terça-feira, 28 de julho de 2020

O Sonho

Nasci junto com o dia. Então me lembrei que já tinha nascido na véspera e vi que não ia nascer mas ressuscitar. Duas mãos se colocaram firmemente nas minhas costas e me empurraram para fora da cama, vai! A estrada comprida. Opaca. A ventania levantou meu cabelo e disse dentro do meu ouvido que era preciso calçar sapatos de ferro. Olhei para os meus pés descalços. Então ela me levantou em seus braços - a ventania tem braços - e me depositou no fundo. A água transparente. Morna. Quis subir mas pesava meu coração de ferro inoxidável, tem um tesouro dentro? perguntei quando os peixes menores começaram a nadar em círculos em minha volta e depois se afastaram sem olhar para trás. Agora estou só na estrada e é noite. No céu, as estrelas seguem em cardumes cintilantes, como peixes. O silêncio. E a floresta escura me esperando lá no fim. Sei que não posso voltar e a floresta ficando mais perto, o medo, quero assobiar como aprendi nas histórias, tinha sempre um viajante que assobiava para espantar o medo mas o sopro que sai da minha boca - fogo e gelo - não tem nenhum som. Vejo então um homem de sobretudo preto e chapéu desabado caminhando firme na minha frente. Tem as mãos metidas nos bolsos e anda com segurança, sem olhar para os lados na sua marcha decidida em direção à floresta. Me animo, tenho companhia, vou com ele! resolvi e eis que um homem semelhante apareceu com seu sobretudo e chapéu, andando alguns passos atrás do primeiro. Um é o Bem e o outro é o Mal - alguém me avisou ou descobri de repente. Parei sem saber qual escolher, nenhuma diferença, tão iguais! E a floresta mais próxima, a opção rápida, aquele? Os dois prosseguindo implacáveis, qual era o Bem? O outro? Quis rezar a reza da infância mas e as palavras? não enxergava as palavras e a estrada se acelerando, virou uma escada rolante, me equilibrei no último degrau, depressa! resolvi correndo até o homem que ia na frente. Entramos na floresta.

Texto de Lygia Fagundes Telles retirado do livro A Disciplina do Amor - Fragmentos. Editora Nova Fronteira, 7ª Edição,  1980.

Um comentário:

  1. Esse sonho está tão presente no meu mundo particular que parece ser a descrição do que sinto... Quase uma realidade palpável... Um sonho ou um déjà vu?!

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