quinta-feira, 30 de julho de 2020

No Navio Negreiro

Fechou os olhos tentando dormir. Não conseguia. O balanço do navio negreiro a enjoava, o corpo doía, o corte no pé latejava. Adetutu não tinha forças para nada, a não ser chorar. Onde estariam seus pequenos Taió e Caiandê? Talvez nunca mais os visse, nunca mais os abraçasse nem lhes desse o leite que agora escorria dos seios inchados e doloridos.

Adetutu sentiu nos lábios ressequidos o sal de suas lágrimas; soluçava. No escuro do porão apertado e fétido do navio negreiro, que se arrastava pelo oceano na noite sem estrelas, a mulher deitada ao lado fez um esforço para vencer o peso das correntes que as uniam e apertou o braço de Adetutu num gesto de conforto. E de dor compartilhada pelo destino comum dos que haviam sido caçados para ser escravos em terras estrangeiras.

Adormeceu e sonhou com seu mundo e  sua gente, dos quais fora arrancada para sempre. Sonhou com os dias em que, no templo, cuidava de seu deus Xangô, de quem era filha e sacerdotisa devotada. O pensamento aflito de que Xangô talvez a tivesse abandonado se desvaneceu no sonho. Teve a impressão de ouvir, através das paredes do navio, palavras de encorajamento vindas de Xangô no soar de um trovão.

O movimento das ondas, agora suave, embalava seus sentimentos, numa calmaria que lhe renovava as esperanças. Procurava recuperar em suas lembranças as coisas boas que ninguém nunca poderia lhe tirar. Seus deuses, que sua gente chamava de orixás, eram grandes e poderosos. Também haviam sofrido e se desesperado, mas nunca desistiram de ser felizes, realizados, eternos.

Adetutu também não desistiria, prometeu a si mesma. Afinal, não tinham lhe tirado tudo; ela tinha suas memórias, sabia quem era, de onde vinha. Tinha orgulho de sua origem nobre, de seus deuses, de seus ancestrais, que venerava com desvelo sincero. Seu nome, Adetutu, significava A-Coroa-É-Paciente, ou A-Princesa-Sabe-Esperar. Ela resistiria.

No sonho embalado pelo sobe-e-desce das ondas, Adetutu se agarrou aos orixás, que reacendiam suas esperanças. Juntou-se a eles no sonho, que não era mais um simples sonho, e reviveu com fé as aventuras dos deuses na criação do mundo, o mundo de Adetutu e dos outros africanos que, como ela, vinham sendo transportados para o Brasil naquele e em incontáveis outros navios negreiros, o mundo de todos nós.

A caminho do cativeiro, Adetutu sonhou com a criação do mundo.

Texto escrito por Reginaldo Prandi, ilustrado por Joana Lira, retirado do livro A Criação do Mundo (Contos e Lendas Afro-brasileiros). Cia. das Letras, 2009.

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