mala compañera

Pajarillo verde, que te puede dar un indio
Pajarillo verde, por mucho que tu lo quieras
Ay, ay, ay, ay una ensarta de cangrejos
Pajarillo verde y eso será cuando llueva

Tradição Oral Venezuelana - Domínio Público. Canção gravada por Renata Finotti em seu CD Tesouros, de 2018.

Pajarillo Verde I

Pajarillo verde, como no quieres que llore,
Pajarillo verde, como no voy a llorar,
Pajarillo verde, como no quieres que llore,
Pajarillo verde, como no voy a llorar,


Ay, ay, ay, ay si una sola vida tengo
Pajarillo verde y me la quieren quitar
Ay, ay, ay, ay si una sola vida tengo
Pajarillo verde y me la quieren quitar


Pajarillo verde, como no quieres que llore
Pajarillo verde, como no voy a llorar
Pajarillo verde, como no quieres que llore
Pajarillo verde, como no voy a llorar


Ay, ay, ay, ay si los grillos que me quitan
Pajarillo verde me los vuelven a pegar
Ay, ay, ay, ay si los grillos que me quitan
Pajarillo verde me los vuelven a pegar


Pajarillo verde y ayer fuiste a cortar leña,
Pajarillo verde, pasaste por mi conuco
Pajarillo verde y ayer fuiste a cortar leña,
Pajarillo verde, pasaste por mi conuco.


Ay, ay, ay, ay y todo el mundo supo,
Pajarillo verde, por tu mala compañera,
Ay, ay, ay, ay y todo el mundo supo,
Pajarillo verde, por tu mala compañera,


Pajarillo verde, qué te puede dar un indio,
Pajarillo verde, por mucho que tu lo quieras
Pajarillo verde, qué te puede dar un indio,
Pajarillo verde, por mucho que tu lo quieras


Ay, ay, ay, ay una ensarta de cangrejos, 
Pajarillo verde y eso será cuando llueva
Ay, ay, ay, ay una ensarta de cangrejos, 
Pajarillo verde y eso será cuando llueva

Canção Tradicional Venezuelana gravada por Diana Pequeno em seu CD Alma Moura de 2014.

El Colibri

Creció una flor a orillas de una fuente,
Mas pura que la flor de la ilusión;
Y el huracán tronchola de repente,
Cayendo al agua la preciosa flor

Un colibri que en su enramaje estaba,
Corrió a salvarla solicito y veloz,
Y cada vez que con el pico la tocaba
Sumergiase en el agua con la flor.

El colibri la perseguio constante
Sin dejar de buscarla en su aflicción
Y cayendo desmayado en la corriente
Corrio la misma surte que la flor

Asi hay en este mundo seres
Que la vida cuesta un tesoro;
Yo soy el colibri si tu me quieres
Mi pasión es el torrente y tu la flor,
Yo soy el colibri si tu me quieres
Mi pasión es el torrente y tu la flor

Canção Tradicional Cubana do Século XIX gravada por Diana Pequeno em seu CD Alma Moura, de 2014.

A Criação

Primeiro, havia o Caos, que era o Nada do Mundo, e isto era tudo quanto nele havia. Nem Céu, nem Mar, nem Terra - nada disso havia. Apenas três reinos coexistiam: o Ginnungagap (o Grande Vazio), abismo primitivo e vazio, situado entre Musspell (o Reino do Fogo) e Niflheim (a Terra da Neblina), terra da escuridão e das névoas geladas. Durante muitas eras, assim foi, até que as névoas começaram a subir lentamente das profundezas do Niflheim e formaram no medonho abismo de Ginnungagap um gigantesco bloco de gelo.

Das alturas abominavelmente tórridas do Musspell, desceu um ar quente e este encontro do calor que descia com o frio que subia de Niflhem começou a provocar o derretimento do imenso bloco de gelo. Após mais alguns milhares de eras - pois que o tempo, então, não se media pelos brevíssimos anos de nossos afobados calendários - 0 gelo foi derretendo e pingando e deixando entrever, sob a outrora gelada e espessa capa branca, a forma de um gigante.

Ymir era o seu nome - e por ser uma criatura primitiva, dotada apenas de instintos, o maniqueísmo batizou-a logo de . Ymir dormiu durante todas estas eras, enquanto o gelo que o recobria ia derretendo mansamente, gota a gota, até que, sob o efeito do calor escaldante de Musspell, que não cessava jamais de descer das alturas, eis que ele começou a suar. O suor que lhe escorria copiosamente do corpo uniu-se, assim, à água do gelo, que brotava de seus poderosos membros - e este suor vivificante deu origem aos primeiros seres vivos. Debaixo de seu braço surgiu um casal de gigantes e da união de suas pernas veio ao mundo outro ser da mesma espécie, chamado Thrudgelmir. Estes três gigantes foram as primeiras criaturas, que surgiram de Ymir; mais tarde, Thrudgelmir geraria Bergelmir, que daria origem a toda a descendência dos gigantes.

Entretanto, do gelo derretido também surgira, além das monstruosidades já citadas, uma prosaica vaca de nome Audhumla, de cujas tetas prodigiosas manavam quatro rios, que alimentavam o gigante Ymir. Audhumla nutria-se do gelo salgado, que lambia continuamente da superfície, e, deste gelo surgiu ao primeiro dia o cabelo de um ser; no segundo, a sua cabeça; e,finalmente, no terceiro, o corpo inteiro. Esta criatura egressa do gelo chamou-se Buri e foi a progenitora dos deuses. Seu primeiro filho chamou-se Bor, e, desde que pai e filho se conheceram, começaram a combater os gigantes, que nutriam por eles um ódio e um ciúme incontroláveis.

Esta foi a primeira guerra de que o universo teve notícia e incontáveis eras sucederam-se sem que ninguém adquirisse a supremacia. Finalmente, Bor casou-se com a giganta Bestla e, desta união, surgiram três notáveis deuses: Wotan (também chamado Odin), Vili e Ve. Dos três, o mais importante é Wotan, que um dia chegará a ser o maior de todos os deuses. E, porque assim será, um dia, ele próprio disse a seus irmãos:

- Unamo-nos a Bor e destruamos Ymir, o perverso pai dos gigantes!

Os quatro juntos derrotaram, então, o poderoso gigante, e com sua morte, acabou também a quase totalidade dos demais de sua espécie, afogada no sangue de Ymir. Um casal, entretanto, escapou do massacre: Bergelmir e sua companheira, que construíram um barco feito de um tronco escavado e foram se refugiar em Jotunheim, a terra dos Gigantes, onde geraram muitos outros. Desde então, a inimizade estabeleceu-se, definitivamente, entre deuses e gigantes, cada qual vivendo livremente em seu território, mas sempre alerta contra o inimigo.

Dos restos do cadáver do gigantesco Ymir, Wotan e seus irmãos moldaram a Midgard (Terra-Média): de sua carne, foi feita a terra; enquanto que, de seus ossos e seus dentes, fizeram-se as pedras e as montanhas. O sangue abundante de Ymir correu por toda a terra e deu origem ao grande rio que cerca o universo.

- Ponhamos, agora, a caveira de Ymir no céu - disse Wotan a seus irmãos, após haverem completado a primeira tarefa.

Wotan fez com que quatro anões mantivessem a caveira suspensa nos céus, cada qual colocado num dos pontos cardeais. Em seguida, das faíscas do fogo de Musspell, brotaram o sol, a lua e as estrelas; enquanto que, do cérebro do gigante, foram engendradas as nuvens, que recobrem todo o céu.

Entretanto, após terem remexido a carne do gigante, com a qual moldaram a terra, os três deuses descobriram nela um grande ninho de vermes. Wotan, penalizado destas criaturas, decidiu dar-lhes, então, uma outra morada, que não o Midgard. Os seres subumanos, que pareciam um pouco mais turbulentos que os outros, foram chamados de Anões e receberam como morada as profundezas sombrias da terra (Svartalfheim). Os demais, que pareciam ter um modo mais nobre de proceder, foram chamados de Elfos e receberam como morada as regiões amenas do Alfheim.

Completada a criação de Midgard, caminhavam, um dia, Wotan e seus irmãos sobre a terra para ver se tudo estava perfeito, quando encontraram dois grandes pedaços de troncos caídos ao solo, próximos ao oceano. Wotan esteve observando-os longo tempo, até que, afinal, teve outra grande ideia:

- Irmãos, façamos de um destes troncos um homem e do outro, uma mulher!

E assim se fez: ele foi chamado de Ask (Freixo) e ela, de Embla (Olmo). Wotan lhes deu a vida e o alento; Vili, a inteligência e os sentimentos; e Ve, os sentidos da visão e da audição. Este foi o primeiro casal, que andou sobre a terra e originou todas as raças humanas que habitariam por sucessivas eras a Terra-Média.

Depois que Midgard e os homens estavam feitos, Wotan decidiu que era preciso que os deuses tivessem também uma morada exclusiva para si:

- Façamos Asgard e que lá seja o lar dos deuses! - exclamou ele, que, como se vê, era um deus de energia e vontade inesgotáveis.

Este reino estava situado acima da elevada planície de Idawold, que flutuava muito acima da terra, impedindo que os mortais o observassem. Além disso, um rio cujas águas nunca congelavam - o Iffing - separava a planície do restante do universo. Mas, Wotan, sábio e poderoso como era, entendeu que não seria bom se jamais existisse um elo entre deuses e mortais. Por isso, determinou que fosse construída a ponte Bifrost (a ponte do Arco-Íris), feita da água, do fogo e do mar. Heimdall, um estranho deus mascido ao mesmo tempo de nove gigantes, ficaria encarregado, desde então, de vigiá-la noite e dia para que os mortais não a atravessassem livremente no rumo de Asgard. Para isso, ele portava uma grande trompa, que fazia soar todas as vezes que os deuses cruzavam a ponte.

A morada dos deuses possuía várias residências, as quais foram sendo ocupadas pelos deuses à medida que iam surgindo. O palácio de Wotan, o mais importante de todos, era chamado de Gladsheim. Ali, o deus supremo tinha instalado o seu trono mágico, Hlidskialf, de onde podia observar tudo o que se passava nos Nove Mundos e receber de seus dois corvos, Hugin (Pensamento) e Munin (Memória), as informações trazidas das mais remotas regiões do universo.

Entretanto, se na mais alta das regiões estava situado o paraíso daquele soberbo universo, nas profundezas da terra, muito abaixo de Midgard, estava o Niflheim, o horrível e gelado reino dos mortos. Lá pontificava a sinistra deusa Hel, filha de Loki, que se regozija com a fome, a velhice e a doença, e que tem ao lado a serpente Nidhogg. Esta se alimenta dos cadáveres dos mortos e se dedica a roer continuamente uma das raízes da grande árvore Yggdrasil, um freixo gigantesco que se eleva por cima do mundo e deita suas raízes nos diversos reinos, entre os quais o próprio Asgard. Ao alto da copa frondosa desta imensa árvore, sobrevoa uma gigantesca águia, que vive em guerra aberta contra a serpente Nidhogg. Um pequeno esquilo - Ratatosk -, que passa a vida a correr desde o alto da Árvore da Vida até as profundezas onde está a terrível serpente, é o leva-e-traz dos insultos que estas duas criaturas se comprazem em trocar sem jamais esgotar seu infinito estoque de injúrias.

Nesta árvore fundamental, diz a lenda que o próprio Wotan esteve pendurado durante nove longas noites, com uma lança atravessada ao peito, para que pudesse aprender o significado oculto das Runas, o alfabeto nórdico, que rege e governa a vida dos deuses e dos homens. Quando seu martírio terminou, Wotan havia se tornado, definitivamente, o mais poderoso e sábio dos deuses, tendo o poder de curar doenças e de derrotar os inimigos com sua poderosa lança, Gungnir - ao mesmo tempo,  sua mais poderosa arma e local de registro de todos os seus acordos.

Yggdrasil é o centro do mundo, e, enquanto suas raízes continuarem a suportar o peso de seu prodigioso tronco e de seus ramos infinitos, o mundo estará firme e a vida será soberana, sob os auspícios de Wotan, senhor dos deuses.

Texto retirado do livro As Melhores Histórias da Mitologia Nórdica, de A.S. Franchini e Carmen Seganfredo, Artes e Ofícios Editora, 2004.

terça-feira, 28 de julho de 2020

O Sonho

Nasci junto com o dia. Então me lembrei que já tinha nascido na véspera e vi que não ia nascer mas ressuscitar. Duas mãos se colocaram firmemente nas minhas costas e me empurraram para fora da cama, vai! A estrada comprida. Opaca. A ventania levantou meu cabelo e disse dentro do meu ouvido que era preciso calçar sapatos de ferro. Olhei para os meus pés descalços. Então ela me levantou em seus braços - a ventania tem braços - e me depositou no fundo. A água transparente. Morna. Quis subir mas pesava meu coração de ferro inoxidável, tem um tesouro dentro? perguntei quando os peixes menores começaram a nadar em círculos em minha volta e depois se afastaram sem olhar para trás. Agora estou só na estrada e é noite. No céu, as estrelas seguem em cardumes cintilantes, como peixes. O silêncio. E a floresta escura me esperando lá no fim. Sei que não posso voltar e a floresta ficando mais perto, o medo, quero assobiar como aprendi nas histórias, tinha sempre um viajante que assobiava para espantar o medo mas o sopro que sai da minha boca - fogo e gelo - não tem nenhum som. Vejo então um homem de sobretudo preto e chapéu desabado caminhando firme na minha frente. Tem as mãos metidas nos bolsos e anda com segurança, sem olhar para os lados na sua marcha decidida em direção à floresta. Me animo, tenho companhia, vou com ele! resolvi e eis que um homem semelhante apareceu com seu sobretudo e chapéu, andando alguns passos atrás do primeiro. Um é o Bem e o outro é o Mal - alguém me avisou ou descobri de repente. Parei sem saber qual escolher, nenhuma diferença, tão iguais! E a floresta mais próxima, a opção rápida, aquele? Os dois prosseguindo implacáveis, qual era o Bem? O outro? Quis rezar a reza da infância mas e as palavras? não enxergava as palavras e a estrada se acelerando, virou uma escada rolante, me equilibrei no último degrau, depressa! resolvi correndo até o homem que ia na frente. Entramos na floresta.

Texto de Lygia Fagundes Telles retirado do livro A Disciplina do Amor - Fragmentos. Editora Nova Fronteira, 7ª Edição,  1980.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Eu Apenas Queria Que Você Soubesse


Eu apenas queria que você soubesse
Que aquela alegria ainda está comigo
E que a minha ternura não ficou na estrada
Não ficou no tempo presa na poeira

Eu apenas queria que você soubesse
Que essa menina hoje é uma mulher
E que essa mulher é uma menina
Que colheu seu fruto, flor do seu carinho

Eu apenas queria dizer
A todo mundo que me gosta
Que hoje eu me gosto muito mais
Porque me entendo muito mais também

E que a atitude de recomeçar
É todo dia, toda hora
É se respeitar na sua força e fé
E se olhar bem fundo até o dedão do pé

Eu apenas queria que você soubesse
Que essa criança brinca nessa roda
E não teme o corte das novas feridas
Pois tem a saúde que aprendeu com a vida

Música de Gonzaguinha retirada da coletânea Meus Momentos, de 1994.

Sempre gostei dessa música! E hoje, depois que eu a vi aqui no Blog me perguntei por que não a coloquei antes... E a resposta foi a de era preciso esperar o momento certo para homenagear uma grande amiga! Sempre tive poucos amigos e... amigas! E ela se revelou como sendo uma dessas pessoas (mais) confiáveis e (mais) discretas do meu círculo de amizades... Então, vai aqui a minha gratidão ao imenso cuidado que ela tem comigo, fazendo coisas que apenas uma irmã faria! Sou muito feliz com a sua convivência sempre agradável...
Pouca gente conhece esse meu espaço aqui... Contei a ela na semana passada, mas somente hoje o localizou. Seja bem-vinda!!

A Amizade

E um adolescente disse: "Fala-nos da amizade."
E ele respondeu, dizendo:
"Vosso amigo é a satisfação de vossas necessidades.
Ele é o campo que semeais com carinho e ceifais com agradecimento.
É vossa mesa e vossa lareira.
Pois ides a ele com vossa fome e o procurais em busca de paz.
Quando vosso amigo expressa seu pensamento, não temais o 'não' de vossa própria opinião, nem prendais o 'sim'.
E quando ele se cala, que vosso coração continue a ouvir o seu coração,
Porque na amizade, todos os desejos, ideais, esperanças, nascem e são partilhados sem palavras, numa alegria silenciosa.
Quando vos separais de vosso amigo, não vos aflijais.
Pois o que amais nele pode tornar-se mais claro na sua ausência, como para o alpinista a montanha aparece mais clara vista da planície.
E que não haja outra finalidade na amizade a não ser o amadurecimento do espírito.
Pois o amor que procura outra coisa a não ser a revelação de seu próprio mistério não é amor, mas uma rede armada, e somente o inaproveitável é nela apanhado.
E que o melhor de vós próprios seja para vosso amigo.
Se ele deve conhecer o fluxo de vossa maré, que conheça também o seu refluxo.
Pois, que achais seja vosso amigo para que o procureis somente a fim de matar o tempo?
Procurai-o sempre com horas para viver:
O papel do amigo é de encher vossa necessidade, não vosso vazio.
E na doçura da amizade, que haja risos e o partilhar dos prazeres.
Pois no orvalho de pequenas coisas, o coração encontra sua manhã e sente-se refrescado."

Texto de Gibran Khalil Gibran retirado do livro O Profeta. Tradução e Apresentação de Mansour Challita. Editora ACIGI, distribuição no Brasil da Editora Record.

domingo, 26 de julho de 2020

Ciclo das Oferendas - V

Se vens a mim
traze nos passos o verão
de poeira e tardes abrasadas
pelo velejar do sol
em barcos de frágeis nuvens.

Se vens
não te esqueças das folhas
do outono incrustadas na terra úmida.
Nem a chuva crivando o inverno e o frio
nas telhas semeadas de goteiras e limo.

Também
é imprescindível que tragas
a primavera compondo na pauta
de cada flor a canção
dedilhada pelo timbre dos rios
no deslizar das correntezas.

Quando nas minhas pegadas
já nada houver do que a ti pedi,
ficarão os teus passos
- condutores das oferendas
sinos das minhas celebrações.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro Ciclo das Oferendas, da Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2007.

Ciclo das Oferendas - IV

Se vens a mim
traze nas mãos a lua nova
esculpindo seu claro traço
na densa paisagem noturna.

Se vens 
não te esqueças dessa chama
urdindo-se na maré crescente
até a sua inevitável explosão
- rosa ardendo no espaço
inflamada de promessas e plenitude.

Também
é imprescindível que tragas
navegando na água incerta
o definhar da luminosidade
em sua trajetória minguante.

Quando nos meus gestos
já nada houver do que a ti pedi,
ficarão as tuas mãos
- condutoras das oferendas
guardiãs de minhas ansiedades.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro Ciclo das Oferendas, da Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2007.

Ciclo das Oferendas - III

Se vens a mim
traze na voz a cantiga
da fonte mais remota
que pela vertente desce
comboiando o desejo
de ainda tornar-se mar.

Se vens 
não te esqueças da luz
que na esperança da água
é fluida correnteza e nos remansos
dança a consagrada
coreografia da claridade.

Também
é imprescindível que tragas
as nuvens devassadas pelos ventos
levando para o íntimo da fonte
a água que um dia de lá partiu.

Quando na minha garganta
já nada houver do que a ti pedi,
ficará a tua voz
- condutora das oferendas
acalanto das minhas convicções.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro Ciclo das Oferendas, da Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2007.

Ciclo das Oferendas - II

Se vens a mim
Traze no sorriso a silenciosa pulsação
da semente que no fundo da terra
gesta a liturgia da vida.

Se vens
não te esqueças das parreiras e trigais 
por luas e sóis habitados.
Nem o aroma das folhagens secas.
O vinho enrubescendo a palidez
do pão e dos desejos.

Também
é imprescindível que tragas
o fruto à mesa posta
guardando a semente que no ritual
do plantio já determina
o tempo da próxima colheita.

Quando nos meus lábios
já nada houver do que a ti pedi,
ficará o teu sorriso
- condutor das oferendas
trajeto das minhas alegrias.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro Ciclo das Oferendas, da Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2007.

Ciclo das Oferendas - I

Se vens a mim
traze no teu abraço o sagrado sal
das madrugadas rebatizando paisagens.
E os ventos cingindo de ternura
as manhãs de neblina e mel.

Se vens
não te esqueças da insubmissa
alegria das preamares ungindo
de verde-lume tardes e sargaços.

Também
é imprescindível que tragas
a abrangente espessura das noites
sem contornos nem alaridos.

Quando nas minhas veias
já nada houver do que a ti pedi,
ficará o teu abraço
- condutor das oferendas
companheiro da minha solidão.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro Ciclo das Oferendas, da Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2007.

Gramática do Mar

Sol
Quem falou que a Mouraria é em Lisboa?
Quem falou que a poesia gosta de estar ao sol?
Quem falou que nalgum dia o sol
Nasceria aqui
Viveria aqui
Mas é aqui que ele se põe quando o dia finda

Anda o sol pelas palavras da minha língua
Passa a língua nas vogais e o mar vai falando
Das antigas tradições de um povo
Que nasceu aqui
Que viveu aqui
E é aqui que ele adormece na maré vaza

Um cavalo branco
Dança na areia do deserto
A areia é branca
E a vida é perto

A gramática do mar se aprende cantando
Fados que nos ensinou o tempo e a vida
Gritos de sereias ao luar
Que vêm do sul
Que vêm do sol
E que serão cantados até o fim do Tempo

Um cavalo branco
Dança na areia do deserto
A areia é branca
E a vida é perto

Música de Thamires Tannous e Tiago Torres da Silva, do CD dela intitulado Canto Para Aldebarã, lançado em 2013.

Uma Palavra

Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer tudo
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra

Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra

Palavra dócil
Palavra d'água pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra

Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra

Talvez, à noite
Quase palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra

Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra

Música de Chico Buarque, do CD Uma Palavra, lançado em 1995.

sábado, 25 de julho de 2020

Camaleão Vaidoso

Camaleão vaidoso
No meio das foia parada
Não podia ser visto
Nem quando o vento soprava
Pois carregava na pele
A sina da vida camuflada
Beleza, que não é vista, não serve
Não tem valor pra nada

Usava suas cores
De um modo particular
Mas o que parecia é que as foia
É quem se fazia mudar
Mudava e escondia o bicho
Mas era por admirar
O seu jeito esquisito de ser, de viver e de amar

Triste por não ser visto
Nem no olho do araçá
Sua beleza morria com as horas
Por não poder se mostrar
Do alto mirou o abismo
Fazendo pose de voar
Como uma ordem divina do céu, saltou para cantar

Poema de J. Veloso retirado do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.

Kirimurê*

Espelho virado ao céu
Espelho do mar de mim
Iara índia de mel
Deitada nas ondas brancas
Rendeira da beira da terra
Com a espume da esperança

Kirimurê linda varanda
De águas salgadas mansas
De águas salgadas mansas
Que mergulham dentro de mim

Meu Deus deixou de lembrança
Nas conchas dos sambaquis
Na fome da minha gente
E nos traços que guardo em mim
Minha voz é flecha ardente
Nos Catimbós que vivem aqui

Eira e beira
Onde era mata hoje é Bonfim
De onde meu povo espreitava baleias
É um farol que desnorteia a mim
Eira e beira
Um caboclo não é Serafim
Salvem as folhas brasileiras
Oh! Salvem as folhas pra mim

Se me derem a folha certa
E eu cantar como aprendi
Vou livrar a terra inteira
De tudo que é ruim

Eu sou o Dono da Terra
Eu sou o Caboclo daqui


Poema de J. Veloso retirado do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.
* Kirimurê, termo que significa, na língua dos tupinambás, "mar interior".

Jorge e o Dragão

Bate o atabaque
Bate o coração
Na hora do combate
De São Jorge com o dragão

O dragão perambula na cidade
Suas garras negras cravam na alma a dor
Labaredas saem das ventas da crueldade
Queimando as palhas da crença no amor

Sua cauda deixa rastros de tempestades
Inveja, mágoa, e aflição na fé
Espalha o cheiro podre do terror e da vaidade
É o dono das trevas que não quer a paz de pé

Bate o atabaque
Bate o coração
Na hora do combate
De São Jorge com o dragão

Das nuvens desce o santo guerreiro
Ogun, Oxossi, chamam o rei como quiser
A sua flecha tem a direção correta
A maldade abre o peito e tem vontade de morrer

Prosperidade, vitórias e amor
Não escolhe casa, credo nem calcula a fé
É a luz de Deus cavalgando aqui na Terra
Pra que o bem vença, acabe a tristeza, haja o que houver

Música de J. Veloso e Jorge Mautner retirada do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.

Santo Antônio

Que seria de mim, meu Deus
Sem a fé em Antônio
A luz desceu do céu
Clareando o encanto
Da espada espelhada em Deus
Viva, viva o meu Santo

Saúde que foge
Volta por outro caminho
Amor que se perde
Nasce outro no ninho
Maldade que vem, vai
Vira flor da alegria
Trezena de junho
É tempo sagrado na minha Bahia

Antônio querido
Preciso do seu carinho
Se ando perdido
Mostre novo caminho
Nas suas pegadas, claras,
Trilho o meu destino
Estou nos seus braços
Como se fosse o Deus Menino

Poema de J. Veloso retirado do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.