quinta-feira, 30 de julho de 2020

O Começo das Coisas 1

OCEANO E TÉTIS

Nossa mitologia contém muitas histórias acerca do princípio das coisas. A mais velha talvez fosse aquela a que se refere o nosso poeta mais antigo, Homero, quando chama Oceano de a "origem dos deuses" e a "origem de tudo". Oceano era um deus-rio; um rio ou curso de água e um deus na mesma pessoa, como os demais deuses-rios. Possuía poderes inexauríveis de gerar, exatamente como os nossos rios, em cujas águas as raparigas da Grécia costumavam banhar-se antes do casamento e que se supunha fossem, portanto, os primeiros antepassados de antigas raças. Oceano, porém, não era um deus-rio comum, pois o seu rio não era um rio comum. Desde o momento em que tudo se originou dele, continuou a fluir até a orla mais extrema da terra, fluindo de volta sobre si mesmo num círculo. Os rios, as nascentes e as fontes - na verdade, todo o mar - saem continuamente da sua corrente ampla e poderosa. Quando o mundo veio a ficar sob a autoridade de Zeus, só a ele se permitiu permanecer no lugar anterior - o qual, na verdade, não é um lugar, senão apenas um fluxo, um limite e uma barreiro entre o mundo e o Além.

Entretanto, não é rigorosamente correto dizer que "só a ele se permitiu". Associada a Oceano estava a deusa Tétis, acertadamente invocada como Mãe. Como poderia ter sido Oceano a "origem de tudo", se existia em sua pessoa tão-somente uma corrente masculina original, desacompanhada de uma deusa original da água capaz de conceber? Compreendemos também por que se diz em Homero que o casal original durante muito tempo se absteve de procriar. Comenta-se que eles brigaram; explicação que bem poderíamos esperar encontrar em histórias antigas dessa natureza. O fato é que, se a procriação original não tivesse cessado, o nosso mundo não teria estabilidade, não teria uma fronteira arredondada, não teria um curso circular que voltasse sobre si mesmo. O gerar o e criar teriam continuado até o infinito. Destarte, Oceano ficou apenas com o fluxo circular e a tarefa de abastecer as nascentes, os rios e o mar - subordinado ao poder de Zeus.

A respeito de Tétis pouca coisa nos diz a nossa mitologia, a não ser que era mãe das filhas e filhos de Oceano. Os últimos são os rios, em número de três mil. As filhas, as Oceânidas, são igualmente numerosas. Mais tarde mencionarei as mais velhas. Entre as netas havia uma cujo nome, Tétis (Thetis), soa como Tétis (Tethys), nome da companheira de Oceano. Em nossa língua fazemos uma clara distinção entre os dois nomes; mas pode ser que, para as pessoas que viviam na Grécia antes de nós, eles estivessem muito próximos um do outro no som e no sentido e significassem uma e a mesma Senhora do Mar. Logo mais tornarei a falar de Tétis (Thetis). A prevalência dessa história e a predominância dessas divindades por todo o nosso mar provavelmente remontam a um tempo em que povos de raça grega ainda não habitavam essas regiões

Capítulo 1, trecho 1, do livro Os Deuses Gregos, de Karl Kerényi, série Mitologia Grega, Editora Cultrix, tradução de Otávio Mendes Cajado, 1998.

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