quinta-feira, 23 de julho de 2020

Ser Ou Não Ser Don Juan

No próprio mito de Don Juan, sedutor contumaz, já se detectou o fenômeno da inflação fálica, com um componente peculiar: a constante mudança de parceiras seria, na verdade, um gesto de inflação fálica para afirmar a si mesmo uma virilidade ameaçada por pulsões homossexuais. Para o ensaísta e historiador espanhol Gregório Marañón, o dom-juanismo parece ser um fenômeno ligado à adolescência tanto física quanto psicológica. Esse mesmo traço juvenil é que comprova a frágil virilidade de Don Juan, "pois a adolescência é precisamente a idade da indeterminação, da vacilação normal do sexo" - e isso faria parte do fascínio que ele exerce nas mulheres. Segundo Marañón, muitos continuam sendo Don Juan até o fim da vida exatamente porque mantêm para sempre os traços dessa indeterminação juvenil. O fenômeno faz sentido, pois remete diretamente às idiossincrasias do puer aeternus. Mas há também o exibicionismo, que Marañón considera como "a reação psicológica que corresponde a uma deficiência específica" - não só de sua masculinidade mas também de sua paternidade, como no caso de outro mulherengo famoso, Giacomo Casanova de Seingalt, que não deixou descendência por ser supostamente estéril. Afinal, a boa mercadoria não precisa de propaganda, observa Marañón, citando um ditado espanhol. Além de trombetear suas façanhas, como se precisasse reafirmar publicamente uma virilidade insegura, Don Juan evita qualquer compromisso, ostentando outro claro traço de dubiedade: para realizar suas façanhas, ele está sempre viajando de cidade em cidade, quase em fuga. Enquadrando-se, portanto, naquele exemplar do macho mítico que vagueia sem rumo certo, sempre em busca da identidade masculina periclitante - que o filão do western americano tão bem captou. Daí porque não existiria Don Juan sem o cavalo veloz, com o qual ele foge e parte para a próxima conquista feminina. Em última análise, Don Juan ama as mulheres, mas não a mulher. Seu segredo é outro: o "sexo equívoco", nas palavras de Marañón. Para ele, a "virilidade equívoca" de Don Juan parece ser confirmada pelo físico de "indecisa varonilidade" daqueles que podem ser considerados, historicamente, exemplos clássicos de dom-juanismo. Assim, um dos possíveis personagens reais que inspiraram o primeiro Don Juan literário, no romance de Tirso de Molina, seria o sevilhano Don Miguel de Mañara, cujo retrato feito pelo conhecido pintor espanhol Murillo mostra um jovem com traços de linda donzela. Do mesmo modo, o único retrato autêntico que se conhece de Giacomo Casanova mostra-nos um homem de traços femininos perfeitos e delicados. "O modelo não parece um homem mas uma bela mulher, talvez porque Casanova se desejasse assim, em seu subconsciente", comenta Marañón. Observação semelhante pode ser feita sobre todos os Don Juan históricos conhecidos: são figuras muito distantes do protótipo grosseiro e enérgico do varão. Ao contrário, a apurada maneira de se vestir e os cuidados com a apresentação física borram ainda mais as fronteiras com o estereótipo de virilidade. Entre outros personagens históricos que inspiraram a figura literária de Don Juan, há um exemplo ainda mais eloquente: um certo Don Juan de Tassis, conde de Villamediana, que viveu em Madri no início do século XVII (contemporâneo, portanto, do escritor Tirso de Molina). Famoso por sua extraordinária beleza, elegância e capacidade de sedução, ele era também um valente toureiro e um sonetista pródigo. o que só vinha aumentar seus encantos. Teve um número lendário de amantes, a mais famosa das quais teria sido a própria rainha Isabel de Bourbón. Quando o conde Villamediana foi assassinado, o rei Felipe IV levou a cabo investigações que conduziram à surpreendente descoberta de uma verdadeira confraria de homossexuais, incluindo-se aí desde criados e bufões até senhores da aristocracia. Ao final de um processo judicial, os mais humildes foram condenados à morte e executados, conforme exigência da lei, enquanto os aristocratas partiram para o exílio. Ora, documentos secretos, que só neste século foram descobertos pelo historiador Alonso Cortés, indicam que Villamediana estava não só implicado no mesmo processo por "pecado nefando" (prática homossexual), mas era o próprio chefe do grupo. Entre esses documentos cuidadosamente guardados, constava inclusive uma ordem do próprio rei, exigindo que "por estar o conde já morto, guarde-se segredo do que existe contra ele, para não conspurcar sua memória". Graças a esse segredo que durou três séculos, segundo narra Marañón, criou-se a lenda de que Villamediana teria sido morto por vingança do rei, irritado com suas bravatas heterossexuais.

Quanto a Casanova, consta que teria sido fascinado por mulheres travestidas de homens - fato nada incomum em Veneza, sua cidade natal, onde as prostitutas de fato costumavam vestir-se de homens para atrair mais clientes. Isso pode nos fazer crer que "talvez as mulheres nunca tenham sido os verdadeiros objetos do seu desejo", na conclusão de Peter Trachtenberg. Como se daria esse processo tortuoso? O típico Don Juan vivenciaria a necessidade neurótica de possuir a mãe e destituir o pai, através de "um nascisismo em que se alternam grandiosidade, insegurança e estados psíquicos primitivos", como megalomania e paranóia. Ora, a interpretação freudiana dos homens afetiva e sexualmente insatisfeitos baseia-se na sua impossibilidade de superar a mãe como objeto sexual paterno: a procura obsessiva e posse nunca satisfatória de centenas de diferentes mulheres ocorre porque para eles nenhuma mulher consegue equivaler ao objeto de desejo do pai. Na busca da mãe, há portanto uma busca de definição do pai, do masculino. Ou seja, a obsessão em possuir a mãe remete diretamente ao desejo de desvendar através dela a identidade do pai para, assim, identificar-se com seu significante masculino, seu falo penetrador. Ao analisar o longo poema Don Juan de Byron (escrito em meio a aventuras dom-juanescas bissexuais), o psicanalista austríaco Otto Rank observa que aí a identificação de Don Juan com o pai "encontra sua expressão poética na primeira aventura amorosa do herói (...) com uma pessoa que simboliza nitidamente a mãe infiel". Portanto, a fixação dom-juanesca na figura da mãe seria, no fundo, uma fixação no pai, tentativa de apossar-se da mãe enquanto elemento por excelência que define e garante a virilidade paterna. Em outras palavras, a tentativa reiterada de possuir o objeto de desejo do pai é o mesmo que buscar a posse do seu falo. Nessa busca de identificação, Don Juan se considera narcisicamente o único objeto de amor possível: trai os maridos porque não pode, por sua própria natureza, ter um rival no amor, segundo Rank. Para voltar a Casanova, nas mulheres ele procura a figura do homem primeiro: seu verdadeiro objeto de desejo, por detrás das mulheres, seria o pai como sua primeira referência masculina, meta impossível de uma busca fálica obcecada e tortuosa. Nesse contexto, convém lembrar que, em suas memórias, Casanova mostra uma "absoluta secura sentimental" com as crianças. E isso talvez venha reforçar sua fantasia de ser o objeto erótico exclusivo perante o pai.

A psicanalista Melanie Klein acrescenta outros dados, na sua interpretação. A endêmica infidelidade do homem dom-juanesco não seria apenas a tentativa (frustrada) de reviver inconscientemente a mãe (seu objeto de amor inicial) em cada amante. Mais ainda: ele mudaria constantemente de parceira para evitar a dependência e assim defender-se do medo de uma nova perda da mãe - fato que já lhe trouxe tanta dor. O corolário kleiniano óbvio é que todo grande garanhão esconde um menino assustado. Mas parecem demasiado frágeis essas tentativas de reencontrar a mãe, ao mesmo tempo em que o macho afirma (ou tenta recuperar) seu falo. Ainda que constantemente buscada, uma tal "solução" à crise do masculino resulta inevitavelmente falsa e ineficaz, podendo levar à problematização e até dissolução de muitas uniões heterossexuais. Mesmo que encontre uma mulher no casamento, a tendência é o homem continuar buscando indefinidamente sua identidade, ao contrário da segurança conjugal que possa aparentar. Evidencia-se aqui também como o masculino tende a manter-se em permanente estado de crise e busca fálica.

É interessante apontar algumas encarnações do mito de Don Juan, com todos os seus paradoxos, nos dias atuais. Basta pensar nos grandes playboys internacionais ou em conquistadores notórios como o ex-presidente americano John Kennedy - que não poupava sequer o sexo masculino, como a imprensa tem revelado. Mas há exemplos sobretudo no cinema e na TV dos grandes estúdios, com seus astros exclusivos que foram tornados verdadeiros Don Juan, numa profusão que mascarava certa ausência. Do ator americano Marlon Brando corre a fama de que sua atividade de sedução exercia-se até mesmo nos camarins, durante intervalos das peças que representava. Só tardiamente seus biógrafos (assim chamados não-autorizados) revelaram inúmeros casos, às vezes tempestuosos, com homens. Entre nós, há igualmente uma vigilância sistemática mas dúbia, que às vezes permite lapsos freudianos, como no caso de Jece Valadão, machão brasileiro oficial e assumido. Numa entrevista tipo pingue-pongue, em 1990, ele teceu brilhantemente seu ideário. Depois de mencionar que nunca levou porrada na vida, mas sempre deu a primeira, elencou as coisas de que não gostava: "Jiló, mulher feia, mau-caratismo e homem banana. Sem falar em bicha." Perguntado sobre o que já fez de ilegal na vida, respondeu: "Se ilegal é tirar a virgindade, eu tirei 12. Sem contar os cinco casamentos, pois nenhuma delas era virgem." Quanto ao seu maior vício, confessa: É mulher. Continua sendo o meu único vício." No final, o jornalista lhe pergunta: "Se fosse uma mulher, qual a primeira coisa que faria?" A resposta de Jece Valadão foi curta e grossa: "Daria para todo mundo." A ambiguidade aí contida certamente deixa emergir a fantasia desejante mais secreta, e por isso mais poderosa, que o Don Juan acalenta no seu coração de conquistador.

Capítulo 7 do livro Seis Balas Num Buraco Só - a crise do masculino, de João Silvério Trevisan. Editora Record. 1998.

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