sábado, 4 de julho de 2020

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: "vem por aqui"

Eu olho-os com olhos lassos
Há nos meus olhos, ironias e cansaços.
Eu cruzo os braços
E nunca vou por aí...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre, a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"

Prefiro escorregar pelos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos
A ir por aí...

Se vim ao mundo
Foi só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o longe e a miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha loucura!
Levanto-a como um facho a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cântico nos lábios.
Deus e o diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio, nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o diabo.

Ah! Que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
Um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei pra onde vou
Sei que não vou por aí!

Poema do português José Régio.

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